Com T1, José Maria Vieira Mendes assinou a sua primeira peça original. Já antes fizera Dois Homens a partir de Kafka (1998), Morrer a partir de Schnitzler (1999), Crime e Castigo a partir de Dostoiévski (1999), Lá ao Fundo o Rio, de novo a partir de Dostoiévski (2000) . Concluiu uma nova adaptação, Se o Mundo Não Fosse Assim, a partir de Damon Runyon (estreada pela Tá Safo em 2004).
T1 foi interpretado por Joana Bárcia, António Simão, Pedro Carraca e Miguel Borges, com cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves, luz de Pedro Domingos, som de André Pires e encenação de Jorge Silva Melo numa produção dos Artistas Unidos . O espectáculo estreou no Teatro Taborda em 23 Outubro de 2003.
Por detrás do humor
José Maria Vieira Mendes – Foi a adaptar textos de outros, Kafka, Dostoiévski, Schnitzler que fui fazendo a minha aproximação à linguagem teatral. Foi assim que comecei. Permitiu-me perceber como funciona a escrita para teatro, ou pelo menos alguns dos seus elementos: o diálogo, a passagem de cena para cena, os ritmos. As adaptações coincidiram também com a minha aproximação ao trabalho no palco, permitindo-me viver os ensaios, contactar com o trabalho dos actores, observar e intervir nos cenários ou nas luzes, e assistir depois às reacções do público. E nas adaptações, sendo a minha preocupação sobretudo formal, ou seja, preocupado com a forma como vou contar esta história que já existe, experimentei mais a este nível. Explorar os limites, perceber até onde era possível ir com a escrita. Também traduzi teatro. E o que retenho de um trabalho de tradução é a intensidade com que li a peça que traduzi. E nesta leitura aprende-se muito, sobretudo quando os textos são de Beckett, Pinter, Fosse ou Brecht. Depois há também a passagem para a língua portuguesa e tentar perceber se isso funciona ou não em palco. Acredito que isto se repercuta no meu próprio trabalho de escrita. É não apenas um trabalho mas um processo de aprendizagem. Em 2000, estive no Royal Court, a frequentar a International Summer Residency. E o que dessa experiência mais marcou a escrita de T1 talvez tenha sido o conselho que Gregory Motton me deu depois de ler o texto que eu levava para lá ser trabalhado: aproveita que aqui estás e aprende o humor. De facto, nunca nas minhas peças anteriores, talvez por serem adaptações de textos pouco humorísticos, eu procurara explicitamente a gargalhada. Em T1 o humor tornou-se peça importante da escrita, não apenas para fazer rir, mas também para fazer passar o que resolvi esconder por detrás do humor. Embora já tivesse feito um outro texto original para teatro, Chão (produção do Útero), considero T1 a minha primeira peça.
Jorge Silva Melo – Em T1 , os actores esclareceram-te coisas? Ou foi mais um trabalho comigo?
JMVM – Contigo, com o encenador. Discuti, ouvi opiniões, fizeste-me repensar certas cenas. Para mim, as discussões de que guardo melhor memória foram as ocorridas durante os ensaios e nestas também os actores participavam. Lembro-me por exemplo de me apontares a construção do diálogo numa cena, dizendo que a achavas previsível, automática. E pediste uma improvisação aos actores que, com base naquelas palavras, trocando a ordem, refizessem o princípio da cena. E percebi logo qual era o problema apontado e logo também me ocorreu forma de o solucionar. Mas para esta peça todo o trabalho com os actores foi fundamental.
Pisando ao de leve
JSM – Os actores falavam sobre os problemas ou tornavam-nos visíveis, revelavam-nos?
JMVM – Revelavam-mo, sim. Por exemplo: “O que é que estão estes dois a fazer ao mesmo tempo em cena? Não devia ser assim. Mas foi assim que eu escrevi. Está mal, então.” Mas mais importante foram as conversas de “não sei o que fazer com este bocadinho pequenino de texto que não me dá o suficiente”. Achei os actores algumas vezes perdidos, e por minha culpa. E, claro, ao fazerem a cena os problemas vinham ao de cima, sem dúvida. Aconteceu muitas vezes isso. E aconteceu porque eu parti com a ideia de jogar com elementos formais estranhos na estrutura da peça, pequenos momentos que funcionavam como caroços incómodos que eu quis propositadamente deixar ficar. Mas esta ideia não funcionava. Tinha alguma piada no papel mas foi expulsa da peça com o avançar dos trabalhos, à medida que começámos a compreender que a estrutura da peça tinha de correr numa só direcção e num só tom. Se a aposta que prevaleceu passou a ser a de uma peça em continuum, então deixou de haver lugar para caroços.
Não posso é deixar de perguntar-me: se o ensaio em determinado dia tivesse corrido de outra forma, ou se a disposição do actor tivesse sido outra, não teríamos então mantido a frase que assim cortámos por nos ter parecido desajustada? Ou seja, será que não terá havido casos em que não era o actor a tornar visível o problema do texto, mas o texto a tornar visível o problema do actor? Lembro-me da primeira cena, aquela que teve de ser cortada em três páginas porque amolecia o espectador. Será que, se o Pedro Carraca e o António Simão tivessem entrado melhor naquela cena, os cortes teriam de ser tantos? Ou até nenhuns? E será que importa sequer eu colocar esta pergunta? Não é o texto (e para mim é) também “escrito” pelos actores (e por quem mais aparecer nos ensaios)?
Quando apresentei a peça aos Artistas Unidos , avisei que ela não estava acabada e quando me disseste que gostarias de a encenar, pedi desde logo que me deixassem estar presente em alguns ensaios e que me dessem espaço para a reescrever. A tua resposta foi óptima: podes mudar o texto até à antevéspera da estreia.
Na escrita em casa, não fui capaz de acabar a peça. A certa altura interrompi, porque achei (talvez por preguiça quem sabe) que só nos ensaios e com a ajuda dos actores conseguiria acabar de escrever aquilo. Mas as personagens também não estavam acabadas. A algumas delas faltava-lhes história e eu não me achei capaz de as completar sozinho. Sabia também, por exemplo, que todo o jogo de entradas e saídas para o final da peça já ia muito complicado e difícil de controlar apenas no papel. Comecei a desconfiar que funcionasse depois em palco.
Creio que isto terá que ver com aquilo a que me propus à partida fazer em T1. Queria que esta fosse uma peça que escondesse dos espectadores o seu verdadeiro assunto. As personagens não se sentem capazes de verbalizar ou não estão interessadas em verbalizar ou não encontram quem as oiça para então verbalizar. O ambiente geral pretendido seria assim o de um vazio, um vazio esperava eu que desconfortável porque apesar de tudo haveria espaço para se identificar o princípio desse desconforto, pontas que despontavam discretas.
A escrita partiu então da contenção. T1 foi escrito com um cuidado extremo, foi passando por cima ou ao lado dos assuntos, pisando ao de leve apenas. E se por vezes eu sabia qual era o assunto do qual naquela fala a personagem fugia, cheguei a um ponto em que nem eu próprio sabia já do que é que não se queria falar. O que, se por um lado me interessava porque me parece ser esta uma experiência de vida reconhecível, por outro lado notou-se, já durante os ensaios, que retirava algum interesse às personagens e que, ao contrário de lhes dar um carácter misterioso que eu julgava que pudesse contribuir para um seu aprofundamento, tornava-as tão vazias que o espectador já nada encontrava a que se agarrar.
Aconteceu pois que no ensaios, em lugar de me ver obrigado a cortar texto, me vi com necessidade de acrescentá-lo.
É curioso que uma das poucas coisas que se cortou foi uma série de julgo que três monólogos da personagem feminina, Sara. Eram bocados de texto que, pretendia eu, poderiam ajudar precisamente a preencher um pouco mais as faltas. Mas, por paradoxal que pareça, foram precisamente estes monólogos que acabaram por ser rasurados. E porquê?
Primeiro de tudo por uma questão formal que para esta conversa não interessa tanto. Eram de facto três espinhas que incomodavam e que se retiradas tornavam a peça mais fluida, transtornavam menos o ritmo. Mas também porque, percebemos entretanto, aquilo que fazia falta não era as personagens a explicarem em monólogo quem eram, mas sim o passarmos mais tempo com elas. Era preciso vê-las, em silêncio, dentro de casa. E assim, para pegar no exemplo de há pouco de Sara, as cenas dos monólogos acabaram por ser substituídas por cenas de silêncio em que a víamos deitada no chão a soprar para um saco de plástico ou a apagar um candeeiro. Os acrescentos terão pois sido talvez feitos mais em relação às personagens, pois é a elas que a peça se agarra.
A peça nasce da ideia de uma história contada por um cenário: os quatro apartamentos do início transformam-se num só, no final. Interessava-me expor uma convenção teatral e jogar com ela, tornando-a uma ficção-quase-científica. Mas depois compreendi, durante os ensaios, que T1 dependia também ou mais ainda das personagens.
Concentrar numa mesma oitava
JSM – Jogaste num texto com variações que consideras subtis. Ou serão imperfeições?
JMVM – É possível que haja subtilezas que são imperfeições, e deve-se ao pudor na escrita de T1, aquele pisar ao de leve de que há pouco falei. Se consideras imperfeito o que eu considero subtil, terei sido eu a falhar e terei de te dar razão porque tu não estás na minha cabeça e a peça, quando passa para o palco, deixa de existir apenas para mim.
JSM – O palco não é rápido e grosseiro? Sentiste que, ao pôr a viver as personagens, perdias delicadeza de estilo? Não tiveste de ajoelhar-te perante a rapidez dos acontecimentos?
JMVM – Se pode ou não haver delicadeza, em termos gerais, no palco, não me sinto com capacidade e conhecimento para responder com certezas. Se calhar podia achar-se que o Playtime do Jacques Tati era uma ideia à partida impossível porque o espectador não tem capacidade de acompanhar à velocidade do cinema a quantidade enorme de informação simultânea e subtil que se acumula em cada cena. Mas a verdade é que o filme foi feito e de cada vez que o virmos descobrimos mais. Talvez seja também possível ser subtil em palco.
O passo de corrida, mais leve, de T1, a sua velocidade, dificultava as subtilezas. Mesmo assim, sobreviveram algumas, pelo que percebi dos comentários de alguns espectadores, embora a outros elas tenham escapado por completo. Não foram poucos os comentários à peça que a caracterizaram de “comédia de costumes” (DN) ou adjectivaram de “engraçada” ou “levezinha”. Mea culpa?
O meu objectivo era que as pessoas saíssem de T1 pensando, por exemplo, “porquê os ossos?”, “quem é aquela Laura de que tanto se fala?”, “qual é afinal a relação entre estas quatro personagens?” (a mim, aquele final parecia-me cada vez mais apontar para quatro actores, apenas quatro actores que se despiram da personagem), “como é o exterior?”, “onde vivem eles?”, enfim, uma série de questões para as quais eu pretendi deixar pistas que gostava que tivessem sido apanhadas. É este o teatro que me agrada, a literatura que me dá prazer ler. Como dizia o Arne Sierens: cinquenta por cento da peça é dada por mim, a outra metade é do público.
Esta peça, ao contrário do que eu a princípio pretendia (e refiro-me ao que há pouco disse sobre os “caroços”), não pode ser tocada no piano todo. Tivemos de a concentrar numa mesma oitava. Terá que ver com a tal velocidade da peça, com o facto de a história apresentar por si só elementos propensos a complicar a compreensão como sejam as entradas e saídas, as mudanças súbitas de espaço, duas personagens separadas cinco metros uma da outra e no entanto uma está numa casa e outra noutra…
O subtil interessa até ao momento em que essa mesma intenção de ser subtil passa para o outro lado (o que não é o meu). Se falha a passagem, então é imperfeição. E tenho consciência de que por vezes escondi tanto que nada terá passado.
Mas a imperfeição também é parte consciente da peça. Aliás era esse um dos meus pontos de partida: escrever uma peça imperfeita, com personagens imperfeitas. A lacuna era para mim um tema: a imperfeição daquilo que é inexplicável, não enquadrável; a imperfeição daquele que fica aquém e que assume com orgulho essa mesma deficiência; imperfeição daquele que faz questão em ser torto; imperfeição daquele que procura os bicos e não as curvas. Julgo que este tipo de imperfeição, esta ideia de lacuna, faz parte, e sem querer ser dogmático, da vivência de uma certa idade, de uma certa “juventude” (e aqui não só a imperfeição, mas já agora a inexistência muitas vezes da ideia de causalidade, a dificuldade de verbalização e compreensão de certos problemas, a capacidade inventiva para encontrar problemas quando não os há, temas que tentei que passassem por T1) e por isso mesmo, por de algum modo a peça corresponder a essa ambição de querer retratar, de querer identificar ou quase confessar (num sentido plural e não individual), a imperfeição tem de lá estar.
O meu problema sempre foi porém torná-la representável, apetecível e, dentro do possível, credível para não se tornar completamente estranha. Porque de algum modo tinha de fazer com que a imperfeição se identificasse a si própria, se revelasse e assim pudesse ser entendida como tema e não como falha.
Entradas e saídas
JSM – Há imagens muito decisivas na escrita da peça, que a marcam: as portas, o anel, sobretudo o Carraca debaixo do sofá. Quando, no outro dia, voltei a ver uma instalação do Tony Oursler, lembrei-me de que a tínhamos visto juntos na Tate Modern e nem eu me lembrava quando encenei nem tu ao escrever. Partiste para esta escrita de uma imagem, de uma frase ou de uma mecânica de entradas e saídas?
JMVM – Parti de um cenário. Um palco que é um apartamento que representa quatro apartamentos diferentes. E muito cedo soube como a peça ia acabar: acabava com as quatro personagens dentro do mesmo apartamento eliminando a partição em quatro que no princípio existia.
Olhando para os primeiros textos que guardei sobre T1 encontro porém uma série de apontamentos que depois se irão manter: “1. Ossos enterrados no canteiro. 2. Mãe que telefona. 3. Um braço ao pescoço (Porrada!) 4. O eco da própria voz.”
Ou: “A vantagem da música é muito rapidamente criar um ambiente de cena. Gostaria que a peça começasse com: The Animals, ‘Many rivers to cross’.”
Ao reler estes apontamentos, percebo que parti de imagens, de frases ou de músicas. Outro dos pontos de partida, igualmente influente, era querer de alguma forma pensar sobre as pessoas da minha geração, sobre aquelas pessoas com quem me dou, forma pois de pensar também sobre mim e tentar escrever uma peça a partir disso mesmo. Quis dar prioridade ao humano relegando o literário para segundo plano. Em Dois Homens ou Morrer ou Lá ao fundo o rio não tinha feito isso.
Curioso é a importância que a mecânica das entradas e das saídas de que falas ganhou ao longo da escrita e da encenação da peça. Talvez se deva também a uma memória, uma daquelas cuja influência se torna agora mais evidente. Neste caso aquela do espectáculo António, um Rapaz de Lisboa, que vi há muito tempo na Gulbenkian. Lembro-me de que, quando saí, comentei que tinha gostado mas que aquilo era muito fácil de fazer. Quem me ouviu riu-se da minha ingenuidade. Não era de facto fácil de fazer, mas eu identificava-me com a dinâmica do espectáculo e confundia a identificação com facilidade. A memória que hoje guardo desse espectáculo é sobretudo a das entradas e saídas. Talvez na realidade não existissem tantas entradas e saídas como hoje imagino, talvez as tenha multiplicado por força da impressão que me causaram. A verdade é que essa velocidade de passagem pelo palco me agrada. Como em T1 me agradou o trabalho que acabou por ser feito não só com a porta da rua como com as aberturas para a cozinha e quarto.
Lembro-me, a propósito do mostrar e do não mostrar, de um episódio: Na minha cabeça, T1 estava escrita em duas partes. Cheguei inclusivamente a identificá-las, mas na versão que entreguei aos actores e encenadores acabei por tirar essa referência. Por achar que, por um lado, se percebia de alguma forma onde começava uma parte e onde acabava outra e, por outro, por me parecer que se mantivesse a referência ia contra uma outra ideia que tinha para a peça e que era a da fluidez da narrativa, sem cenas, sem “partes”, sem actos, tudo em continuum. Quando, portanto, confessei que tinha escondido esta bipartição, disseste-me que não podia ser, que numa peça destas eu tinha obrigação de explicar mais e não de esconder mais. Custava-me porém fazê-lo, pois se durante a escrita passara o tempo a esconder, até de mim, como podia agora revelar?
E este foi para mim o grande dilema do trabalho de escrita durante os ensaios. Era-me pedido, e eu próprio compreendia essa necessidade, mais texto. Mas até onde podia eu ir? Que mais queria e podia eu dar àquelas personagens? Julgo que foi a descoberta do tempo de cena, descoberta proporcionada pelos actores e encenador, que me descansou e me ajudou a compreender para onde podia ir esta reescrita.
Levar o público com a escrita
JSM – Fala então sobre a importância dos tempos em T1. O tempo das cenas que, como afirmaste, descobriste nos ensaios, a rapidez narrativa, o silêncio em cena…
JMVM – Descobri o tempo, sobretudo o tempo do silêncio, nos ensaios, é verdade. Mas tinha desde cedo a consciência de que a peça na sua primeira versão dependia muito dos tempos. Era uma peça que nascera, na minha cabeça, de uma primeira cena veloz, como uma que eu em tempos tentara fazer para a tal peça que levei para a International Summer Residency no Royal Court e que não resultava.
Começar com duas pessoas a falarem sobre uma festa, a tentarem ter piada e com alguma energia nas réplicas. Era este o tempo. E tinha pensados outros tempos e todo o jogo de entradas e saídas jogava precisamente com tempos. Passar do ruído ao silêncio em poucos segundos, evitar black outs, não marcar a passagem do tempo e tornar mesmo o tempo coisa abstracta (um pouco como o espaço exterior à casa, também ele indefinido). O meu problema sempre foi perceber como funcionaria isso em palco. E se em certos aspectos não estava enganado, noutros fui surpreendido com o resultado dos ensaios.
O que mais me surpreendeu foram os momentos de silêncio e como eles acabavam por resultar tão bem. A força que tinham e como eram necessários para a estrutura da peça. Para o silêncio eu imaginara um monólogo. Só que o monólogo, neste caso, tinha metade da força do silêncio e metade do seu efeito.
Outras vezes demo-nos conta de que certas cenas, por estarem em determinadas posições, teriam de ser mais curtas ou mais longas. Por exemplo, a primeira cena era demasiado comprida para primeira cena, arrastava a peça logo de início, adormecia o espectador quando o efeito pretendido era exactamente o oposto. Já a primeira cena entre Sara e Alberto pôde ser mais comprida porque naquele momento a peça o permitia.
Ao ver a peça levantada, percebe-se melhor, é verdade, mas também tenho consciência de que algumas das coisas que não fui capaz de ver se devem em parte a alguma inexperiência minha. A mesma inexperiência que me levou a introduzir bocados de texto que interrompiam ou se sobrepunham a uma cena e lhe cortavam o ritmo. Tive de abdicar deles.
Dei – e a encenação fê-lo com uma mestria e sensibilidade a que devo muito – sempre importância ao facto de tentar de alguma forma escrever uma peça que alternasse os ritmos de maneira a levar consigo o espectador. Alternar a gargalhada com o momento mais sério (e estou a simplificar), a velocidade rápida com a lenta. Não deixar o espectador adormecer, não pesar em demasia, não deixar afundar. Queria de alguma forma levar o público com a escrita, tornar claro que aqui é de um slow que se trata e mais à frente de um fox-trot.
Por isso a música em determinados momentos. A música é capaz de agarrar quem a ouve de um modo mais imediato. Quando ouvimos reggae, batemos o pé. Quando ouvimos Lamb, acalmamo-nos. A música que se ouviu no espectáculo foram temas que estiveram por trás da escrita de determinadas cenas. Quando as pusemos a tocar também na encenação, elas passaram a estar, pelo menos era essa a minha ideia, por trás da leitura dessas cenas.
Cheguei a pretender que a música inicial, “ Many Rivers to Cross”, conseguisse por si só resumir a história que se passou com Vasco antes da peça começar. Diz a letra: “My woman left and she didn’t say why”. Era pedir demais ao espectador, porque antes de ouvirmos a letra estamos a ver o actor, a ouvir as notas e a letra passa então, para a maioria, ao lado, como é natural.
Conversa entre José Maria Vieira Mendes e Jorge Silva Melo trocada por e-mails em Janeiro de 2004.
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