A Mata – Não contem a ninguém, mas acho que as minhas peças têm um problema

9 de Julho, no Hotel Borges, em Lisboa, já após a estreia d’ A Mata, sentámo-nos com a encenadora Franzisca Aarflot e o autor Jesper Halle para falar da peça e desta versão feita em Portugal. Depois pedimos a alguns dos actores – Carla Galvão, Maria João Pinho, Paulo Pinto – e à Andreia Bento, que acompanhou todo o processo, que juntassem alguns comentários.

Jesper, como é que surgiu a ideia da peça, como foi o processo de escrita d’A Mata?

Jesper Halle Fui convidado, juntamente com outros dramaturgos escandinavos, para escrever uma peça em que a premissa era pegar em autores que tivessem escrito sobretudo para palcos pequenos e dar-lhes a oportunidade de escrever uma peça longa para um palco grande. Passei muito tempo a desenvolver várias ideias, e depois falei já não sei com quem, um amigo, meu irmão, e disse-lhe “tenho esta, esta e esta”, e ele disse “faz a das crianças, gosto dessa”. Mais tarde, vi que era uma ideia em que eu precisava de trabalhar, mas houve algum acaso envolvido na escolha do tema. Em relação a escrever sobre crianças para adultos: tenho esse sonho há dez anos, e na altura do concurso fez-se um clique na minha cabeça. A minha ideia era que a peça decorresse ao longo de um ano inteiro: 1961. O Gagarin voou no dia 12 de Abril de 1961, que foi o dia em que fiz cinco anos. Lembro-me muito claramente e queria que isso estivesse na peça. Quando comecei a escrevê-la, percebi que queria que houvesse alguma coisa a acontecer que a centrasse, que não fosse uma peça só sobre crianças em geral, a vida quotidiana, uma espécie de visão panorâmica. Muitas das personagens da peça são vagamente baseadas em amigos e inimigos meus de quando era criança: esta é a rapariga parva que queria brincar à escola connosco, estas são as três crianças mal-comportadas que às vezes nos batiam. E a Franzisca foi a segunda ou terceira pessoa que leu alguma coisa da peça, mostrei-a à minha mulher e à Franzisca.

Franzisca Aarflot Não acho que tenha dito nada de muito importante. Mas apaixonei-me logo pela peça e quis fazê-la desde a primeira vez que a li.

JH A coisa mais importante que a Franzisca fez, quando leu a primeira versão, foi o não ter dito “acho que isto ou aquilo devia ser mais assim”. Começou só por dizer: “isto é óptimo, continua!” Às vezes, é mesmo isso que precisamos de ouvir. E a Franzisca disse-me desde o início que queria fazer a peça, tentámos várias vezes arranjar uma oportunidade, porque eu também queria que a Franzisca a encenasse.

E como é que conseguiste encená•la?

FA A versão curta é: o Jorge convidou-me. Conheci-o porque colaboramos os dois com o Traverse Theatre em Edimburgo. Foi a Katherine Mendelsohn que me disse que eu devia entrar em contacto com ele. Falámos por e-mail e o Jorge perguntou-me o que havia na Noruega além do Jon Fosse e do Finn Iunker – eu disse que havia imensa coisa. Ele sugeriu uma peça norueguesa para vir a ser montada pelos Artistas Unidos no Festival de Almada. Foi a Oslo, viu algumas peças, leu muitas e decidiu rapidamente que ia ser A Mata. E perguntou-me se eu a queria encenar, o que foi óptimo. Depois foi o Jorge que sugeriu o Chapitô.

Jorge Silva Melo Era uma questão que implicava toda a produção: a Franzisca queria trabalhar com actores muito jovens? Ou com adultos? Actores em formação ou já com anos de experiência? Finalistas de algum curso ou em plena formação? Sorriu-lhe a ideia de serem actores em formação. Foi daí que fomos falar com o Chapitô. E a sugestão agradou à Franzisca – por ter jovens actores, por ter raparigas e rapazes adestrados em artes específicas do circo. Foi uma experiência muito intensa para todos. Mas também achei que os actores profissionais (dos Artistas Unidos) deveriam aproveitar as aulas físicas e aprender alguma coisa. Para não ficarem, de um lado, os que sabem, do outro, os que não sabem (seja teatro, seja ginástica). O Pedro Carraca aproveitou muito esta possibilidade e fez um trabalho notável. Já o António Simão conseguiu ir jogar futebol com uns amigos, aleijar-se e ser dispensado da aprendizagem física. Foi uma pena, desperdiçou-se uma oportunidade real que, tão cedo, não se repete.

FA Reflecti muito tempo sobre isso, durante o Verão: pensei imediatamente que era uma boa ideia, mas ao mesmo tempo não queria trabalhar com pessoas que não soubessem lidar com texto. Era essa a minha preocupação, porque eles no Chapitô têm um tipo de trabalho mais físico. E também queria ter a certeza de que era possível integrar esse trabalho deles nas situações, que não fosse sempre um acontecimento separado. Então pus-me a planear uma possível produção, todo o story•board da peça, e depois disse: sim, vamos fazê-lo. Mas eles têm de aprender a trabalhar com texto, de ser orientados. Os Artistas Unidos encarregaram-se das aulas de interpretação, que penso que foram muito importantes para eles, antes de eu chegar – começaram no início de Setembro, 3 horas às quartas-feiras.

Andreia Bento Como a Franzisca se inquietava com a pouca experiência dos alunos com um texto – a palavra falada e interpretada – acordámos com o Chapitô que os Artistas Unidos dariam uma aula semanal, durante todo o ano lectivo. O objectivo não era trabalhar sobre A Mata para a produção, mas lançar desafios para a abordagem e interpretação de um texto e de uma personagem, incluindo a vertente criativa, mas também uma mais técnica, de dicção, tempos de resposta, ritmos de cena, escolha de informação a mostrar, não fechar jogo para o público. E habituarem-se a fazer estas coisas em esforço/ movimento físico. Esta abordagem poderia ser baseada n’A Mata (mas sem fixar ideias de encenação ou de distribuição, isso seria para fazer com a Franzisca) ou em textos/ ideias alternativas. Por isso mesmo, além das presences contínuas do Jorge e minha, várias pessoas dos Artistas Unidos passaram pelas aula para que os alunos tivessem contacto uma diversidade de abordagens (por exemplo, o Pedro Marques, o Pedro Carraca, o António Simão ou o João Meireles). Não foi fácil, mas foi muito compensador no que diz respeito ao percurso de alguns alunos. Em geral, eles tinham falta de disciplina no trabalho e investiam pouco neles próprios para melhorarem. Muitas vezes esqueciam o que se dizia nas aulas e não o aplicavam quando ensaiavam ou improvisavam. Nem todos conseguiam apresentar um trabalho pedido com antecedência. Mas houve casos de entrega e esforço crescentes. Alunos que se ultrapassaram e surpreenderam. E depois a revelação que foi a semana antes da estreia e a carreira do espectáculo. Penso que uma grande parte da nossa aprendizagem vem da experiência e da nossa capacidade de encaixe da informação recebida numa situação concreta. E a maior parte deles aprendeu e apreendeu mais nas últimas três semanas do que no ano inteiro. Ao serem confrontados com os últimos ensaios e com a responsabilidade de estarem em frente ao público perceberam algumas questões. E tiveram uma prova de heróis na última representação, quando, pouco depois do início da segunda parte, a luz faltou em Almada. Até alguém anunciar o que se passava, aguentaram nos seus lugares. Recomeçámos a segunda parte alguns minutos depois, com luz, mas com a indicação de que, se a luz voltasse a faltar, o espectáculo seguia até ao fim com a luz de emergência da sala. E quando a luz faltou de novo por dez minutos continuaram, sem qualquer sinal de fraqueza.

Como é que combinaste o texto com a componente física?

FA Por um lado, foi planear o espaço físico: pensar que parte do espaço e que construções vamos dar a esta situação, para que ela funcione e tenha a possibilidade de uma fisicalidade orgânica. Por outro lado, muito do que acontece em termos físicos baseia-se nas personagens, naquilo que elas são. No primeiro mês trabalhámos sobretudo no desenvolvimento das personagens, físico e psicológico, com o grupo.

Esse lado físico também tem muito a ver com infância, as crianças não têm medo de se magoar.

FA Completamente. Acho que é por isso que a ideia de incluir elementos do trabalho do circo funciona, porque a infância é jogo. E o circo, embora seja mais sofisticado, de certa maneira é um exagerar do que fazemos quando somos crianças.

JH Eu gosto muito desse lado específico da infância: as crianças não se sentam a falar, estão sempre activas fisicamente, a correr, a saltar. Essa sensação de ter em palco crianças por todo o lado e sempre a fazer alguma coisa. Acho que é uma imagem da própria infância ao longo da peça.

FA Na maior parte das cenas há muitas pessoas em palco, e algumas quase não têm nada para dizer. E pensamos: têm de estar a fazer outra coisa. É muito raro estarem todos concentrados na mesma coisa — como aconteceria normalmente com os adultos.

Jesper, quando escreveste, pensaste nisso ?

JH Sim, eu gosto de ter muitas personagens… Mas também tenho tendência a escrever em cenas distintas e bastante curtas, cada uma compondo um quadro ou servindo um determinado objectivo. E se quero que haja fluidez nas mudanças de cena, imagino sempre que todas as personagens continuam por ali. N’A Mata escrevi mesmo na peça: eles estão presentes, cada criança faz as suas coisas – e de vez em quando há qualquer coisa que fica focada. Não queria pessoas sempre a sair porta fora e a gastarem muita energia nas mudanças de cena; queria essa sensação de um universo composto por todas as crianças. É uma das razões por que estou muito contente com esta produção, porque cuidou muito bem deste aspecto.

No início d’A Mata diz•se que não é uma peça para crianças, mas uma peça sobre crianças. Alguns dos actores desta produção são quase crianças…

FA A mais nova tinha dezasseis anos. Acho que seria muito interessante fazê-la com um elenco mais velho, dos quarenta aos sessenta anos, talvez. Mas teriam de estar em forma… Acho que é preciso esse tipo de fisicalidade de pessoas mais novas.

JH Todas as produções que vi até agora foram com actores novos. Acho que são papéis que podem ser muito bem feitos por actores jovens, que não tenham uma carreira longa atrás. Mas um dia também gostava de ver a peça feita por actores de cinquenta anos, ver o que é que mudaria. Talvez a Franzisca o faça…

FA Se a premissa for essa, pessoas mais velhas que olham para trás, para o passado.

Na peça há o tema da infância, e também o crime e o abuso — que veríamos como opostos. Mas o mundo destas crianças é sombrio: as relações entre elas e a linguagem que usam são violentas, estão em situações de perigo na mata… É quase natural que aconteça qualquer coisa terrível.

JH Se pensarmos mesmo sobre a infância, sobre como ela era, sem uma visão nostálgica, acho que toda a gente vai descobrir esse perigo, esse sentimento de insegurança, de ter de estar sempre em guarda.

Maria João Pinho O texto é irresistivelmente actual e o contraponto naturalista-circense conseguiu criar momentos de emoção, assim como de transtorno.

FA Não se controlam as circunstâncias, há tantas coisas que acontecem sem sabermos porquê ou o que são exactamente. Essa idade dos quatro aos dez é uma altura muito dramática e assustadora. E as crianças através da imaginação tentam dar sentido ao que acontece. E é tudo muito rápido, o que também está na peça: num minuto estamos a lutar com alguém, e no minuto seguinte somos amigos. Vai-se de um extremo ao outro muito depressa.

MJP É uma situação comovente vivida por crianças, que no público cria uma inevitável e crua projecção. Sempre que se toca no assunto infância (o momento mais marcante e escondido da nossa vida), toca-se em lugares interiores susceptíveis.

JH E os actores, quando começam a trabalhar, mesmo que tenham tido uma infância “normal”, dizem: consigo identificar-me com isto, lembro-me desta sensação. E do ponto de vista da escrita essas mudanças súbitas são muito interessantes. Um dos motivos para escrever sobre crianças é que muitas das coisas relacionadas com a condição humana são mais claras quando se fala de crianças. É o mundo adulto mas mais nítido, porque as crianças não são tão bem comportadas nem estão tão bem protegidas como os adultos.

FA Nós nos ensaios tivemos discussões muito interessantes sobre o que acontece aos adultos — o que é que acontece, que empregos e que vidas têm, como é que isto afectou as vidas deles. E sobretudo com os alunos do Chapitô foi muito interessante ver como a imaginação deles e um esforço racional trabalhavam o percurso dos adultos. Não que isso se veja necessariamente no espectáculo, mas quando se tem uma personagem adulta com tão pouco texto é preciso saber muito sobre ela para que seja interessante. Por exemplo a Anitra, que teve uma infância tão conturbada, seria de esperar que tivesse uma vida adulta difícil. Mas eles vêem-na como advogada, alguém que trabalhou muito para chegar onde chegou e se distanciou da sua infância — daí o dizer sempre “não me lembro”. Não que seja bom esconder as coisas, mas é uma visão muito optimista da parte dos miúdos, que me agrada.

JH Também tive essa experiência com actores profissionais, que tendem a inventar o laço entre a criança e o adulto, mas é também como se quisessem descobrir uma vida que fosse boa para as suas personagens. Lembro-me da actriz norueguesa que fez de Anitra dizer: acho que cortou completamente com a família, mudou-se para outra cidade, arranjou um emprego certinho, sente-se provavelmente um pouco sozinha, mas vai trabalhar todos os dias, tem uma vida própria.

Paulo Pinto Eu fiz o Tom adulto; a Franzisca (com quem tive uma relação de trabalho muito fácil) pediu-me que usasse alguns movimentos do actor que desempenhava o Tom criança, o Armando, sobretudo a maneira de andar e um ou outro gesto característico. Também me pediu que escrevesse uma história da vida do Tom, que falasse desde o tempo em que é retratado na peça como criança até à idade adulta. Decidi que o Tom se tinha transformado num falhado, num adulto amargurado com a vida, sem norte. Vivia de fazer um ou outro trabalho, talvez no porto de Oslo, e uns dias tem dinheiro para dormir numa pensão, outros terá de dormir na rua. Também lhe dei um filho que ele vigia ao longe sem ter coragem de se aproximar e dizer que é pai dele. Afastei-o de qualquer laço familiar, inclusivamente da irmã gémea de quem ele era especialmente próximo e do irmão mais novo, para quem ele era um segundo pai. Para a minha personagem, o tempo do espectáculo era a altura em que ele se confrontava com isto tudo: primeiro, com a sua infância, um tempo em que os sonhos estavam todos à sua disposição, depois com aquele estranho acontecimento da morte da Júlia Nilsen, depois com o reencontro dos seus dois irmãos; mas principalmente confrontava-se com ele próprio, como se uma segunda oportunidade lhe tivesse sido dada.

Carla Galvão Eu integrei o elenco já numa fase muito avançada, quando todo o universo — ou seja, construção das personagens, resolução das cenas, opções coreográficas — já estava definido pela equipa. Calhou-me fazer a Bjorg adulta. Como o trabalho já estava muito desenvolvido, pude criar a minha personagem a partir da proposta da actriz/ aluna que interpretava a Bjorg criança. Para mim, não foi fácil a cena em que a Bjorg adulta dançava “a três” com uma esfregona e à distância com o Toralf adulto, a sua paixão da infância. A cena foi muito trabalhada com a ajuda de todos, inclusivamente com a professora de dança do Chapitô, mas foi o esforço positivo da encenadora e a camaradagem dos actores/ alunos que me deram força para concretizar aquela cena.

Quando aparecem as crianças, enquanto adultos, a dirigirem•se ao público sobre o que aconteceu, seria de esperar que fossem mais racionais. Mesmo em adultas têm uma memória é igualmente incompleta, emocional.

JH O meu processo de escrita não foi tão analítico: quero tê-los enquanto adultos, portanto vou fazer isto. Mas a maior parte deles só fala de pequenos fragmentos, de que se lembram ou não, o que deve querer dizer que tentaram conscientemente evitar pensar nisto durante 30 anos ou assim. É uma das premissas da peça. O Jonas, que de algum modo é a personagem principal, diz: “antes nunca pensava nisto, agora estou sempre a pensar nisto.” As coisas voltam à superfície e ele está a tentar lidar com isso. As outras personagens enquanto adultos, varia muito. Muitas não querem lidar com o que aconteceu, outras enterraram-no tão profundamente que só conseguem dar pedaços. Acho que para a maior parte das pessoas que passaram por experiências terríveis enquanto crianças, o normal é cortar com isso, e só ter pequenas imagens.

FA E também a peça passa-se no início dos anos 60. As crianças não saberiam sequer o que era abuso de menores, não conheceriam a expressão. Hoje na Noruega seria diferente.

Não estava tanto a falar de lidar com um acontecimento traumático, mas mais de a memória da infância ser esburacada. Aquilo que dizias no outro dia sobre o acesso à verdade não ser possível. Nesta peça, aquilo que eles nos contam não coincide com o que vemos, sentimos que nem enquanto público temos acesso a um todo que é sugerido.

JH Sim, a memória da infância em geral funciona assim. E depois eu queria essa sensação de só se terem vislumbres das coisas, sem a estrutura lógica do todo: tanto no passado como no presente dos adultos.

Franzisca, porque é que escolheste ter actores diferentes a fazer o papel da criança e da mesma personagem em adulto?

FA Para ser sincera, uma das condições era que havia dezasseis alunos da turma que tinham de entrar. E eu disse que não fazia sentido, porque eram doze personagens. Foi assim que surgiu a ideia: podemos tê-los a fazer o papel só dos adultos, criando um espaço diferente, e vamos precisar de mais actores — aí é que entraram os profissionais.

JH Eu quando escrevi o texto pensei que seriam os mesmos actores a fazer o papel de criança e adulto, como tem sido noutras produções. Mas gostei muito de nesta encenação serem duas pessoas: havia momentos muito bonitos em que estava o adulto a ver-se a si próprio enquanto criança, e que só seriam possíveis assim.

AB Um dos problemas foi as personagens adultas terem muito menos texto do que as crianças, e por isso iam ser consideradas secundárias pelos alunos. Sabíamos que aqueles a quem calhassem os adultos não iam ficar contentes, apesar de ser uma oportunidade de trabalho preciosa para qualquer aluno de uma escola artística. A Franzisca tinha dois objectivos muito claros para a distribuição: não queria que os mais novos ou mais pequenos ficassem com os papéis de criança, queria ter uma mistura maior a nível do aspecto físico; e não queria que os actores profissionais fizessem apenas os adultos — aliás, precisava de um actor profissional que assegurasse o papel de Jonas criança, personagem-motor para toda a peça (e que foi atribuído ao Pedro Carraca). Anunciada a distribuição final, todos os alunos com personagens adultas ficaram desiludidos e, alguns, mesmo desinteressados do trabalho durante bastante tempo. Houve um caso exemplar, o do Ricardo Batista, que, após a desilusão inicial, abordou o trabalho de forma muito positiva e profissional: é este o meu trabalho, como é que posso fazê-lo da melhor maneira possível, como é que posso estar em cena mais de duas horas, falando só cinco minutos mas estando presente e contribuindo para o espectáculo. Penso, agora com a distância, que foi mesmo o único que realmente percebeu o que é estar em cena mesmo que não se diga nada, pensando o espectáculo como um todo em que ele é uma parte participativa.

FA Depois houve umas mudanças, alguns alunos foram-se embora. Ficaram doze ou treze alunos e o resto são actores profissionais.

AB Com alguma surpresa encontrámos uma turma, com algumas excepções exemplares, bastante indisciplinada a nível da assiduidade e da pontualidade, mesmo com todos os esforços que desenvolvemos nas aulas para alertar e explicar que em ensaios e em espectáculos um comportamento desses é inaceitável. No segundo período lectivo esta questão foi minimizada ao nível da frequência das aulas de interpretação, mas durante os ensaios houve alguns casos de faltas (algumas sem aviso prévio, e tínhamos uma equipa pendurada a tentar ver que trabalhos podiam ser feitos com os elementos presentes para não perdermos o tempo de ensaio) e muitos atrasos, chegando ao ponto de termos um ensaio de imprensa com menos uma actriz. Doze dias antes da estreia, três alunas faltaram ao ensaio (uma teve a sorte de avisar que tinha tido um problema grave). Faltava pouco tempo para a estreia e não podíamos avançar com esta produção sem a garantia de que os actores iam estar presentes nos ensaios e de que a carreira do espectáculo poderia correr sem riscos. A Franzisca estava triste, sentia que estes actores não queriam trabalhar com ela e começava a perder a energia para investir no trabalho com alguém que não queria trabalhar. Além disto, ainda tínhamos alguns casos de atrasos graves. E tomámos a decisão de substituir as duas actrizes que faltaram nesse dia (e entraram a Carla Galvão e a Maria João Pinho) na esperança de que fosse um exemplo para os outros e que fosse uma lição para aquelas duas se realmente quisessem seguir estas profissões.

MJP Eu fui convidada a trabalhar neste projecto quando faltavam cerca de dez dias para a estreia. Foi prazeroso integrar um elenco de teatro nesta que foi a minha pri meira participação numa peça profissional após a minha formação. Foi um momento especial quer pela riqueza humana quer pelo trabalho desenvolvido.

Como é que foi a relação entre actores profissionais e alunos?

FA Muito boa. Acho que para os alunos foi uma grande inspiração, tornou o grupo mais disciplinado. E muitos dos profissionais também participaram nas aulas de circo na escola, para desenvolverem capacidades físicas. E o grupo acabou por ser mais homogéneo do que seria de esperar. Mas claro que os profissionais foram um recurso, pela sua experiência, sobretudo em tudo o que tinha a ver com a linguagem e que eu não conseguia apanhar.

PP O mais importante foi o clima dos ensaios, alunos cheios de vida e vontade de aprenderem, com imenso respeito pelos mais velhos. Muitas nódoas negras, luxações, lesões, mas sempre com uma energia contagiante. Sei que fiquei em melhor forma, aprendi a andar em andas e passava umas boas horas do meu dia em cima das estruturas de ferros, fiquei com calos nas mãos, ossos do ofício. Não resistia à tentação de subir para um trapézio e tentar uns movimentos, sempre ajudado pelas indicações de um ou outro aluno, ali como colega. Vê-los a crescer foi um privilégio e ao mesmo tempo uma forma de me reciclar. Foi uma viagem aos anos em que estudei para actor e aos primeiros espectáculos que fiz. Um espectáculo dentro do espectáculo.

MJP O respeito entre os actores profissionais e elenco de estudantes foi exemplar porque conseguimos uma unidade. Aquela que sempre se procura ou constrói. Senti-me entusiasmada por embarcar numa viagem que parecia arriscada e portanto necessária.

CG Foi bastante positivo, tendo em conta o contexto em que estava inserido, onde se cruzava uma companhia profissional que eu estimo muito, os Artistas Unidos, com uma escola artística cujos alunos nunca esquecerei pelo seu talento e valor humano.

Como foi isso de encenar uma peça noutra língua?

FA Ao princípio foi um pouco difícil, porque normalmente quando começo – sem cenário, só com actores e texto – trabalho muito de perto com cada actor, e uso muito os ouvidos, para apanhar entoações e coisas assim. Devo ter passado uns dois dias a ficar frustrada com o facto de não o conseguir fazer. Além disso, a cada três minutos passavam aviões por cima do hospital [Miguel Bombarda] e eu não os conseguia ouvir, e pensava: “como é que eu vou fazer isto?” Tinha de mudar a minha maneira habitual de trabalhar. Então, mesmo nesse início do trabalho de texto e personagem, começámos a trabalhar em termos mais físicos. E depois nunca mais olhei para trás, agradou-me muito poder usar os ouvidos de um modo diferente, trabalhar mais com ritmo, dinâmica e composição, sem ficar tão presa ao texto. Diverti-me muito. Claro que sei o que estão a dizer, porque conheço bem o texto e a língua até certo ponto, mas não consigo perceber o tom e as variações que fazem.

E ver A Mata em português?

JH Consigo segui-la bastante bem… Houve alturas em que fiquei mesmo com pena de não perceber português, tinha sobretudo curiosidade – como é que vocês dirão esta frase? E para nós noruegueses o português soa a uma língua do leste europeu… Mas nem sempre era capaz de seguir a peça frase a frase.

FA Nós também mudámos umas coisinhas, por exemplo a referência às botas da Anitra. Essa ideia veio de me lembrar de uma rapariga, quando eu era pequena, que usava sempre botas de borracha, mesmo quando estava sol: essa sensação de que não tomavam conta dela, e de que ela também não tomava conta de si. Não tinha a noção do calor e do frio, e achei que isso assentava muito bem àquela personagem. Mas enquanto adulta, ela diz que se lembra das sandálias ficarem coladas ao asfalto: nós tomámos a liberdade de dizer “as botas”, porque ela está lá e as botas estão lá, enfim… Mas ontem ela enganou-se e disse “sandálias” outra vez, e eu ouvi!

JH Eu não dei conta… Mas acho que é uma peça bastante fácil de seguir. Também tem a ver com o facto de serem crianças, mesmo alguém que não conheça o texto ficaria com uma sensação clara de onde residem os conflitos. É tudo muito visual e ao mesmo tempo com um recorte bem nítido.

Quantas encenações desta peça é que já viste?

JH Vi duas produções escolares na Noruega. Uma foi numa espécie de escolas-livres, sem exames, para onde se pode ir depois do liceu, durante um ano, estudar teatro ou música, vive-se lá com amigos – é uma tradição que vem da Dinamarca. Há uma escola dessas muito importante, muita gente que lá andou acaba por trabalhar no teatro – a Franzisca começou lá. Depois vi a norueguesa profissional, a sueca e a alemã. Mas não vi a dinamarquesa nem a americana. Portanto esta é a sexta. Uau. As minhas preferidas são esta e a norueguesa profissional, acho, e é curioso que sejam as duas encenações que têm a linguagem visual mais distinta. Não tinha pensado nisso, mas tanto a encenação da Franzisca como a do Jon Tombre, que também foi convidada para a bienal de Wiesbaden, acrescentam qualquer coisa ao texto por não o representarem de forma naturalista. A Franzisca tem todo o lado físico que aproveita os alunos do Chapitô e o que eles sabem fazer, e a encenação do Jon Tombre era muito estilizada, ele pensa muito por quadros. E acabam por ser os dois espectáculos mais fiéis ao texto.

Franzisca, esta já é a terceira peça do Jesper que encenas…

FA A quarta. Fizemos uma logo quando nos conhecemos, numa companhia de teatro independente que eu estava a dirigir. Fizemos um trabalho mais de colaboração, em que os actores improvisavam e depois o Jesper escrevia, ou ao contrário, o Jesper escrevia e depois os actores improvisavam.

JH Gostava muito de ver isso outra vez. Só algum tempo depois é que me apercebi de quão estranha toda essa primeira experiência foi.

FA Sim, enquanto resultado. Porque começámos com algumas ideias e depois o espectáculo era uma coisa completamente diferente. E o primeiro processo foi muito físico. A segunda coisa foi O Amante nos Bosques, uma peça em tom de pesadelo escrita a partir do conto tradicional do Barba Azul.

JH Essa era mais um texto escrito, em que eu tentei integrar as experiências que tínhamos tido da primeira vez, essa aprendizagem.

FA . A terceira foi Patos Selvagens. Ainda gosto muito dessa peça, é muito bonita.

JH Essa é a peça de que estou sempre a falar, gostava de voltar atrás e rescrevê-la.

FA Pois, acho que há qualquer coisa no fim… Há um salto no fim que é muito difícil de conciliar com o resto, também porque tem um lado muito fantástico.

JH Patos Selvagens vem da história tradicional norueguesa mais bonita, sobre uma princesa que tenta salvar os irmãos, que foram enfeitiçados e transformados em cisnes, mantendo-se absolutamente muda. Na minha peça há uma rapariga que pensa que é a princesa do conto de fadas, mas está num manicómio. Acho que devíamos trabalhar essa peça outra vez. Não contem a ninguém, mas acho que as minhas peças têm um problema, eu tenho tendência a escrever dois ou três finais seguidos. Por isso é que a Franzisca cortou um pequeno monólogo n’A Mata: achou que quando o rei disse o que tinha a dizer, já não é preciso o monólogo. E já vi encenações em que está esse monólogo final – e não entra o do rei.

Conversa conduzida por Joana Frazão

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