3 Conversas com Juan Mayorga

I – NA CULTURGEST, HÁ DOIS ANOS

A 12 de Novembro de 2005, estávamos nós na Culturgest, a fazer Fábrica de Nada de Judith Herzberg, e lançámos três Livrinhos de Teatro, Caminho de Céu, Animais Nocturnos e Jardim Queimado de Juan Mayorga, A Fábrica de Nada de Judith Herzberg, Stabat Mater e Paixão Segundo João de Antonio Tarantino. Connosco estiveram estes três autores. E, claro, Jacques Le Ny, do Atelier Europeu da Tradução, que apoiou as traduções e edições, e, nessa altura, realizou duas longas entrevistas em vídeo. A entrevista com Antonio Tarantino foi publicada na revista 18. A conversa que realizámos com Juan Mayorga, e que aqui se edita, contou com a colaboração de António Gonçalves (tradutor português), Yves Lebeau (tradutor francês), Francisco Frazão (programador da Culturgest) e Jorge Silva Melo.

A ANIMALIZAÇÃO DO HOMEM

ANTÓNIO GONÇALVES Eu começaria pela frase com que termina a entrevista que te fizeram o Francisco Frazão e o Jorge Silva Melo [nº 10 da revista Artistas Unidos], em que dizes: “Se chamamos cão ao judeu e ao árabe, acabamos por tratá­ lo como um cão.” Esta frase pode servir muito bem para introduzir uma das principais vertentes da tua obra, a vertente político social, de atenção e denúncia da injustiça. É o tema de Animais Nocturnos. E a famosa lei da imigração regressa em força em Palavra de Cão, quando os dois cães, Cipião e Berganza, caem sob a alçada da polícia municipal e correm o risco de passar ao estatuto de infra homens. Isto tem a ver directamente com os recentes acontecimentos nos subúrbios de Paris e um pouco por toda a França.

JUAN MAYORGA Sem dúvida, e de forma mais intensa com os últimos acontecimentos à volta da barreira espanhola [de arame farpado] de Ceuta e Melilla. É sabido que os bem pensantes têm permanentemente na boca a noção de direitos humanos, mas isso não existe. Existem direitos associados a papéis. Há direitos de cidadania, mas nem todos somos cidadãos. Provavelmente, dentro de 60 anos, quando se escreverem ficções sobre o que se está a passar nessa barreira espanhola, muitos levarão as mãos à cabeça e perguntarão como foi possível que houvesse gente a caminhar milhares de quilómetros só para romper com a fatalidade do próprio nascimento, o ser obrigado a viver no lugar onde se nasceu, mesmo que esse lugar seja hostil por razões económicas ou políticas. Como foi possível que essa gente fosse maltratada, expulsa e devolvida ao deserto. É um escândalo inaceitável, e revela bem até que ponto a actualidade é perversa.
Em relação à animalização do homem: é de facto muito importante nas minhas peças. O aparecimento de animais também é expressivo, porque o animal humanizado é o reverso do homem animalizado. Depois dessa entrevista escrevi Ultimas Palabras de Copito de Nieve, onde há três personagens, duas das quais símios. Mas símios hierarquizados: há um, o símio branco, que tem privilégios que o símio preto não tem, é um símio com papéis, que no final da peça desvenda que também tem palavras.
Continuo a pensar que o que disse nessa entrevista está certo. A frase remete para a grande descoberta kafkiana de que as palavras têm uma capacidade transformadora. Se chamas animal a um ser humano, acabas por legitimar a violência sobre ele, foi desumanizado. Em todo o caso, a luta pela palavra, pela linguagem, é fundamental no meu trabalho. Podemos vê­ lo em Hamelin: na família do Zé Maria, percebes que a pauperização começa pelas palavras. E o poder começa pela capacidade de intervir na vida dos outros com as palavras.

AS PALAVRAS E OS PAPÉIS

AG As palavras e os papéis. Em Palavra de Cão, um dos polícias diz: “Sem papéis, vales menos do que um cão.”

JM É uma peça que escrevi a partir do maravilhoso Colóquio dos Cães, de Cervantes. Em Cervantes, encontramos a trama da novela picaresca, em que uma personagem relata à outra a sucessão de trabalhos que teve, de casas onde viveu. E Cervantes dá uma explicação até certo ponto mágica da razão por que os cães falam: havia uma bruxa que queria castigar outra, e que lhe transformou em cães os filhos. Tentei dar a volta a esta questão, e transformei a na espinha dorsal da peça. Se, no Colóquio cervantino, há um cão que conta a sua vida a outro, na minha peça há o encontro de dois cães que descobrem que falam. Ou seja, havia um cão que tinha um segredo, pensava que só ele falava como os seres humanos, e encontra outro que também o faz. E, juntos, querem descobrir a causa dessa capacidade anormal, monstruosa. De maneira que, pela primeira vez, Berganza (que é quem fundamentalmente detém a palavra no texto) está a contar a sua vida a alguém, a Cipião: está a descobrir a sua identidade, porque a identidade é fundamentalmente a costura que fazemos das nossas experiências. Na minha versão, Berganza pergunta se: porque falo? E, em vez da ordem cronológica que Cervantes utiliza, ele vai em sentido inverso, da actualidade para trás, procurando o momento misterioso em que se pôde produzir esse dom da palavra. Finalmente, descobre que é um homem animalizado, como o é também Cipião, e que na origem da sua animalidade está a violência que outros seres humanos exerceram sobre ele.

AG Que foi animalizado.

JM Nessa descoberta final da peça há um tema que me preocupa – uma coisa em que sempre pensei e que outros também disseram: o Gregor Samsa, de A Metamorfose, acorda transformado num monstruoso insecto porque outros o viram como insecto. Numa peça em que há personagens humanas, como Animais Nocturnos, é fundamental o facto de o Homem Baixo tratar o Homem Alto como animal doméstico. Esse exagero que a peça propõe quer expressar muitas coisas que estão no ar. O nosso mundo, esse mundo coberto pela cortina ou pelo guarda chuva dos chamados direitos humanos, é atravessado por uma violência que faz com que alguns seres humanos tratem outros como animais, e que eles próprios se comportem como bestas.

AG No caso de Animais Nocturnos, o Homem Baixo tenta tirar proveito do Homem Alto, fazendo com que este lhe preste determinados serviços que nada têm de desonroso; também é assim em Palavra de Cão. Fica explícito quando um dos guardas diz a Berganza: “Gostavas de ter papéis? Nós podemos conseguir tos, se te portares bem. Temos amigos importantes. Se te esforçares, daqui a uns anos damos te os papéis. Mas tudo com muita discrição. É o mais importante, manter a boca fechada. Se te disserem que o inspector vem aí, metes te onde te mandarem. Sabes esconder te.” Estes temas circulam em várias das tuas peças.

JM Há realmente um diálogo entre as duas peças. Ambas falam de uma tentação que pode ter qualquer ser humano, qualquer de nós, de fazer de um outro homem seu escravo, seu animal. Quando o Royal Court me propôs escrever uma peça sobre a política espanhola, decidi trabalhar sobre a lei de imigração, mas não explorando situações que me parecem lugares comuns, como a da polícia que abusa do imigrante. A mim, o que me interessa nas chamadas leis de imigração, que estão a aparecer por todo o lado, é que, de facto, dividem a sociedade em dois: há homens com documentos e homens sem documentos. Isso parece me mais interessante do que a extorsão que um funcionário possa realizar, um polícia. Estabelecem uma diferença entre uns e outros que torna tentadora, para cada homem com papéis, a possibilidade de dominar o outro, de se aproveitar disso. Estamos aqui umas dez pessoas e, a uma delas, o facto de não ter papéis converte a numa possível vítima dos desejos dos outros.
Em Animais Nocturnos chega se ao ponto de o Homem Baixo tentar, ainda que com todo o respeito, com toda a amabilidade, apropriar se da sensibilidade do outro homem. Eu perguntava me qual seria o último pedido que o Homem Baixo faria ao Homem Alto. E encontrei essa chave: pede lhe que lhe escreva o diário. Para nós, escritores, isso seria um pesadelo, entregar a nossa capacidade de organizar a experiência ao outro. Nesse sentido, nesta peça, reaparece, sob uma forma doméstica, o grande conflito de Cartas de Amor a Stalin, o de um Bulgakov que tem sensibilidade, capacidade artística, e que se relaciona de forma conflituosa com um poder, perante o qual quer ser autónomo, mas que só o respeitará na medida em que seja servido por ele. Essa relação entre arte e poder reproduz se, de forma microscópica, em Animais Nocturnos.

PEÇAS POLÍTICAS?

YVES LEBEAU Toda a gente vê as tuas peças principais – Caminho do Céu, Animais Nocturnos, Hamelin… – como históricas, ou políticas. Mas eu vejo este teatro como um teatro íntimo; ontem falavas me de uma tentação que tens, de um “teatro do eu”…

JM Percebo que alguns leitores sublinhem o valor da História em algumas das minhas peças. Mas, no fundo, não sei distinguir aquelas que são, digamos, de âmbito histórico, das de actualidade ou temática presente. Modestamente, escolho o teatro para partilhar o meu assombro em relação ao mundo, às coisas que acontecem a outros seres humanos. Começo a escrever, fundamentalmente, por um efeito de estranheza. Há fenómenos que me parecem inconcebíveis, escandalosos. E o teatro oferece me um meio de partilhar essa minha estranheza com os outros. É verdade que sublinho o carácter político do teatro, na medida em que se faz de forma colectiva. Também é muito claro para mim que escrevo para os actores, para o corpo do actor, para o gesto do actor, e que ele vai descobrir nas minhas peças elementos imprevisíveis que eu não tinha pré­ determinado, e tenho tido experiências muito felizes neste sentido.

DESMONTAR A IMAGEM DE INOCÊNCIA DO PÚBLICO

YL Dás-te conta – é uma pergunta -, que os teus três heróis de Caminho do Céu, Hamelin e Animais Nocturnos são três monstros, para falar curto e grosso, e que o público corre o risco de se identificar com esses três monstros – o Comandante, o Juiz (que para mim se apaixona pela criança no fim da peça) e o Homem Baixo, de que já falámos?

JM Uma boa parte da nossa tarefa é destabilizar os preconceitos, os pontos de vista não-criticados, não-amadurecidos pelo espectador, a imagem que a sociedade tem de si própria. É o que acontece em Hamelin. No princípio, o público acha que vai ver uma obra sobre pedofilia e, quando vê as primeiras cenas, condena logo o suspeito, Rivas. Mas depois percebes que se instala um mal estar. Consegue se perceber pelos murmúrios dos espectadores e pelas discussões posteriores. Porque se trata de desmontar a imagem de inocência que cada um, cada espectador, tenta construir de si mesmo.
Uma coisa fascinante na produção de Ramin Gray de Caminho do Céu, no Royal Court [2005], foi que ele conseguiu que uma peça histórica preocupasse o público: o espectador sentia se fascinado pela personagem do Comandante, e entrava também ele no jogo. Acho que temos de fazer esse grande esforço que fizeram alguns dos grandes, no teatro, de defender até à morte cada uma das personagens e de não as julgar, não as sentenciar, não as converter em pasto de…

AG Num esquema maniqueísta, que é, de facto, o contrário do teu teatro…

JM Sim, um maniqueísmo baseado no politicamente correcto parece me erróneo e prejudicial, como também me parece prejudicial a atitude contrária, que é muito reconhecível, o tentar ser do contra só porque sim. Há que estar permanentemente num movimento pendular, se queremos ser dialécticos. Há uma expressão de Benjamin que diz que em cada sim há um sim e um não, e assim sucessivamente. Por isso é que é preciso fazer o gesto duplo de amor e compaixão em relação a cada uma das personagens. O grande mestre disto é Tchékhov, que olha com amor para cada uma das suas personagens, sendo ao mesmo tempo capaz de as criticar, coisa que nunca lhe agradeceremos o suficiente.

A RESPONSABILIDADE DA FICÇÃO

YL Eu acho que o teatro se alimenta dessa densidade da ambiguidade, que é muito marcada na tua escrita. Se um crítico, ou um político, ou alguém do teatro, para ser violento, te dissesse que Caminho do Céu era uma peça revisionista, ou que não tinhas o direito de fazer teatro num campo de concentração, o que é que responderias?

JM Primeiro, penso que é preciso ouvir esses dois comentários, porque não são insignificantes. Em relação ao segundo, aconteceu precisamente com dois críticos ingleses, perante a montagem do Royal Court de Caminho do Céu. Em geral, as críticas foram muito boas, no que se refere à valorização da peça como obra de arte, mas houve dois comentários que discutiam o seu valor moral. O Michael Billington no The Guardian dizia: a peça é muito poderosa e a encenação é magnífica, mas mesmo assim senti me desconfortável. Quem mais falou sobre isso foi o crítico do Observer, que inclusive me censurava severamente o ter feito ficção sobre o Holocausto. E eu tenho que ouvir esses comentários, não me são indiferentes. Mas devo dizer que, quando escrevi Caminho do Céu, não era ingénuo em relação ao tema. Conhecia as posições de Claude Lanzmann, segundo quem a representação da Shoah deveria reduzir se ao testemunho. É um debate muito fértil, que traça os limites extremos da representação de muitas questões, e que pode iluminá­ las. Em que medida é que o teatro se pode encarregar de ser a voz da vítima, em que medida isso pode ser uma usurpação.
Mas devo dizer que discordo desse ponto de vista, não acho que exista uma voz adâmica primordial, até a testemunha tem uma voz construída, que é de certa forma ficcional. E, em todo o caso, a ficção é capaz de produzir sentidos, e de lançar verdades, de suscitar o debate, etc. Quando enfrentamos uma questão como a do Holocausto, temos de ser extremamente cuidadosos. Como também em Hamelin, quando nos ocupamos da violência sobre as crianças: temos de parar a cada linha, e perguntarmo nos se não estaremos a fazer uma estetização da dor, a aproveitarmo nos da dor da infância, da dor de alguns espectadores, para provocar efeitos sentimentais que nos sejam úteis como dramaturgos. Temos de suspeitar do nosso próprio trabalho a cada momento. Mas, dito isto, temos a responsabilidade da ficção. O teatro é um belo trabalho que permite construir ficções, através das quais os espectadores podem reflectir sobre a sua própria experiência, rever a própria vida. É um trabalho de enorme responsabilidade a que eu me entrego. E acho que, tanto no passado da humanidade como no seu presente, encontramos situações que merecem ser representadas: desde que ouvi pela primeira vez a história daquele homem da Cruz Vermelha que acabou por assinar um relatório que absolvia os lager, que aprovava uma experiência concentracionária, senti que aí havia uma grande história, sobre a qual tinha de se fazer teatro.

YL Quando li Caminho do Céu, identifiquei me com esse homem da Cruz Vermelha, vi o como alguém que estava quase feliz. E no espectáculo em Madrid [encenação de Antoni Simón, 2004], vi o actor que pedia perdão por ter sido o que foi… É essa densidade na tua escrita, que se presta a muitas das interpretações possíveis.

JM A minha experiência como escritor foi exactamente a mesma. Quando conheci a história deste homem, senti que ele se parecia comigo, com muita gente à minha volta, que quer ajudar e, contudo, coopera com o relato do carrasco, ou que se absolve tendo alguma responsabilidade no que se passa. A reacção que eu gostaria que o espectador tivesse é essa de que estás a falar. Preocupa me muito quando uma peça, digamos, de tema histórico, que eu tenha escrito, produz uma experiência distanciada, em que o espectador vê a cena como um mundo fechado, que não o implica. Alguns espectadores, no espectáculo de Madrid, chegavam ao pé de mim e diziam: que bonito espectáculo, que terrível o que se passou na Europa naqueles anos, isto não devia repetir se, é muito importante que recordemos as vítimas… Quando viam a obra como uma peça monumental, comemorativa, sentia me decepcionado.

YL Mas isso é um problema da encenação.

FRANCISCO FRAZÃO Há uma diferença entre falar do Holocausto no teatro e no cinema. Porque no cinema, reconstruir Auschwitz, por exemplo, n’ A Lista de Shindler, é uma obscenidade, mas no teatro a ficção pode fazê­lo de outra maneira. E o teu texto fá­lo de outra maneira.

JM No teatro não enganamos o espectador, ou não devemos enganá­lo, na medida em que tudo é convencional: estamos frente a um actor contemporâneo que está a dizer aquelas palavras. Há um pacto prévio com o espectador, de uma radical convencionalidade.
Havia uma coisa que era importante para mim, em Caminho do Céu, que na última cena aparecesse não a voz das vítimas – porque eu não posso arrogar me o direito de tomar o seu lugar – mas precisamente a ressonância do seu silêncio. A peça acaba com Gottfried a fazer este discurso em que os incita a serem pacientes, a continuarem a representar essa falsa vida que, no entanto, é a única possibilidade de esperança. E, finalmente, Gottfried pede à menina, a Rebeca, que cante uma canção, que não está escrita no texto. Na montagem de Ramin Gray, no Royal Court, apareceu uma linda canção judia – e o espectador, parece me, reconhecia aquela vida que tinha sido esmagada, definitivamente esmagada, até ao ponto de já não poder ser representada.

UM COMANDANTE NAZI ATRAENTE

AG Se calhar, como o Yves apontou a produção em Madrid de Caminho do Céu não ia tanto nesse sentido e, em vez de tirar proveito da ambiguidade do texto, reduzia a. Por exemplo, o Comandante era nitidamente ridicularizado, condenado de uma forma demasiado abusiva.

JM Eu respeito muito todos os actores e encenadores com quem trabalhei nas minhas peças, mas sim, acho que é decisivo que a personagem do Comandante não seja sentenciada a priori, mas antes que, em particular no monólogo, acabe por ser atraente. Porque a promessa do nacional socialismo, do autoritarismo, a promessa da animalização em geral, não é de desprezar, é atraente – e, se não o reconhecemos, estamos desarmados face ao fascismo. Ela torna se explícita a dado momento do monólogo, quando ele diz: “trata se de resolver este problema técnico, e nós fizemo lo, agrupar aqui todos os judeus de Europa. Mas, na realidade, o nosso objectivo é muito mais elevado, é demonstrar que tudo é possível.” E se há um projecto político que ofereça isso, que todo o imaginável e ainda o inimaginável é possível, é difícil resistir a essa promessa. E na medida em que o teatro nos permita sentir como atraente um comandante nazi, sentir que as suas palavras ressoam no nosso próprio corpo, parece me que se consegue um pouco daquilo a que Aristóteles chamava catarse.

YL Quando eu li Caminho do Céu, senti logo que era preciso uma encenação que situasse a peça na perspectiva do que é ou não representável.

JM A questão da representabilidade está na base da peça, ao ponto de se renunciar deliberadamente a um relato convencional e se optar por uma estrutura fragmentária – não só no tempo como no estilo. Há uma descontinuidade estilística no texto que, aliás, me parece que a montagem de Ramin Gray servia.

AG Caminho do Céu é uma peça de uma ambiguidade que permite leituras intimistas como a tua, mas que não exclui outras.

UMA EXPERIÊNCIA DO PASSADO PODE ASSALTAR A TUA

JM Agradeço o teu comentário, se bem que tenha dúvidas sobre o meu trabalho em geral e sobre cada uma das peças mencionadas em particular. No que se refere ao passado, tenho sem dúvida de mencionar Walter Benjamin, quando dizia que a citação e o passado em geral deviam apresentar se como o salteador de estrada que surpreende o viajante desprevenido. Não me interessa um teatro histórico que mostre o passado numa vitrina, enjaulado. E não quero trabalhar para isso. Um teatro que seria o equivalente cénico do museu da cera, que na sua melhor versão proporcionaria ao espectador um anular do tempo desde o acontecimento até à actualidade, que abriria o passado ao espectador, que podia olhá­ lo com a ilusão de que é contemporâneo daqueles acontecimentos. Respeito quem faz esse tipo de trabalho, mas a mim o que me interessa é como é que uma experiência do passado pode assaltar a tua, invadir a tua, dar esse salto de tigre que faz com que te questiones sobre como estás a viver em tua casa, como te estás a comportar na tua própria sociedade.

AG É essa invasão do passado sobre o presente que é dolorosa. E coloca a questão de um teatro da memória. Em Palavra de Cão, Berganza está a contar a Cipião o seu passado e está a fazer o esforço de memória. “Puxa pela memória” é uma frase recorrente nas tuas peças. E diz Cipião a Berganza: “Tens de continuar a lembrar te, Berganza, para desfazer o enigma.” e Berganza responde lhe: “Cada vez me mete mais medo a memória, Cipião. Dá­ me pânico continuar a entrar no passado.” Exactamente o mesmo tema de Caminho do Céu…

JM Claro.

FF Há uma outra frase de Benjamin, sobre os pontos do passado que vês num momento de perigo. Todas as peças históricas são pontos do passado que vês agora – e agora é um momento de perigo.

JM O passado é imprevisível, não está dominado para sempre, e abre se precisamente em ocasiões de perigo, de crise: momentos que julgavas já estabilizados num relato coerente exigem um novo relato. Quando sucede o que sucede em França, ou na barreira espanhola, agora mesmo, temos de pensar donde isso surge. E neste sentido o passado transforma se, é imprevisível. Mas o passado, podendo ser doloroso, é também uma ocasião de emancipação; de emancipação daquele passado, que de algum modo recebe um sentido, mas também de uma emancipação actual.
O que acontece em Palavra de Cão é que estes dois homem animalizados que não sabem que são homens, ou seja, estes cães que crêem que são cães e mais nada, ao encontrarem se, têm oportunidade de desenvolver a sua palavra, de puxar pela memória. Ao fazê­ lo, sabem finalmente de onde vêm e, portanto, podem ter um gesto responsável de emancipação final, de solidariedade final, de rebelião.
A derrota e a dominação começam por tirar te a palavra e a memória. Se dizemos aos africanos que a razão para estarem como estão é terem governos corruptos, é não terem sido capazes de gerar sociedades críticas e auto reguladas como a nossa – esquecendo a escravidão do século XVI, o colonialismo do século XVIII e os neo colonialismos dos séculos XIX e XX – estamos a arrancar lhes a memória, e eles até podem resignar se e aceitar a sua miséria como paga justa pelos próprios erros. É fundamental o esforço de memória, pessoal e colectiva, não para nos consolarmos, não para nos conformarmos, mas para fazer esse trabalho de passar pelo fogo e, quem sabe, encontrar ocasiões de emancipação.
Mais uma vez, Walter Benjamin disse, já não sei se em “Sombras breves”, que o homem verdadeiramente forte é o que é capaz de observar a sua própria vida com muitos cotos e muitas mutilações. Cada um tende a construir uma auto absolvição, um relato romantizado, mas só os fortes são capazes de olhar cara a cara os buracos que pisaram ou os crimes que cometeram. E também as comunidades fortes, no verdadeiro sentido da palavra, no sentido da responsabilidade face a si mesmas e face aos demais.

DEFENDER AS PERSONAGENS ATÉ À MORTE

YL Eu queria ousar estender te uma espécie de espelho sobre a tua escrita, sem ser indiscreto, mas sinto que há tendências que se vão revelar em breve. Tenho uma ternura especial por Animais Nocturnos, e senti aí um erotismo muito grande. E que está presente em Caminho do Céu, que ressalta em Hamelin. Isto é, para voltar ao teu “teatro do eu”… Não posso falar em teu nome, mas sinto que tens uma enorme vontade de fazer sair de ti coisas que talvez não ouses exprimir à boca de cena, este “eu”.

JM Tirando situações como esta, não falo muito de mim mesmo. Sou bastante pudico ou tímido, tenho escrúpulos em falar de mim mesmo, se calhar porque não sinto que seja uma pessoa interessante cuja intimidade deva oferecer se. E, se bem que nalgum momento possa ter sentido a tentação de, como outros autores, pôr me a mim próprio em cena, acabei provavelmente por escolher mascarar me, através de uma multiplicidade de personagens.
Por outro lado, acho que o dialogismo teatral é fascinante. Venho do mundo da filosofia, e sinto sempre como um privilégio esta capacidade que o teatro nos oferece não só de manter uma posição, como de defender até à morte certas posições através de personagens que recusamos. É deste milagre de que é capaz Dostoievski, não no teatro mas na narrativa, defendendo os três Karamazov. Pensar neles e através deles fascina me. Substituir a pluralidade de personagens pelo meu “eu” na primeira pessoa seria uma perda.

YL E tenho muita curiosidade em saber como é que um autor escreve, o que desencadeia uma escrita, como se batalha com as palavras. Se quando escreves tens presente o público a quem te diriges a tua escrita…

JM Normalmente parto de uma situação que me interessa, de uma personagem que me parece perturbadora, complexa, que quero partilhar com os espectadores. E atraso, contenho muito, tanto quanto me é possível, a passagem à escrita, tento pensar muito. Tento construir um relato, uma ficção, porque as histórias continuam a ser o melhor modo de partilhar experiências com outros, e de construir essa experiência que é o acontecimento teatral. Não acredito nisso de já se terem contado todas as histórias. Talvez sim, mas então, já no tempo de Shakespeare se tinham contado todas, já estão todas na Odisseia… Podemos sempre contá­ las de outro modo, ou revisitá­ las. Eu gosto que me contem histórias. Cada homem tem uma história; através do olho desta câmara está um senhor a ver me, e pergunto me que história ou histórias terá.
Também tomo decisões no que se refere aos espaços, aos tempos e, claro, ao estilo. Uma questão fundamental é que tipo de palavra vou dar às personagens, se vai ser próxima da linguagem da rua ou mais estilizada. Todas estas decisões me ocupam durante bastante tempo, e só quando já não posso mais é que me lanço a escrever. Normalmente escrevo uma versão do texto, mais ou menos sólida, em que aparecem já em jogo quase todos os elementos, uma versão “representável”; e depois tento partilhá­ la com alguns colegas.

YL Então estás muito consciente de todos esses estados do que constróis; nunca te aconteceu ser o texto que inventa a peça?

JM Até certo ponto, sim; Caminho do Céu é o caso mais claro. Quando conheci a história dessa personagem, o caso do homem da Cruz Vermelha que esteve em Theresienstadt e em Auschwitz, não me interessavam tanto as peripécias como esta pergunta: como é que se pode viver depois daquilo? Daí que o relato dele tenha, se se quiser, um certo carácter forense. É o segundo relatório. O primeiro é o que escreveu naquela noite, e o outro é o que continua a reescrever todas as noites, para poder sobreviver. Como é que podes continuar depois de teres iniciado naquele dia uma viagem que julgavas que te ia a converter num herói, porque ias atrever te a entrar nesse lugar escuro, que é o campo, e acabaste por te converter num colaborador do horror? A partir dessa palavra, desse homem que recorda, comecei a escrever o texto, mas mesmo antes de concluir o monólogo vi as outras personagens, vi que a peça se estava a compor.

YL Acontece-te que uma personagem te escape, que uma personagem se invente a si própria – o Juiz de Hamelin por exemplo…

JM Claro que a escrita é produtiva em si mesma, tem as suas próprias leis, que ultrapassam o autor. Agora estou a começar a escrever uma peça, O Rapaz da Última Fila, que começa assim: um professor do secundário está a corrigir essas redacções vulgares de miúdos de dezasseis anos, do tipo “o que fizeste no fim de semana passado?”. Esse tipo de redacções que servem, sobretudo do ponto de vista do professor, para provar a incompetência dos alunos a todos os níveis. Ele está a dizer à mulher, que, aliás, vem de um funeral: “não sabem juntar duas palavras”, “mas o que é que estes miúdos têm na cabeça, não usam acentos, não usam pontuação.” E vai pondo com um marcador vermelho, zeros, três, quatros. De repente, encontra uma em que um aluno lhe revela um segredo. Não só está bem escrita, não só tem um valor literário, como ainda lhe conta uma coisa importante. Tinha a ideia desta situação; mas quando comecei a transformar me eu próprio no miúdo que escreveu aquele relato, começaram a aparecer elementos completamente imprevistos e fundamentais.
Portanto a escrita tem a sua própria força. Mas tenho a impressão de que, quanto mais se amadurece a obra à volta de elementos fundamentais, mais poderosa também é essa capacidade auto geradora da escrita. Desconfio muito da espontaneidade genial, a maior tarefa do escritor de teatro está na composição. Neste sentido, sou parecido com o Comandante de Caminho do Céu. (Risos.) Sou professor da Escola de Arte Dramática, e todos os Setembros cabe me, juntamente com outros colegas, entrevistar os candidatos. E normalmente tenho discordâncias, quando dizem: “Ah, este é muito bom, olha que imagens, que bonito e tal.” Porque há outros que não manejam a palavra da mesma maneira, mas que têm a capacidade de manejar o tempo, de construir. E tento reflectir sobre isso quando estou nesse trabalho prévio ao da escrita.
Por outro lado, acho que custa muito a um dramaturgo renunciar a um material. Às vezes, escrevemos uma cena que é brilhante, ou que nos parece brilhante, ou acreditamos que pusemos nela algo de importante nosso – e, no entanto, pode ser um lastro no conjunto da peça. Devemos ser capazes de ter essa imagem global.

NÃO RENUNCIAR ÀS HISTÓRIAS

YL Gosto muito de te ouvir falar de construção, numa época em que quase só se ouve falar de desconstrução. E as tuas peças são desconstruídas, explodidas…

JM Se o que está no ar, na moda, é a renúncia à construção, ou o descrédito da construção, só por isso vale a pena colocar a possibilidade de construir. No mesmo sentido em que para nós, artistas – e digo o sem auréolas, como responsáveis do artefacto -, tem sido um lugar comum desprestigiar a narração, o mero acto de compor relatos, e só por isso vale a pena explorar a possibilidade de contar histórias.
Uma coisa que se disse a propósito de Últimas Palabras de Copito de Nieve é que o importante não é que ouçamos as palavras de Copito de Nieve, mas que cada espectador se pergunte quais seriam as suas próprias últimas palavras. Quando isso acontece está a dar se um milagre – claro que não realizado por mim, mas pelo grande actor Pedro Casablanc, que faz de Copito [encenação de Andrés Lima]. Ele está a conseguir que o espectador veja um macaco e, ao mesmo tempo, se veja a si próprio, se imagine num momento terminal, de ajuste de contas. Não quero renunciar às histórias e não vou renunciar às personagens, que também têm estado em descrédito por parte da teoria teatral e da prática teatral contemporâneas… e da narrativa em geral.

FF Mesmo havendo uma história, não se trata nunca de um relato transparente, cronológico. Estou a pensar em O Tradutor de Blumemberg, na sua estrutura temporal.

JM Há mais limpeza cronológica num texto como O Jardim Queimado ou Hamelin. Aproximam se na medida em que são desencadeados e movidos por uma personagem que deseja confirmar alguma coisa. Tanto n’O Jardim Queimado, a personagem Benet, como o juiz Monteiro, em Hamelin, fazem uma falsa investigação. A peça tem um ar de inquérito, mas na realidade o que querem um e outro é confirmar a sua verdade, uma verdade prevista. E isso é o que os torna extremamente surdos aos que os rodeiam. De forma que, paradoxalmente, ambas as peças se convertem não em realizações do desejo da personagem, mas em quedas. Pode entender se Hamelin como a queda do juiz Monteiro. Tem em mãos o caso da sua vida; ele, que tantas dúvidas tinha sobre a sua vida e o seu trabalho, vai apresentar se como o salvador da cidade, ou pelo menos é esta a sua ilusão. Primeiro lança se contra o pedófilo mas, não podendo confirmar a sua culpabilidade, volta se para o pai do menino, induzido pela pedo psicóloga, o outro soldado do bem na peça. E também se pode entender O Jardim Queimado como a queda de Benet, na medida em que um homem que entra com certezas sai com muitas perguntas para o Homem Estátua, no final do texto. Se por um lado são duas peças cronologicamente ordenadas, no sentido tradicional, distinguem se das investigações convencionais na medida em que o que o herói consegue no final não é o que desejava, pelo contrário, chega a uma enorme perplexidade.

NO TEATRO, DEVEMO-NOS ÀS PESSOAS

AG Em Palavra de Cão, num dado momento, Berganza conta: “Nas cidades, a nossa companhia especializou se em teatro de vanguarda. – Teatro de vanguarda? – Era o que ele lhe chamava. – E em que consistia? – O meu amo recitava um monólogo com abundância de palavrões e eu improvisava conforme me ocorresse. A única coisa que estava fixada era o final. Porque todas estas peças de vanguarda acabavam comigo a atacar o público. Eu tentava morder todos os espectadores que conseguisse, o que dava muito gosto às pessoas e muito lucro ao meu dono.” Será que isto pressupõe uma tomada de posição em relação a algum teatro de vanguarda, que prescinde da palavra? Estou a pensar concretamente no que vi do teatro do Rodrigo García, que vai por um caminho oposto ao teu.

JM Independentemente dos nossos teatros serem muito diferentes, não há dúvida que o valor que o Rodrigo dá à palavra, à relação directa com o espectador dessa palavra, influenciou peças minhas como Copito e até os monólogos do Comandante em Caminho do Céu. E não só a obra de Rodrigo García, mas de outros que trabalharam neste sentido.
Neste caso, Berganza está, claro, a gozar com um teatro que fez sua e prostituiu a noção de vanguarda – que é uma noção que deveria estar associada à responsabilidade – e que simplesmente utiliza, já não rasgos estilísticos, mas estilemas, porque acha que funcionam. Há aí um gozo com esse tipo de teatro, que esquece o fundamental. E isso tem a ver com a pergunta de há pouco: para quem escrevo? Eu escrevo para as pessoas. Acho que, no teatro, nos devemos dirigir às pessoas, o acontecimento teatral deve ser um acto de amor às pessoas. Claro que esse acto de amor deve estar associado à crítica, ser às vezes um pouco irritante ou desmancha prazeres. Mas eu escrevo para as pessoas, e tento escrever para cada vez mais gente. Se eu der uma vista de olhos a peças como El Sueño de Ginebra e as comparar com estas últimas, acho que estão lá as minhas preocupações de sempre, mas agora tenho uma maior capacidade comunicativa. E isso alegra me. Ver que tanto Copito como Hamelin – claro que muito graças ao trabalho de uma encenação inteligente e de actores muito competentes – está a chegar a um público mais extenso que, há uns anos, me tomava por um excêntrico. Sobretudo porque não deixei de ser um excêntrico, mas agora partilho as minhas excentricidades. E isso alegra me.

YL Antoine Vitez punha o autor dramático mesmo no centro da comunidade teatral: o autor propõe ao encenador e depois ao público o enigma da esfinge, e cabe lhes a eles decifrá­ lo. Em tudo o que li teu, sinto esta coisa complexa, ambígua, esse enigma da esfinge.

JM Para mim é decepcionante quando um encenador lê o texto e me diz imediatamente: já sei como o encenaria. Quando isso acontece, sinto uma desconfiança em relação ao meu próprio trabalho. Alguma coisa fiz mal. Nada pode ser imediatamente consumível. E esse comentário de Vitez parece me formidável. Mas não me sinto no centro do acontecimento teatral – e não sinto nostalgia disso. O Antonio Buero Vallejo, que tanto admiro, conta a história de que, quando Jacinto Benavente passava pelas ruas de Madrid, os operários paravam e cumprimentavam no. Buero conta o como um momento de respeito face ao autor e tal. Eu não sinto qualquer nostalgia desse mundo. E também não participo nesse tipo de batalhas, que me parecem infantis, do autor contra o encenador, do encenador contra o autor, do encenador contra os actores e todos contra o público. Pelo contrário, acho que nós nos devemos às pessoas. Isto, claro, não quer dizer fazer só teatro de entretenimento, não implica uma anulação das nossas preocupações. Mas estamos obrigados a enriquecer as pessoas, é essa a nossa responsabilidade.

II – EM MADRID, A MEIO DOS ENSAIOS DE HAMELIN

Fim de Fevereiro de 2007. Estávamos já a ensaiar Hamelin há um mês. Tínhamos visto o dvd da produção do Animalario e, depois de fazermos várias distribuições possíveis, optámos por trabalhar na mesma alternância de papéis que no espectáculo de Andrés Lima. Estavam presentes o Américo Silva, a Andreia Bento, o António Filipe, o António Simão, o João Meireles, o Jorge Silva Melo, o João Miguel Rodrigues, o Paulo Pinto, o Pedro Carraca, a Sylvie Rocha. E uma amiga do Juan, a ensaísta chilena Andrea Jeftanovitch, que prepara um trabalho universitário sobre o teatro de Mayorga. A reunião demorou duas horas, no escritório do Ur Teatro.

JUAN MAYORGA Vi uma leitura de Hamelin, na Roménia, há mais de um ano. Era mais do que uma leitura, alguns actores tinham o texto decorado, outros só liam. E, embora eles não tivessem visto o espectáculo madrileno, eram bastantes parecidos. Mas com soluções de distribuição diferentes, por exemplo. Na produção madrilena só havia sete actores, havia vários desdobramentos, uma mesma actriz fazia as duas mães; um só actor fazia o pai do Zé Maria e do Gonçalo, o irmão mais velho; todos os actores faziam as cenas de rua. Na Roménia, havia um actor por personagem. Vocês como é que estão a fazer?

ARTISTAS UNIDOS Por enquanto, estamos a fazer uma distribuição parecida com a que fez o Animalario, mas neste momento estamos com dúvidas…

JM O Andrés Lima, o director do Animalario, nunca me explicou muito bem as razões dos desdobramentos das personagens nesta peça. Claro que há relações e sentidos, quando ele põe as duas mães de classes sociais diferentes a serem feitas pela mesma actriz, ou quando o actor que faz de pai faz também o papel de Gonçalo… Podemos pensar se serão o futuro e o passado um do outro.

AU E o filho do juiz…

JM Era feito pela actriz que fazia a pedo psicóloga.

AU Nós ainda não estamos convencidos. Parece nos problemático…

JM E também há um problema na conversa do Chico com o juiz, porque há umas falas do Gonçalo e, se ele é feito pelo mesmo actor que faz o Chico, não deixa de ser estranho. O Andrés resolveu isso bem, mas não quer dizer que tenha de ser sempre assim. Não podemos esquecer que o Animalario é uma companhia com um estilo muito próprio, eles pegaram no texto e transformaram no num espectáculo deles, com os momentos coreográficos típicos da companhia, e também com os desdobramentos que costumam fazer noutros espectáculos. Eu não escrevi a pensar numa distribuição específica, escrevi a peça e pronto. E eles, sem cortarem nada ao texto, interpretaram o jogo que lhes propus.

UMA TEATRALIDADE RADICAL

JM Este texto cria uma tensão entre o que o narrador descreve e aquilo que os actores fazem. Se, por exemplo, o narrador está a dizer “bebe um café”, o actor pode sublinhar ou contradizer esta narração. Se diz “o actor ri”, mas se o actor não o faz, cria se um jogo interessante que leva o espectador a pensar se é verdade o que o narrador está a dizer, ou o que o actor faz.
A propósito das falas do comentador, que diz “sobe o pano”, “silêncio” e assim, um estudioso espanhol, o José Luis García Barrientos, disse qualquer coisa como: o texto revela se como texto, está permanentemente a revelar a sua artificialidade. A pausa não é representada, é dita. Está­ se sempre a dizer que esta narração é só uma versão, que pode haver acontecimentos inacessíveis, que escaparam. Poderia haver outros pontos de vista, opostos. Uma tensão entre o que está a ser dito pelo comentador e o que está a ser representado é outra possibilidade.

AU Quem é este “comentador”?

JM Sempre se disse, falando do texto teatral, que nele não há lugar para o autor. Aqui pode se dizer que o comentador tem mais a ver comigo do que com qualquer outra personagem. Em espanhol inventei uma palavra para ele, o acotador, aquele que lê as acotaciones, as rubricas. É difícil traduzir “acotador”. Em romeno diz se “conducator”, o que traz sentidos terríveis, era o título que se dava ao Ceausescu. Não é bem narrador… Usei deliberadamente uma expressão que não existe no dicionário.

AU Rubricador, didascaliador…

JM O texto propõe uma teatralidade radical, que se baseia no facto de o comentador estar permanentemente a convocar a imaginação do espectador. É como os jogos das crianças, quando dizíamos “agora vamos fazer de…”. Ainda ontem, o meu filho Miguel, que tem sete anos, estava a brincar com o primo Juan, e disse lhe: agora vamos ser não sei quê… O facto de a peça estar fundada nesta aposta faz com que todas as montagens se pareçam, num certo sentido.
Embora com grandes diferenças; por exemplo, no espectáculo romeno, o actor que fazia de Zé Maria era muito diferente do espanhol, era mais velho, um homem pesado, cansado. Em Espanha, era o Alberto San Juan, um rapaz bonito e que jogava fundamentalmente com a ambiguidade, com a atracção que podia produzir. Numa das cenas do interrogatório, quando o comentador diz “Zé Maria olha para o escrivão”, o actor usava um olhar de certa maneira sedutor. É um rapaz que tenta atrair os adultos, negociar com eles, está sempre a vender qualquer coisa… E isto foi sistemático na produção espanhola. O actor romeno era um tipo de quarenta anos, um homem pesado, mas comportava se como uma criança. E podia ver se o Zé Maria daqui a vinte anos, quando deixar de ser uma criança bonita e a ferida o tiver contaminado. Era alguém que tinha perdido a infância. Essa ideia fascinou me. Mas também, por exemplo, na Roménia, o comentador era uma mulher muito expansiva, quase uma entertainer, enquanto que o Andrés Lima, encenador e actor do espectáculo madrileno, tinha uma implicação muito mais emocional.

A LINGUAGEM QUE DESIGNA O MAL

AU Esta peça, escreveste a há dois anos?

JM Comecei há uns quatro ou cinco. Na base da peça estão alguns escândalos mediáticos sobre a pedofilia, que investiguei mais ou menos, o da Casa Pia, em Portugal, o caso de Raval em Barcelona, o caso Arny em Sevilha, o caso Michael Jackson. Mas também aquele estranho caso em França em que o juiz Burgaud incriminou toda a gente de um bairro, e em que um dos acusados se tentou suicidar na prisão. E afinal descobriu se que se tratava apenas de uma suposição do juiz. Um colega meu, David Planell, falou me também há algum tempo de uma história, penso que não chegou a escrevê­ la, sobre um caso que envolveu um professor de Londres que descobriu fotografias de um adulto com uns miúdos na banheira. Este tipo denunciou as fotos, mas no final descobriu-se que era só um pai que tomava banho com os filhos, coisa que muitos pais fazem. O homem foi declarado inocente, mas já estava manchado, houve alguém viu a sua relação com os filhos como uma coisa má. Vivemos numa sociedade corrupta, e há um certo alívio social quando se pode localizar uma linha. Olha, a fronteira são as crianças, aqui está, estes são os monstros, os pedófilos. Esta capacidade de designar o mal produz uma satisfação geral.

AU É uma questão de nomear para acusar ou inocentar…

JM A peça fala da linguagem e de como quem tem linguagem tem poder, isso revela se na cena do aniversário do Zé Maria, no Lar da Segurança Social. A pobreza da família do Zé Maria começa na linguagem: quando chega o momento de falar, não sabem o que dizer. Só dizem trivialidades, “o que é que fazes de manhã? E à tarde?”. Não são capazes de criar relatos sobre si próprios, as suas vidas estão preenchidas por relatos alheios. Quem tem um relato próprio são aquilo a que podemos chamar as “forças do bem”, representadas pelo juiz e pela pedo psicóloga. Eles têm uma linguagem com que se podem dirigir ao mundo, nomear os outros, falar com os outros – e dominá­ los. E estas linguagens estabelecem sempre muito claramente onde está o mal, e marcam claramente a inocência de quem fala. A peça fala da aspiração à inocência, que todos sentimos, todos queremos sentir que não somos responsáveis. Por exemplo, quando houve as manifestações contra a Guerra no Iraque, em que eu também participei, claro que senti uma emoção maravilhosa, tinha localizado o mal, o mal era Bush, e eu estava limpo.

AU Houve uma preocupação com o realismo do processo?

JM Nos ensaios do espectáculo contámos com a presença de um advogado e de uma psicóloga para termos a certeza de que o que eu tinha escrito era verosímil, que havia uma coerência. Monteiro, em determinado momento, diz à pedo psicóloga Raquel que está disposto a qualquer coisa, e a verdade é que comete várias ilegalidades para comprovar a sua tese. Algumas das situações da peça – como as visitas do juiz à mãe do Zé Maria e ao Gonçalo no Bar Brando – não são possíveis no mundo jurídico real, são ilegais. David Johnston, o tradutor inglês, disse me que em Inglaterra isso não se faz. Aqui em Espanha já existem uns juízes vedetas, como o célebre Garzón, que se sentem super homens, e torcem os limites da lei. Em Espanha, as pessoas não acreditam na justiça, o segredo de justiça está sempre a ser violado… E o público aceita estes acontecimentos como verosímeis. Mas há uma coisa que posso e devo justificar: o facto de Rivas, o suspeito, não querer advogado. Foi uma decisão minha, a jurídica, interessava me uma cena entre Monteiro e Rivas, não uma cena com a intermediação do advogado. E a linguagem de Rivas, que pertence a uma outra classe social, é de certa forma indulgente, diz ele dos slides porno que foram apanhados pela polícia: “são para uso pessoal, não é crime”, sabe defender se até certo ponto.

A TRANSFERÊNCIA DOS AFECTOS

AU E a personagem da pedo psicóloga?

JM Também Raquel tem acções que não são as que pode ter uma psicóloga real. Se calhar, a primeira conversa séria entre os dois é ilegal no sistema jurídico real. O caso está a correr mal, a imprensa e a opinião pública desinteressaram se… Monteiro chama Raquel com urgência, ela não sabe porquê, se é para falar do filho Jaime, se é porque a acha bonita… Ele diz lhe que não sabe o que fazer, e Raquel sugere lhe que olhe para os pais. Raquel converte se em alguém importante para o caso, não porque tenha uma prova real, mas porque tem a linguagem que permite falar com o Zé Maria. Ela vai ser a tradutora, e por isso é fundamental para Monteiro, com a sua ciência psicológica e o seu discurso fechado sobre si. Raquel abre lhe o livro da vida, diz lhe como é o Zé Maria, classifica o, nomeia o com a sua ciência possível. Eu estudei matemática, e não é o mesmo que estudar psicologia. Provavelmente a personagem Raquel está carregada da minha própria ignorância sobre a psicanálise… Sinto agora que talvez a tenha defendido menos do que aos outros. Tentei defender todos, procurando as suas razões, o seu percurso, não o fiz em relação a Raquel, ela é a catalogação, a nomeação apenas.
Mas a Blanca Portillo, a actriz que criou o papel em Madrid, decidiu defender a personagem até à morte. Para ela, Raquel ama o Zé Maria, entrega se ao seu trabalho, não é uma cínica nem uma hipócrita, quer salvá­ lo. Acho que isso é compatível… É uma pessoa que não leva muito bem a sua vida, suspeito que a sua vida familiar é de algum modo… Podemos pensar até que Zé Maria é o filho que ela não tem. E, de uma forma não muito clara, penso que Raquel e Monteiro têm uma relação amorosa, ele vê­ a como a sua mulher dez anos antes, sente se atraído por ela, e Raquel vê­ o como alguém com quem pode sonhar; creio que este tipo de linguagem dos psicólogos e dos psiquiatras…
Na peça, assistimos à substituição de uma família por outra. Chico é afastado do seu filho, Zé Maria vai para o Centro Social, a família de Zé Maria é substituída, no final, por uma família institucional. Monteiro e Raquel ficam de certa maneira com esse filho: Monteiro sabe que se vai relacionar melhor com ele do que com o seu filho verdadeiro, e Raquel é como a mãe.

ANDREA JEFTANOVIC Monteiro nunca consegue falar com o seu próprio filho, não consegue ou não quer…

JM Acontece-lhe o que acontece a muitos de nós. É mais fácil triunfar num campo em que se é especialista do que relacionarmo nos com os mais próximos que estejam com problemas. Mas posso dizer te que queria escrever uma peça sobre pais e filhos. Será porque tenho filhos e vivo com eles. E porque sinto o problema que é a educação. Lembro me também, com vergonha, dos meus próprios anos de professor, em que me relacionava de forma diferente com o pai taberneiro de um miúdo ou com o engenheiro, é verdade, dava conselhos ao mais pobre, com um certo paternalismo… Nós não conhecemos o Zé Maria, não sabemos quem é, mas Monteiro e Raquel querem conhecê­ lo.
Há dois filmes que não me saem da cabeça, os Ladrões de Bicicletas de Vittorio de Sica, claro, aquela criança que acompanha o pai, um pai que luta pela sua respeitabilidade diante do filho… E também um filme mais recente, Affliction, de Paul Schrader, protagonizado por Nick Nolte, com um argumento muito bom, a história de um pai que é um polícia rural de uma aldeia perdida nos Estados Unidos, alcoólico, divorciado, com uma relação difícil com o filho. E, a certa altura, acontece lhe uma coisa como em tantos filmes americanos, dir se ia um acidente, mas ele diz: não, isto não é um acidente, é um crime. E é claro que, se descobrir o crime, vai ser transformado em herói – também perante o seu filho -, como em tantos filmes norte americanos. Mas no final as pistas não funcionam… Um outro filme que me interessou foi O Futuro Radioso de Atom Egoyan, que é também uma variação sobre a fábula do flautista de Hamelin, a história de uma cidade que perde as suas crianças, que é castigada com a perda das suas crianças.

O TEXTO SABE COISAS QUE O AUTOR DESCONHECE

JM Quando Monteiro entra na casa do Zé Maria, é uma cena nocturna, o Andrés Lima decidiu fazê­ la às escuras, mas os romenos não a fizeram assim. É uma cena interessante mas eticamente discutível, um juiz não entra assim em casa das vítimas. Mas há um momento em que Monteiro repara que no quarto do Zé Maria estão pendurados os desenhos que ele faz, e lembra se de que, na sua própria casa, no quarto do filho, não há desenhos, mas cartazes. Na realidade, o juiz tem uma relação muito menos intensa com o seu filho do que Chico tem com Zé Maria. Chico é um desastre como pai, não sabe como ganhar a vida, sustentar uma família, é uma calamidade, mas tem uma relação sincera com ele. Gosta do filho, claro. Quando vão para a rua pintar têm uma relação forte. Por isso, a cena em que ele vem procurar o juiz é uma cena emocionante: não o deixam ver o filho, ele vem perguntar porquê, quer saber o que é preciso fazer, está disposto a tudo (mesmo a acusar se) para poder visitá­ lo.
De certa maneira, o juiz quer compensar com o Zé Maria a relação que não tem com o seu filho Jaime. Houve espectadores que me perguntaram o que é que se passa, no final, entre o menino e o juiz. A peça é deliberadamente ambígua, o final é controverso. Claro que, em Madrid, havia ainda um outro factor de inquietação. O actor que fazia o juiz, Roberto Álamo, é um actor muito conhecido pelos seus papéis de travesti, joga muito na ambiguidade sexual. Havia espectadores que não podiam deixar de ver uma história de atracção física entre os dois. Houve quem pensasse que Monteiro era pedófilo, que tinha sido abusado quando era pequeno… A verdade é que, nesse momento final, há uma ambiguidade tremenda. Também no texto.
Mas não se pode dizer que a peça vise localizar pedófilos. É uma coisa que está no ar, e o teatro vive do que está no ar do seu tempo: talvez seja porque vivemos uma desconfiança universal que podemos ver uma possível violência de Monteiro sobre Zé Maria, tudo pode ser interpretado como um sinal do mal. Para Yves Lebeau, o tradutor francês, a peça conta a queda de Monteiro, de como Monteiro se apaixona por Zé Maria.
O elenco do Animalario apresentou recentemente a peça em Buenos Aires durante um mês, enquanto ia sendo substituído por um elenco argentino que continuou a apresentar a peça. No outro dia, recebi uma carta de um amigo dizendo que o final, com o elenco argentino, o abraço final de Monteiro a Zé Maria, foi muito emocionante, um momento extremamente humano, de pessoas solitárias e feridas. O texto sabe sempre coisas que o autor desconhece, vai se abrindo, revelando…

UMA ARTE DA RESPONSABILIDADE

JM O espectáculo de Madrid correu muito bem, o resultado foi excelente, havia actores muito conhecidos da televisão e do cinema, o Rivas era interpretado por Guillermo Toledo, um actor que é reconhecido na rua, até costumam chamá­ lo pelo nome da personagem que faz numa série. E depois houve os prémios todos, os Max. Pode se dizer que a peça foi um êxito, não só por terem gostado, mas foi muito falada e trouxe também uma preocupação.
Foi um pouco como o Inimigo do Povo de Ibsen, que este ano adaptei e foi dirigida pelo Gerardo Vera no Centro Dramático Nacional (na nova sala do Valle Inclán). O que Ibsen fez de extraordinário é que, em metade da peça, nos identificamos com o íntegro, honrado e racional Dr. Stockman e, a partir de um certo momento: “mas… o que é que este homem está a dizer?”, o discurso elitista começa a inquietar nos. (Não que cada um de nós não tenha pensado assim pelo menos uma vez, basta ouvirmos em Espanha o canal de televisão mais de esquerda e dizem-nos logo que quem votou no PP é ignorante, está mal esclarecido… Como se só merecesse votar quem pensa como nós, claro.)
Em Hamelin passou se uma coisa parecida, ressalvando as distâncias entre Ibsen e… Mayorga. E é verdade que as personagens estão construídas para responder a estereótipos do espectador: as pessoas viam Rivas, que é acusado de pedofilia, e condenavam no logo. Mas depois, o que acontece é que, sem que fosse diminuída a responsabilidade dele, ela estendia se às outras personagens – e depois ao espectador. Quando ele lança o seu discurso e diz que é fácil julgar e que o monstro está mas é na cabeça do juiz, havia um choque. Foi muito emocionante para muitas pessoas. Gente que chorava, que tinha filhos pequenos, outros que pensavam no tipo de pais que tinham sido. Muita gente recordou se da própria infância. Confessou que tinha sido abusada ou abandonada na infância, ou que tinha conhecido alguém que tinha passado por circunstâncias semelhantes. A peça tocou os espectadores. Havia pessoas que sentiam que, numa sociedade em que há muitas formas de violência sobre as crianças, pode ser hipócrita escandalizarmo nos perante a violência sexual, se, ao mesmo tempo, não nos sentimos escandalizados pelo facto de haver crianças abandonadas, sem educação, pobres. Uma criança pobre é um escândalo. Uma criança sozinha é um escândalo. E isso deveria ser claro para todos. Essa deveria ser, desde logo, a fronteira a que a esquerda não deveria renunciar. Não deveríamos renunciar do ideal da justiça para as crianças, pelo menos.
Eu digo muitas vezes que há uma cultura progre [por progressista: gíria que designa práticas culturais conotadas com a esquerda e politicamente correctas] e uma cultura de esquerda. Uma peça de teatro progre acusa o mal, e faz com que o espectador se sinta bem, acusador e inocentado, faz te sentir mais inocente. E uma peça de esquerda faz te é sentir mais responsável…
Quando surge um caso como este, somos logo convidados à indignação, é fácil passarmos a uma caça às bruxas. Só provas a tua inocência se fores uma voz acusadora. E a acusação é um mecanismo de auto indulgência, claro. E como é difícil perceber as razões de cada um… Se virem bem como falam Monteiro e Raquel – não falam sequer das circunstâncias económicas desta família – vêem que já formularam a sua sentença. Ao escrever Hamelin, parti de uma obsessão, a de Monteiro, que procura um culpado. Primeiro insiste com Rivas, mas não consegue incriminá­ lo, e continua a procurar, utilizando uma estratégia que até é perversa e dominadora (em particular quando acusa a mãe do Zé Maria). Nessa cena, em que ele entra na casa do Chico e da Nanda, ameaça a mulher: “se não me entregas o teu marido, levo os teus filhos.” E ela responde: “leve.” Ela está nas mãos da justiça, está desapossada. Nestes casos, nunca se retira à autoridade dos pais o filho de um importante advogado ou arquitecto. É muito fácil ir a casa dos pobres, pegar neles, declarar incapazes os pais, meter as crianças numa instituição. Todos podem entrar na vida do Zé Maria, e isso já é uma violência.

AJ E invadir a sua intimidade, declarar que os pais não têm meios para os sustentar… Os miúdos pobres são de todos, os ricos são propriedade privada dos pais.

É DIFÍCIL FALAR COM UMA CRIANÇA

AU Por isso há Jaime, o filho abandonado de Monteiro…

JM O pai não consegue falar com ele, ele vive num grande isolamento, como tantos filhos de famílias burguesas, vazios de amor. E Hamelin fala também disso, do quão difícil é… falar com uma criança. Há essa frase na peça. É muito difícil falar com alguém que está numa posição de fraqueza e inferioridade, não utilizar a assimetria dessa relação. É muito difícil um director de companhia falar com os seus actores, porque eles podem estar com medo de ser despedidos. A senhora pode perguntar à criada “que tal esse fim de semana, divertiste te?”, pode perguntar coisas sobre o marido dela, sobre os filhos… Na melhor das intenções. Mas não é recíproco, a rapariga boliviana nunca perguntará à espanhola. Isto tem a ver com Raquel e Monteiro e a sua pretensão de ajudar, invadindo o outro. Raquel está provavelmente a exercer uma violência tremenda com o seu discurso para científico, mete palavras na boca do Zé Maria, está a colonizar o lugar do silêncio. E uma criança é um ser provavelmente desorientado. Há esta assimetria, ao tentarmos falar com alguém que é economicamente mais frágil que nós, cujo posto de trabalho depende nós, ou cuja esperança…
Penso muitas vezes naquele diálogo da Antígona de Sófocles, entre Hémon e Creonte. Creonte é o rei e também o pai de Hémon, e diz lhe: “tu és o meu filho e meu súbdito”, coloca o no seu devido lugar. Mas Hémon responde: “pai, és meu pai e ao mesmo tempo és meu rei, quanto respeito te devo… Estás habituado a que toda a gente te dê razão, e se eu alguma vez te contradisser?” Neste diálogo, o poeta põe em confronto um tipo que pesa 90kg e outro com 70kg. E Hémon vai se impondo, vai ganhando terreno através da linguagem, vai se atrevendo a dizer coisas que ao princípio não diria. E até certo ponto é ele que encerra o diálogo, o maior desafio concebível. Há um morfismo entre poder e linguagem, o poder que ele não tem e as suas possibilidades de dizer, de como dizer. E além do mais conseguiu com que o pai falasse sobre coisas de que nunca tinha aceitado falar… Há uma dissolução ontológica política de Creonte, Antígona venceu através dele, porque o monólogo se converteu em diálogo, criou se um verdadeiro diálogo que não podia ter lugar no princípio.

NINGUÉM DÁ NADA DE BORLA

JM Gonçalo aprendeu que ninguém dá nada de borla, a lição que diz que, quando queremos uma coisa, é preciso outra em troca. E aprendeu a sozinho, a família não tem um discurso ideológico, não tem a capacidade de politizar; têm uma certa consciência de uma injustiça fatal, contra a qual não podem, nem sabem fazer nada, como diz Chico: “tratam nos assim por sermos pobres.” Chico e Nanda têm uma relação de estratégia, o poder não tem nada a ver com eles, tentam chegar a qualquer coisa que a sua vista não alcança, como os que estão fora do Castelo do Kafka, demasiado grande para eles. Tudo o que podem fazer é roubar alguma coisa.
Diz o Kafka: “quando a lei se confunde com o poder, aquele que nada possui é criminoso.” Isto está na base da nossa sociedade. Havendo esta identificação, quem não tem poder está fora da lei. E portanto é culpado, se não sabe qual é a lei, é culpado. Quanto mais perto estivermos do poder, mais bem sucedidos somos. Há um sistema que nos dá cobertura, que recusa o pensamento sobre o passado. Um sistema jurídico pervertido que faz com que, se tivermos um bom advogado, podemos safar nos do que for preciso. Se soubermos qual é o nosso lugar na pirâmide…
Mas estes pais, Chico e Nanda, quando entram no gabinete do juiz, como que entram no templo da justiça, não sabem para onde devem olhar. Serão pais irresponsáveis, muito discutíveis, mas que também não tiveram a educação que lhes permitiria uma consciência, podemos até eliminar a responsabilidade nestas personagens… É uma recordação da minha infância, um colega meu de escola, muito pobre, a quem alguém falou na hipótese de ir para o estrangeiro, e o pai não cabia em si de contente, era um delírio.
Mas temos de pensar que as coisas podiam ter sido feitas de outra maneira, Raquel e Monteiro podiam tentar que o Zé Maria tivesse ficado em casa, que o pai arranjasse um trabalho digno, mas isto é muito difícil e muito caro. É mais fácil retirar a criança aos pais. Monteiro podia ter tentado encontrar se com Chico, podia não ter invadido a vida do Zé Maria com a sua tese, tê­ lo deixado falar. (Já o Jaime, filho de Monteiro, é um miúdo que tem muitas probabilidades de acabar mal, mas é certo que, por ser de uma classe mais alta, poderia ser ajudado mais facilmente.) Podemos dizer que a peça é sobre as condições de violência subjacentes a uma sociedade, em que pode haver uma parte da população que vive uma situação trágica, no sentido em que qualquer solução cria uma contradição e um paradoxo.

AU Há duas personagens que vão ser abandonadas, Gonçalo e Rivas, não têm redenção…

JM Gonçalo é um Zé Maria, até poderia ser feito pelo mesmo actor, um Zé Maria que já passou por aquilo, para quem tudo o que resta é negociar. Perdeu a esperança, tem um comportamento indigno, torna se o transmissor dos presentes de Rivas sabendo que há uma violência sexual ou não. Gonçalo é um Zé Maria a quem roubaram a infância. Rivas ultrapassou a última fronteira, chegou à opinião pública e fica sem nada. Mas há todavia um afecto, está apaixonado, à sua maneira, por esse anjo que é o Zé Maria, é o seu único sonho. Até a mãe de Rivas sabe que ele é um pedófilo, ou que está a ser tratado como tal…

AU A peça é sobre as crianças…

JM Um conceituado crítico espanhol disse uma coisa que me agradou, interpretava a peça como uma expressão da desorientação da nossa sociedade. Estamos mais conscientes do que nunca, criamos mais mecanismos de análise e a nossa linguagem depurou se, temos profissionais. No El País publicam uns contos aos domingos – este domingo saiu o Lazarillo de Tormes, e eu estive a lê­ lo com o meu filho Miguel. Aquilo é terrível, o rapaz chega ao pé do que vai ser o chefe, e o chefe dá­ lhe logo uma bofetada, “é para veres como a vida é difícil”. E todas as aventuras, bastante cruéis, aliás, são esta espécie de preparação para a violência da vida.
Hamelin não pretende ser uma obra sociológica nem de política imediata, é uma peça de esquerda, quer ver mais do que aquilo que nos é dado ver nos media. Eu lembro me que comecei a pensar na peça quando li num jornal um artigo que dizia “pais alugavam o filho por trinta mil pesetas a um pedófilo”. E, perante esta brutalidade, ponho me a olhar para a história, vejo um homem, um pai, uma mãe, uma criança e um escrivão. E o que proponho não são grandes teses, é construir uma história que sirva para as pessoas ligarem as suas experiências, quero um teatro que seja parte da cidade, quero fazer representações da vida que sejam úteis às pessoas, através das emoções, da representação de ideias e através, claro, do entretenimento, da construção de uma história que quer ser apaixonante.

III – NO INSTITUTO CERVANTES, DEPOIS DA ESTREIA

Estreámos Hamelin a 12 de Abril de 2007. A conversa em Madrid fez nos pensar em muitas coisas. O elenco foi alterado, decidimos não fazer desdobramentos dos actores, entraram para o elenco Elsa Galvão, Ana Lázaro e Sérgio Conceição. A 20 de Abril de 2007, a convite do Instituto Cervantes, Mayorga veio ver o espectáculo. Ao fim da tarde desse dia, mesmo antes de ver a representação, encontrámo nos no Auditório do Cervantes. A conversa foi moderada por Luís Henriques (da revista Intervalo) e Jorge Silva Melo.

O TEATRO PORQUÊ?

JUAN MAYORGA Quando comecei, há cerca de vinte anos, muita gente me desencorajava em relação ao teatro, diziam que devia era escrever romances, que dedicasse a minha escrita a outra coisa. Mas o teatro é o meio mais eficaz que conheço para partilhar o meu espanto perante o mundo. Não conheço outro meio tão poderoso para falar sobre como o mundo é estranho, e pode ser belo e cruel. Escrever para teatro é um privilégio. Tal como o romancista, o autor de teatro pode contar histórias. Tal como o poeta, pode aprofundar a língua. Mas, de uma maneira diferente do narrador e do poeta, tem a sorte de a sua palavra ir ser deslocada e interpretada por outros: pelo encenador, pelos actores, que vão levar os seus textos até lugares que, para ele, seriam imprevisíveis. E pelos espectadores, que vão receber o que ele imaginou de uma forma colectiva e presente. Isso é formidável.
Eu, que já escrevi Hamelin, vou esta noite ao teatro para ver a vossa representação com imensa expectativa, porque tenho a certeza que não vai confirmar as minhas ideias feitas sobre a peça. Há personagens e situações que vão ser reveladas de uma maneira que eu nunca previ. E isso vai acontecer perante espectadores que vão completar a peça de uma maneira também inesperada para mim.
Durante muito tempo, os apocalípticos andaram a aborrecer nos com diagnósticos da sua morte iminente, mas eu julgo que o teatro é uma arte do futuro. É a arte que tem mais futuro. Há bocadinho estávamos a falar, o Jorge e eu, de como o teatro, na sua simplicidade, na sua pobreza (e o que é o teatro a não ser uns actores a representar em frente a espectadores?), é uma arte tremendamente flexível e capaz de dar uma resposta urgente às preocupações colectivas. Isso faz com que, se, por exemplo, nos inquietarem as prisões clandestinas que, pelos vistos, existem na Europa para os suspeitos de terrorismo, o Jorge e eu podemos decidir fazer uma peça e, daqui a dois meses, chamar vos para falarmos sobre isso. Outras artes dependem de condições de possibilidade que as tornam impossíveis. Participo da visão de teatro que tem um autor francês que admiro, o Enzo Cormann, que fala de “assembleia teatral”. Para ele, os actores não são seres extraordinários que vêm de uma nuvem de Júpiter. São pessoas como nós, delegadas por nós para representar ficções através das quais podemos analisar a nossa vida. Isso sempre foi o teatro, desde os gregos, uma assembleia, uma cidade que delegava em alguns a representação de ficções. E, nesse sentido, não há arte mais poderosa e mais bonita do que o teatro. De forma que à pergunta “porquê o teatro?”, eu responderia: “como não o teatro? Há outra coisa para além do teatro?”

A TRANSMISSÃO DA EXPERIÊNCIA

LUÍS HENRIQUES A narrativa que está por trás de Hamelin, a do flautista, é sobre uma cidade que se fechou sobre si mesma. Num texto de Walter Benjamin há uma história que é o inverso desta, de um homem que tem uma vinha e que está moribundo. Chama os filhos e diz lhes: vou morrer, mas vocês ficam a saber que, escondido na vinha, está um tesouro. Eles esgravatam a vinha, procuram por todo o lado, mas não o encontram. Até que vem o Outono, e a vinha é uma das mais férteis da região. Esta história partilha com Hamelin a ideia da transmissão da experiência – que em Benjamin é feliz, pode ser feita através da narração. Em Hamelin, estamos na negação, no bloqueio da transmissão. No entanto, no final de Hamelin, há um sinal de ordem diferente. Acaba mesmo por ser um ponto de partida para repensar uma comunidade, com base nessa impossibilidade da transmissão da experiência. É um esforço que, presentemente, está muita gente a fazer, seja no teatro, seja através de textos ou das artes gráficas: como é que se repensa uma comunidade, a transmissão da experiência?

JM Nunca tinha visto Hamelin nesse sentido. Mas a tua interpretação parece me muito coerente e justa. De facto, Hamelin fala de uma cidade e de uma sociedade desorientadas. Nessa desorientação é fundamental a impossibilidade de transmitir a experiência. Hamelin é uma história de pais e filhos. De pais que não o sabem ser. Que não conseguem encontrar um modo de transmitir a sua experiência.

LH Repete-se muito na peça que o mais difícil é falar a um filho. É um verso que se repercute.

JM Efectivamente, se a palavra é o meio por antonomásia para a transmissão da experiência… No entanto, em Hamelin, esta promessa, esta capacidade de transmitir experiência, fracassa e, pelo contrário, converte se, uma e outra vez, em modo de exercer violência, em instrumento de domínio dos seres humanos uns sobre outros. Há personagens que têm uma enorme capacidade de linguagem, que têm dois discursos coerentes: o juiz, a psico pedagoga. E utilizam esta linguagem fundamentalmente de um modo narcisista, para fortalecer a sua posição e, de certa maneira, para criar um campo em que estão inocentes e fora do qual está o mal, a culpa.
Há uma coisa que, quando tentamos fazer um teatro responsável, temos de evitar, que é pretendermos colocar nos no lugar da vítima, falar por ela. No máximo, aquilo a que podemos aspirar é a reconhecer o seu silêncio, tornarmo nos o seu eco, daquilo que não pode ser dito. Em Hamelin, a criança nunca fala, porque para falar tinha que se criar uma sociedade em que o mais fraco, o mais desprotegido, se sentisse capaz de nos transmitir o seu segredo. Pelo contrário, as forças que, supostamente, querem ajudá­ lo e salvá­ lo invadem o seu mundo.
Como sabem, tenho uma grande admiração por Walter Benjamin e ele, a certa altura, diz que a escola nunca deveria ser o lugar de dominação de uma geração sobre outra, mas sim o lugar de encontro entre duas gerações. Essa ideia é extraordinária, belíssima. E de alguma forma devia ser alargada à sociedade, devia ser não apenas o modelo de uma escola, mas de uma sociedade em geral. Uma sociedade sã, poderosa, é aquela em que as gerações se encontram. Em que as gerações mais experimentadas são capazes de transmitir experiência sem dominar, em que, ao mesmo tempo, a geração que aparece, que vem carregada de perguntas, é capaz de se enriquecer pela experiência dos outros, e também de a desestabilizar. Quando isso não acontece, há uma incomunicação, que leva a que as gerações se riam umas das outras.

COPITO TIRA A MÁSCARA

JM No que diz respeito a Copito de Nieve, a origem da peça é… Vocês não devem conhecer a figura, o animal mais famoso de Espanha chamava se Copito de Nieve, era um macaco que estava no Jardim Zoológico de Barcelona, um macaco albino. Era branco devido a uma doença da pele, mas isso tornou o especial. Quando eu tinha quinze ou dezasseis anos interessei me por essa personagem porque, um dia, vi um documentário na televisão em que estava o tratador do zoo de Barcelona a falar das qualidades do Copito, se o Copito tal, se o Copito assim, se é o único no mundo, e a certa altura disse, nunca me vou esquecer, “o Copito é muito mais valioso que o panda do zoo de Madrid”. E eu pensei: mas porquê Madrid? E então percebi que aquele macaco era mais que um macaco.
Há poucos anos, chegou a notícia de que o Copito estava mortalmente doente. Houve debates na cidade, sobre se o Copito tinha direito ou não à eutanásia. Se se deveria ou não fazer uma estátua do Copito. Se a estátua deveria ser figurativa ou não. Se os seus restos deveriam ser entregues ao Museu da Ciência. E toda a cidade foi despedir se dele. Pareceu me muito interessante que gente que, provavelmente, já não se lembrava em que lar tinha deixado o avô, fosse ver o Copito. E quando o Presidente da Câmara de Barcelona disse, a certa altura, “Copito foi um cidadão exemplar”, eu pensei, mas que ideia de cidadania tem este homem… E pensei que este Copito merecia uma peça de teatro e, com alguns amigos de Barcelona, com o meu amigo Benet i Jornet e outros, propusemos que se escrevesse uma peça à volta do Copito. Mas ninguém se interessou, e eu é que acabei por fazer.
O que acontece nesta peça é que o Copito tira a máscara. Copito foi um actor que teve que fingir simpatia, que gostava das pessoas, tinha um sorriso para toda a gente. Mas o seu último momento é, paradoxalmente, o momento da liberdade. Agora que tem uma doença mortal e não tem nada a perder, desmascara se, transmite a sua experiência, conta a sua verdade aos meninos de Barcelona – e, portanto, a todos os espectadores. E a sua verdade é terrível.

AS ADAPTAÇÕES DO SR. LOBO

JORGE SILVA MELO Há bocadinho o Juan falou da escola como lugar de encontro entre gerações. No teu teatro há também a linha das adaptações que fazes. Pegas em Ibsen, n’O Inimigo do Povo, no Dürrenmatt, na Visita da Velha Senhora, pegas em Lope de Vega, Fuenteovejuna, e trata los num encontro de gerações. Não te deixas subjugar pelo mestre, trata los de igual para igual, isso é muito raro. O espectáculo O Inimigo do Povo era a reflexão de um homem livre perante outro homem livre. Juan Mayorga perante Ibsen. E é desse encontro de séculos entre Juan e Ibsen que aquela verdade de Ibsen… Como é que fazes as adaptações?

JM Creio que um adaptador é fundamentalmente um tradutor. E pela segunda vez esta tarde vou falar de Walter Benjamin. No texto A Tarefa do Tradutor, ele diz que o importante numa tradução não é a correspondência directa entre duas línguas, mas aquilo que é intraduzível. É isso que põe em tensão a língua de chegada, fá­ la crescer a partir das exigências da língua de partida. É o que obriga o tradutor a explorar a sua própria língua, a aprofundá­ la para descobrir alguma coisa, uma cavidade que de algum modo consiga trazer aquela energia da língua de partida. É uma bela noção da tradução, que tem muito a ver com o mundo do teatro, que é um mundo de sucessivas traduções. Em Hamelin, há uma primeira tradução do António Gonçalves para português, depois há outra que os Artistas Unidos fazem, levando o texto ao seu próprio mundo teatral, e há uma última tradução, que é a que faz cada espectador, deslocando o até lugares inesperados.
Quando trabalho como adaptador, sinto me radicalmente um tradutor. Às vezes, tenho que trabalhar traduzindo dentro da mesma língua: quando trabalhei O Monstro dos Jardins de Calderón de la Barca, ou Fuenteovejuna ou La Dama Boba de Lope de Vega, trabalhei entre dois momentos da minha própria língua, mas também como um médium entre dois sistemas teatrais, porque o sistema teatral barroco não coincide com o contemporâneo. Isso pode requerer certas intervenções, e às vezes o meu trabalho é muito mais radical, por exemplo, como fiz agora, num texto do século XIX, do Ibsen. O tradutor/ adaptador tem que tentar compatibilizar duas fidelidades, a fidelidade ao texto original e a fidelidade ao espectador contemporâneo – que, às vezes, entram em tensão. Há uma dupla obrigação de zelar pela complexidade da obra original e também de ser capaz de construir uma experiência presente, para o espectador de hoje. Dito isto, o trabalho de adaptação, que tento fazer com honra, às vezes suscita me problemas morais. Um dia hei de escrever um texto a que poderia chamar “Problemas morais do Sr. Lobo”. Lembram se que, no filme do Tarantino, Pulp Fiction, há um tipo interpretado pelo Harvey Keitel, o Mr. Wolf – Sr. Lobo? E a missão dele é limpar os vestígios do crime. Ele não mata, não tem as mãos manchadas de sangue, mas vive do crime. Quando há um crime, chamam no a ele para limpar as marcas. E, às vezes, é este trabalho que se pede ao adaptador. Muitas vezes, os encenadores chamam me para pegar num texto e o transformar noutra coisa. Há esta peça clássica que terá a ver com a guerra no Iraque – mas nem sempre é assim. Então pedem-te que faças um trabalho de torção, para que daqui se chegue ali. E, ao fazê­lo, estás provavelmente a trair o original e também a trair o teu público. Porque estás a revestir do prestígio que o original oferece um produto que nem sequer é contemporâneo – é actual no pior sentido da palavra, no sentido em que amanhã vai valer menos que o jornal de ontem. E acho que isso deve ser evitado: muitas vezes encontramo nos com adaptações de textos clássicos em que houve mão do Sr. Lobo.

O RAPAZ DA ÚLTIMA FILA

JM Depois de Hamelin, escrevi O Rapaz da Última Fila, que estreou no Festival de Outono numa encenação de Helena Pimenta. É uma peça sobre a escola e a família, onde se encontram duas personagens, duas aves raras. Uma é um professor de literatura, de liceu, Germano, que terá uns 50 anos. Escolheu esta profissão porque pensava que lhe ia permitir viver em contacto com os grandes livros, e transmitir o seu amor por eles. O que acontece é que, no final da sua carreira, é um homem que não foi capaz de entregar a sua experiência, é um homem sem herdeiros – como tantos professores espanhóis dessa idade, sobretudo do lado das humanísticas, literatura, história, filosofia, sentem uma enorme solidão de cada vez que entram na aula, que não conhecem aqueles adolescentes e também não são conhecidos por eles – nem reconhecidos. É um homem livro, para quem a pergunta fundamental para um ser humano é: Tolstoi ou Dostoievski? Este Germano, um dia, está a tentar explicar a noção de ponto de vista aos alunos e, para isso, pede lhes que escrevam sobre o que fizeram no último fim de semana. E entre redacções horríveis descobre uma, inesperada pelo seu conteúdo e forma, que é a da outra personagem especial, o rapaz da última fila. Aí produz se um encontro complexo, cheio de desencontros. Esta peça tem alguma coisa a ver com a minha própria experiência – eu fui professor do secundário, de rapazes, e continuo a sê­ lo, sou professor de liceu em licença, é como a ordem sacerdotal, é­ se para a vida. Uma das coisas que descobri quando era professor é que ninguém escolhe a última fila em vão. Nem sempre um rapaz a escolhe por ser o malandro, a última fila é aquela de onde se vê todos os outros sem se ser visto – é a fila do escritor, do artista.

LA TORTUGA DE DARWIN

JM Há ainda duas peças que vão estrear em Espanha no início da próxima temporada e que têm animais. Porquê os animais? Porque permitem, desde sempre, dizer e fazer coisas que não seriam, provavelmente, consentidas em personagens humanas. Escrevi uma peça que se chama La Tortuga de Darwin. A origem é uma fotografia que, se calhar, viram nos jornais no ano passado, quando se anunciou que Harriet tinha acabado de fazer 175 anos. Vocês se calhar sabiam, mas eu não sabia, que, na sua viagem, Darwin tinha trazido no Beagle algumas tartarugas, e puseram nas no Jardim Zoológico de Sidney, na Austrália. Vi então essa fotografia de Harriet, que tinha 175 anos, e pensei: que personagem tão interessante, esta tartaruga, viu a Revolução de Outubro e viu a Perestroika. Tem uma perspectiva. E viu a de baixo, viu a história desde baixo. E decidi escrever uma peça sobre uma tartaruga. Inventei que esta tartaruga veio com o Darwin no Beagle, está no jardim, mas fica muito aborrecida e aproveita para fugir. E encontra se no Soho com o Karl Marx, que anda por lá no exílio, lê uma segunda versão corrigida do Manifesto Comunista, descobre que há um espectro que ronda a Europa e quer conhecê­lo. Vê a história da Europa.

LA PAZ PERPETUA

JM A outra peça que escrevi acerca de animais chama se La Paz Perpetua. Há uns anos, o director do Centro Dramático Nacional propôs me que escrevesse uma coisa sobre terrorismo, e isso pareceu me muito difícil. A partir da minha própria experiência de cidadão num país tão castigado pelo terrorismo, como escrever sobre ele sem reproduzir o horror que já está nos jornais, sem manipular sentimentalmente o espectador, tentando perceber as causas, mas sem cair na compreensão justificadora…? Por fim, decidi escrever uma peça sobre cães que detectam explosivos. São três cães que estão a competir por um lugar num grupo de elite de detectores de explosivos. O concurso tem várias provas: uma prova física, um exercício psicotécnico, uma entrevista pessoal e, finalmente, uma prova surpresa, que é decisiva. Uma das perguntas que fazem aos cães é: defina em 25 palavras a noção de terrorismo. E os três cães dão respostas diferentes. Ou perguntam lhes como qualificariam os espanhóis que defrontaram os invasores franceses na Guerra da Independência: são terroristas, são revoltosos, são tropas irregulares? E a perplexidade com que os cães recebem estas perguntas pode reflectir aquela que também nós podemos ter em relação à questão.

O TEATRO E A ARIDEZ DO PENSAMENTO

JSM O que é extraordinário no teatro do Juan é que ele trabalha temas aparentemente muito áridos, parecem temas pouco vividos, seriam mais da área do ensaio, da filosofia. Mas quando o lemos ou vemos, não levantamos esta questão. O mistério do Juan Mayorga é que os temas principais dos nossos momentos históricos estão ali, não tanto encarnados em personagens, mas no diálogo permanente entre várias personagens.

JM Em princípio, o reino da filosofia e o do teatro pareceriam infinitamente separados, porque o reino da filosofia é o reino do abstracto, das ideias puras, e o reino do teatro é o do concreto, dos corpos, dos actores e dos objectos significativos. No entanto, pelo menos desde o século V a.C. que alguns grandes foram capazes de tornar concreto o abstracto. Sófocles, na sua Antígona, conseguiu apresentar de forma concreta um conflito extremamente complexo e elevado, que deu lugar a muitíssimas interpretações filosóficas. Claro que o teatro tem de ser entretenimento e emoção mas, quando é capaz de provocar boas perguntas, de abrir um debate, de desestabilizar os preconceitos do espectador, então o teatro é superior. Não há muitos sítios onde pensar, e temos de decidir se queremos que o teatro seja um deles ou não. É bom que o teatro seja um sítio onde, além do mais, se possa pensar e discutir. Onde se possa dizer aquilo que não é possível dizer noutros lugares. Aquilo que os jornais e as televisões não vão colocar como questão.

CAMINHO DO CÉU: A INVISIBILIDADE DO HORROR

LH Hamelin tem um enredo relativamente simples e, de início, as personagens parecem estar fixadas mas, a partir de certa altura, tudo ganha uma grande complexidade. E há um jogo, um vaivém entre o que se passa no teatro e o reconhecimento de que o teatro está fora. Caminho do Céu é uma peça sobre outra peça, sobre as encenações do poder. É muito curioso o modo como trabalhas: as coordenadas aparentemente estão dadas, mas perdem se. A tal pobreza de meios também contribui para isso, são deixados de lado os aspectos mais espectaculares para se privilegiar sobretudo a complexificação de situações.

JM Caminho do Céu – cujo título é também Himmelweg, que é a expressão alemã correspondente – é uma peça que nasce quando eu descubro uma coisa que, se calhar, vocês já sabiam todos, mas eu não sabia. Em 1943, houve um delegado da Cruz Vermelha que foi a Auschwitz e à cidade gueto de Theresienstadt na Checoslováquia, e emitiu um relatório favorável aos interesses nazis. Ouvi falar disto numa conferência e quis logo escrever uma peça sobre este homem. Pareceu me extremamente interessante a história de alguém que tenta ajudar as vítimas e acaba por ser cúmplice dos carrascos, por olhar para o outro lado. Parecia se com muita gente à minha volta, se calhar parecia se comigo. E, a partir dele, escrevi uma ficção que tem alguma coisa a ver com o que aconteceu historicamente: este homem que assistiu a uma mascarada, a uma peça de teatro: os presos judeus foram obrigados a fazer uma representação de uma vida normal. E ele tomou-a por normal, e assim a apresentou ao mundo. Ele, que tinha de ser os olhos do mundo, apresentou a mentira.
Creio que um dos temas desta peça é a invisibilidade do horror. O delegado da Cruz Vermelha foi enganado por uma muito má representação, porque, na realidade, o que o engana é a sua própria incapacidade de ver o horror. Isto tem a ver com o que acontece connosco: queixamo-nos muito dos meios de comunicação, que nos enganam e nos apresentam… Nós, espanhóis, não precisamos de grandes esforços por parte dos meios de comunicação para nos negarmos a ver aquilo que acontece no Estreito de Gibraltar, aquilo que acontece com os barcos à noite. Para ver o horror temos de ser muito fortes, porque levar a sério a noção de direitos humanos e olhar assim o mundo obrigar-nos-ia a alterar a nossa vida de forma radical… Só os mais fortes conseguem, e eu não estou entre eles.
A peça fala também de como o segundo castigo, o segundo modo de dominar as vítimas, é fazê­las partilhar o discurso dos carrascos. Os judeus, na peça, são obrigados a mascarar a sua própria tragédia – e isso também tem a ver com aquilo que ocorre no nosso tempo. Por exemplo, lembro-me quando o Tony Blair foi ao Iraque depois da guerra: apareciam as crianças com as bandeiras, e isso foi difundido em todas as televisões do mundo. Caminho do Céu parte de um acontecimento histórico concreto, mas quer falar com o nosso próprio tempo. Há uma personagem, a personagem que fecha a peça e que canta qualquer coisa, que eu nem me atrevo a dizer o que é. De alguma algum modo, a peça está escrita para que no final só se oiça o silêncio dessa personagem, o silêncio dessa menina.

A SUA PRESENÇA NÃO HUMILHAVA

JM Isto também tem a ver com Hamelin. No espectáculo em Madrid, o actor Roberto Álamo, que fazia de Zé Maria, dizia que não percebia a frase “não há nada mais difícil do que falar com uma criança”. Eu acho que é verdade. Como falar com uma criança sem lhe meter medo? Como falar, em geral, a alguém que é mais fraco sem utilizar a altura que temos sobre ele, sem o invadir? E como ouvir uma criança, fazendo com que nos fale com sinceridade, sem estar a negociar? Para falar com uma criança temos que nos transformar de alguma maneira em crianças, e é disso de que fala Hamelin. As duas crianças da peça, Zé Maria e Jaime, estão sozinhas, estão rodeadas de desamor, porque não há ninguém que efectivamente os ouça. Não há ninguém que não utilize o poder que pode exercer sobre eles.
Há um momento no Castelo de Franz Kafka, uma descrição da personagem do mensageiro, estou a citar mal de certeza, mas ele diz: “estar junto dele tinha qualquer coisa de belo, a sua presença não humilhava.” Bom, isto é o anjo, o bom tradutor. Alguém que é capaz de se afastar, de se colocar em frente ao outro, mas deixando que ele seja aquele que realmente fala, que o outro tenha confiança para dizer aquilo que nunca teria dito numa situação de violência.

JSM O Juan falou do delegado da Cruz Vermelha, descreveu o, e depois disse: “este homem parecia-se com muita gente que eu conheço, e talvez até se parecesse comigo.” É quando começa a dizer que cada uma das suas personagens talvez até se pareça com ele que todas elas passam a ser oscilantes. Na escrita do Juan, há um pêndulo entre o facto real (o acontecimento, que é normalmente simples), o dizer e a perspectivação. Também diz de algumas personagens: “não lhe dei as oportunidades que poderia ter dado.” Disse o de uma personagem no Hamelin. Trata as no tal encontro da escola de Benjamin, um encontro desejável entre gerações diferentes, aqui entre personagem e autor. Para criar a oscilação.

JM Oxalá seja assim. A mim parece-me bem que o espectador saia do espectáculo mais rico de experiência do que entrou. Que sinta que alguma coisa aconteceu em si – como quando se conhece outra pessoa ou se teve uma conversa que, de alguma maneira, nos tocou. Uma experiência que se transformou em memória na sua inteligência e no seu coração. Se isso acontece, sinto-me recompensado.
Nos tempos que correm, julgo que não é mau recuperar uma certa noção de teatro político. Que não foi inventada por Brecht, está nos gregos clássicos. Um teatro que seja capaz de chamar a atenção, provocar uma conversa, sobre problemas que partilhamos, desorientações e perplexidades. Quando escrevi Hamelin, tentei que fosse esta a experiência do espectador.

NÃO NOS CALHARAM OS TEMPOS DE KANT

JM Em La Paz Perpetua, a tal peça dos cães, há cinco personagens. Há três cães jovens que competem pelo lugar, há um cão veterano (que é um cão ferido, é aquele que os examina) e há uma quinta personagem, um ser humano. Esse ser humano é alguém que aparentemente faz limpezas, depois descobrimos que é um político. É ele que vai fazer a prova decisiva.
Há um cão, que se chama John John, que foi um cão educado desde sempre para lutar e, ideologicamente, não tem qualquer dúvida sobre o facto de haver o mundo dos bons e o dos maus. Outro cão é um mercenário – a certa altura, o instrutor pergunta lhe “mas você está de que lado?”, e o cão mercenário diz: “de que lado é que você quer que eu esteja? Se quer que eu julgue que é dos bons, pague me.” E há um terceiro cão, que era de uma rapariga cega que estudava filosofia – ela lia as aulas em voz alta e assim o cão aprendeu filosofia. Conheceu o optimismo de Kant, a ideia de uma Europa unida, de uma paz cosmopolita, etc., esse sonho maravilhoso que hoje nos parece terrivelmente ingénuo. E decide entrar no grupo porque lhe aconteceu uma coisa horrível, perdeu a dona que amava num atentado. Então ele tem um compromisso, as razões dele são muito diferentes das do mercenário e do cão treinado ideologicamente. Tudo aquilo que ele sabe de Kant fica desestabilizado a partir do atentado. Porque a própria noção de paz perpétua hoje, em 2007, é uma ideia ingénua. Por outro lado, é recuperada, paradoxalmente, pelos nada ilustrados George Bush, ou pelo nosso ex presidente José María Aznar e outros políticos que parecem convencidos, ou pelo menos é esse o seu discurso, de que há uma guerra contra o terrorismo que se poderá ganhar a curto ou médio prazo através de acções militares – e que depois virá a paz, a tal paz perpétua. Ou por exemplo Tony Blair, quando diz que esta é a tarefa da nossa geração. Com esta retórica formidável.
Não se reconhecem as contradições subjacentes ao fenómeno, à violência terrorista. E reconhecê­las não implica justificá­lo nem compreendê­lo, acho que fica claro na peça. Para mim, não é aceitável que um ser humano mate outro por uma ideia ou por uma causa. Mas também é preciso ver que é hipócrita considerar que o terrorista é o perverso absoluto e que, no nosso mundo ameaçado, todos somos inocentes – como se fôssemos inocentes, por exemplo, da inacreditável situação que se vive no terceiro mundo.
Mas então este cão – que se chama, parodicamente, Immanuel Cão, é uma piada de mau gosto, ele diz: “foi a rapariga que me deu o nome, tinha esse género de humor…” No fim, há uma prova secreta – vou já revelá­la, estamos em família. A prova a que o submetem é se exerce ou não a tortura sobre um terrorista. Em La Paz Perpetua, a prova decisiva é: tu, o que é que fazes nesse caso? Tens aí um terrorista que pode ter uma informação fundamental, que pode impedir um atentado maciço. Vais torturá­lo ou não? E o cão pergunta se a si próprio o que é que Kant faria. E, como lhe diz o instrutor, Kant viveu noutro tempo… Quem me dera voltar aos tempos de Kant – mas calharam-nos os nossos tempos.
E é uma questão muito importante, que está no ar. Sabemos o que se está a passar em Guantánamo, em Abu Ghraib. E como o senador McCain disse, quando defendeu a nota que proíbe a tortura em qualquer situação, “não se trata deles, trata-se de nós próprios”. Se realmente se trata de defender, não só interesses e alguma segurança, mas também valores, não podemos traí­los neste combate. Embora defender esses valores possa ser uma medida mais ineficaz a curto prazo.
Há uma noção, que alguns de vocês com certeza conhecem, que Primo Levi pôs em circulação em Náufragos e Salvados, a segunda parte da sua trilogia sobre Auschwitz. Levi fala da zona cinzenta, aquela zona em que é difícil diferenciar a vítima do carrasco. Curiosamente, há um par de meses, o ex Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Joschka Fischer, usou esta mesma expressão para falar do combate contra o terrorismo, disse que o mundo está cheio de zonas cinzentas. Os estados europeus estão, por um lado, a fazer o discurso contra a tortura, a favor das garantias individuais, dos direitos humanos – e também dos direitos dos terroristas ou suspeitos de terrorismo – mas por outro estão a aceitar que haja prisões secretas na Europa, que os aeroportos europeus sirvam para transportar presos para zonas onde podem ser torturados legalmente. Se o consentirmos, a Europa inteira está a converter-se numa zona cinzenta. Quando eu era pequeno, perguntava-me quem é que atribuía as cores aos países nos mapas, porque é que um país era cor de rosa e o outro verde. Agora corremos o perigo de que o cinzento se estenda pelos nossos mapas.

OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO

JM Se podemos falar e reflectir sobre uma ética da representação, a Shoah, Auschwitz, é o caso limite. Por um lado, é necessário olhar uma e outra vez para lá, mas é terrivelmente arriscado fazê­lo, têm de se tomar todas as cautelas.
É necessário o permanente exercício de memória daquilo que aconteceu, da grande crise da Europa, da tragédia do extermínio dos judeus. Julgo que não há acontecimento que tenha uma tal capacidade, no presente e no futuro, para fortalecer a nossa vigilância e a nossa resistência contra formas de dominação do homem pelo homem. Porque creio que no campo de concentração, no lager, se produz uma aceleração da história, uma tensão extrema que revela aspectos da condição humana que estão sempre aqui, próximos de nós, formas de amizade e inimizade. Nesse sentido, é preciso que todos voltemos ao campo de concentração. Mas temos de conseguir que essa recordação não seja paralisante, meramente deprimente, mas, pelo contrário, que seja um meio para a felicidade. Um meio para estarmos atentos às formas de humilhação de que somos capazes. Não creio que baste o luto passivo, ou o remexer nas feridas.
Ao mesmo tempo, a rememoração, a representação em particular deste caso extremo de violência tem muitos riscos. Fala se de uma indústria cultural do Holocausto, e boa parte dela é perversa. Porque há obras sobre o Holocausto, romances, cinema, teatro, que querem apenas recolher o prestígio do Holocausto, ganhar aquilo a que poderíamos chamar o glamour do lager. Mas os riscos têm que ser tomados como exigências por todo aquele que de novo tome a seu cargo aquele acontecimento.
Creio que há sintomas alarmantes no nosso tempo, e que aqueles que chamam a atenção para certos aspectos do Holocausto, que se reproduzem ou têm eco no presente, não são exagerados. Quer dizer, aquele acontecimento é irrepetível, e seria banalizá­ lo dizer que hoje vivemos num campo de concentração. Mas reconhecer, como fizeram pessoas como Agamben, a existência de um paralelismo…

LH O estado de excepção tende a generalizar-se, é um outro nome para a zona cinzenta, que vai tendo gradações…

JM Exacto. Ao ler recentemente documentos a propósito do debate sobre a tortura, descobri que, quando no Congresso americano se aprovou a emenda de McCain, que se refere à exclusão total da tortura em qualquer caso, George Bush, quando a assinou, fez um parêntesis e recordou que, na medida que essa emenda é coerente com a Constituição, ele é o último intérprete da Constituição, o seu intérprete actual. Faz-me lembrar aquele artigo de Carl Schmitt: “Der Führer schützt das Recht” [“O Führer protege o Direito”]. Se o poder executivo é a própria fonte do direito, e portanto da legalidade, vivemos num estado de excepção permanente. Creio que aqueles que nos advertem para a importância de não se aceitarem zonas cinzentas, de se defenderem as garantias, de se reconhecerem os direitos humanos – e não meramente os direitos de cidadania associados a papéis ou documentos – estão a chamar-nos a atenção para uma realidade muito importante, para que o futuro não se pareça com aquele terrível passado.

LH Lembro-me de estar, há pouco tempo, a comentar um episódio em Portugal, e se se justificava uma determinada acção de um político. E pergunto-me, pensando no caso Watergate nos Estados Unidos, se hoje em dia não haveria tendência a relativizar também essa situação: “puseram uma escuta, ah, mas isso é o que todos fazem…” Parece-me que em muitas situações, umas menos graves, umas mais, isso vem sucedendo, é tudo justificado por uma questão de política real, ou qualquer coisa do género. Isto tende a alargar o estado de excepção, a tal zona cinzenta.

JM Em Espanha vivemos esse debate político.

LH Talvez por não haver mais teatro, o tipo de discurso é agora muito mais publicitário, televisivo, corre depressa, deixou de haver aquele pressuposto de não sabermos exactamente se se está a mentir ou a dizer a verdade, procuramos sinais superficiais. Uma das vantagens de uma peça como Hamelin é que é muito mais denso o trabalho do pensamento em torno daquilo que as pessoas dizem umas às outras…

JM A certa altura, em Hamelin, o Comentador diz: “Hamelin é uma peça sobre a linguagem.” Sobre como cresce a linguagem, como se transforma a linguagem, de como a linguagem uma e outra vez exerce a violência directamente, ou mascara a violência. Talvez eu nunca tenha escrito sobre outra coisa.

Transcrição, tradução e edição das conversas: Ana Fernandes, Andreia Bento, António Simão, Inês Boino, Joana Frazão e Jorge Silva Melo.

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