A PAIXÃO DO JARDINEIRO de Jean-Pierre Sarrazac
Tradução Isabel Lopes Com Cecília Guimarães e António Simão
Na Antena 2 a 7 de Setembro de 2010
UM TEATRO EM ESTADO DE VIGÍLIA
« Imagino o autor de teatro deste início do século XXI como alguém que dorme em pé e que sonha tornar-se velador do mundo real ». É desta forma que Jean-Pierre Sarrazac inicia o texto intitulado « Aqui, agora, talvez », redigido em 2007, e que viria a introduzir o primeiro volume do seu teatro completo, publicado em França na mesma data. As quatro peças (das cerca de quinze que escreveu) incluídas neste volume (O Menino-rei, O Casamento dos mortos, Os Inseparáveis e A Paixão do jardineiro) são um excelente exemplo daquilo que poderíamos apresentar como « um teatro íntimo », « rapsódico », onde o autor põe em prática aquilo que ele próprio designa por « realismo do desvio ». Na verdade, e como refere Bernard Dort num célebre prefácio, Jean-Pierre Sarrazac, conhecido sobretudo pela sua obra teórica – de O Futuro do drama (1981), a Théâtres du moi, théâtres du monde (1995), passando pelo importante estudo La parabole ou l’enfance du théâtre (2002) até ao belíssimo texto dedicado ao público juvenil Je vais au théâtre voir le monde (2008) – viu muito, leu muito; encenou textos e realizou espectáculos; falou com inúmeros autores e homens de teatro; escreve peças; ensina teatro a estudantes e aprendizes de actor. Está, portanto, dentro e fora, simultaneamente. » (Dort, 1981). Nesta vasta obra, reconhecida internacionalmente com o prémio «Thalia», atribuído pela Associação Internacional de Críticos de Teatro, em 2008, cruzam-se constantemente a reflexão crítica, a conceptualização e a escrita dramática, numa dupla aventura – a do dramaturgo e a do ensaísta – sempre com a secreta ambição de transformar o teatro, esse espaço onde a realidade se abre aos múltiplos caminhos do possível.
A Paixão do jardineiro, diálogo em quatro estações entre uma judia de 75 anos e o seu assassino, um jardineiro anti-semita de 19 anos, inicialmente seu protegido, apresenta-se como uma crónica do nosso tempo, a partir daquilo a que o próprio autor viria a chamar « um material histórico quotidiano », e onde se privilegia um espaço intermédio : algures entre o íntimo e o político, entre o sonho e a realidade, entre o filosófico e o afectivo, entre a vida e a morte. Aqui, as interrogações desta mulher judia (« por que razão me mataste ? », « porquê quarenta anos depois de eu ter escapado ao genocídio nazi » ?) permanecem sem resposta ou, se resposta houver, mais não é do que um esboço fantasmagórico que se interpõe entre as duas personagens e atravessa o espectador. Até porque, como refere Jean-Pierre Sarrazac, « a função de uma peça de teatro não será tanto enunciar verdades , mas muito mais reforçar o enigma ». Talvez por isso durma em pé aquele que sonha ser velador do mundo real, consciente de que a verdade é por vezes inominável, mas que ainda assim vale a pena o estado de vigília.
A Paixão do jardineiro, na tradução de Isabel Lopes, teve estreia em Portugal em 1994, numa encenação de Fernando Mora Ramos para o TEP, e contou com a interpretação de Paulo Claro e Cecília Guimarães.
Alexandra Moreira da Silva