A INQUISIÇÃO de Tiziano Fratus
Um homem de olhos abertos no centro do vasto turbilhão
Em Julho de 2004, os Artistas Unidos de Jorge Silva Melo trouxeram a Portugal alguns dos dramaturgos que estão a renovar activamente – com uma espécie de fúria benigna – o teatro italiano.
Referimo-nos a nomes como os de Fausto Paravidino, Davide Enia, Ascanio Celestini e Letizia Russo (todos muito jovens), além desse homem magnífico e sem idade que é Antonio Tarantino. Com eles, veio um crítico teatral atentíssimo mas discreto, Tiziano Fratus, também conhecido em Itália como um dos mais originais poetas surgidos nos últimos anos.
Fruto de várias afinidades electivas (a começar pela aliança entre os Artistas Unidos e a Editoria & Spettacolo, de Roma; a que se juntaram os apoios da Casa Fernando Pessoa e do Instituto Italiano de Cultura), surge agora em versão portuguesa o muito extenso, muito livre e muito belo poema a inquisição, talvez a obra maior de Tiziano Fratus até ao momento e revelação extraordinária de um autor que se coloca, em vários sentidos, à margem das principais correntes estéticas, culturais e ideológicas do nosso tempo.
Importa dizer desde logo que esta é uma poesia da desmesura, feita de progressivas acumulações e camadas geológicas, uma sucessão de círculos que se alargam cada vez mais e abarcam virtualmente todas as coisas. É uma escrita omnívora, determinada a engolir o mundo inteiro (este mundo desvairado em que vivemos), na procura de um sentido, de uma qualquer verdade, algures entre o que é real e as projecções que vão iluminando, quando não mutilando, o corpo sempre precário do poeta.
Dividido em 33 quadros, ou Picta, o poema tem como epicentro a cidade de Turim (onde Fratus reside) e a vida normal de um cidadão urbano, incapaz de ficar indiferente ao que se passa à sua volta. Por isso, os versos de Tiziano, longos e espantosamente flexíveis na sua métrica selvagem que obedece apenas ao impulso da urgência, abrem aos poucos, no seu louco rodopio (esse «magma que se cola à cabeça»), vastas clareiras onde aparece, posta a nu, a imagem patética de uma época que só pode ser a da descrença e da desilusão. Com mais lucidez que amargura, vão sendo cruzados todo o tipo de materiais heterogéneos: conversas ouvidas no jardim; recordações familiares; críticas ao «optimismo manso» que adormece as sociedades modernas; retratos ácidos de uma Itália que «sofre de artrose»; ou memórias muito vivas da ascensão do nazismo e do fascismo na Europa, enquanto raízes de um horror que não se esgotou nos campos de extermínio. Mas também há pequenas explosões de lirismo («ao andar depressa o que é que fica do amor se não folhas postais um retrato desfocado»), idiossincrasias, devaneios, histórias de miséria humana, intertextualidades, homenagens, envios (Tarkovski, Gramsci, Pasolini), muitas auto-ironias. E um respeito enorme pela geração dos pais, esses «homens altos magros uma vida gasta na oficina» que tiveram uma frase cruel – «tentámos mudar o mundo mas o mundo mudou-nos a nós» – como epitáfio.
Abertamente política e assumidamente de esquerda, a poesia de Tiziano Fratus não foge do turbilhão nem do caos, antes procura o centro geométrico do nosso mal de viver contemporâneo. É de lá que nos lança o seu olhar periscópico: ora doce, ora desesperado. É de lá que reinventa todas as histórias possíveis, com o mais simples dos instrumentos: uma janela escancarada para os sons e imagens que sobem da rua; a imaginação acesa; os sentidos alerta. O resto é talento, instinto, ritmo e vertigem.
José Mário Silva, Diário de Notícias, 4.11.04