A síndroma KLG

Bruno Tackels

KLG. Três letras que soam como uma sigla encriptada. Três letras que condensam uma estranha síndroma que trabalha a paisagem francesa há mais de quinze anos. No espaço de sete anos, o desaparecimento brutal de três escritores maiores dos anos 80 priva o teatro francês de uma alavanca preciosa que estava a metamorfosear a sua paisagem estética. Os anos 70 conheceram o reinado flamejante de uma figura hegemónica, que dominava o conjunto da criação teatral. Por toda a Europa, o encenador apareceu como uma figura hegemónica, rebento ingrato e contestatário de uma dupla filiação, ao mesmo tempo brechtiana e vilariana. Strehler e Ronconi em Itália, Stein ou Grüber na Alemanha, Vincent ou Chéreau em França. Tantos exemplares de uma cena europeia que tinha anexado completamente os vários elementos, entre eles o texto teatral, para construir e alimentar uma leitura actual dos textos do património mundial. É verdade que se escreviam textos novos para dar conta do tempo presente, mas não deixaram de ser largamente minoritários, muito em particular em França, sufocados pela impressionante maquinaria que servia para encenar uma leitura, enquanto rescrita personalizada de textos do repertório. É verdade que a Alemanha soube dar um outro lugar a estes escritores, em especial graças a esses “Ensembles” que funcionavam a partir de uma permanência artística de actores, escritores e dramaturgos e que permitiram a emergência de escritas tão essenciais como as de Botho Strauss, Peter Handke ou Heiner Müller.

O exemplo mais manifesto deste sufocamento da escrita pela figura do encenador é sem dúvida o de Bernard-Marie Koltès. É verdade que Patrice Chéreau lhe uma grande visibilidade no palco dos Amandiers em Nanterre (apesar de não devermos esquecer o papel essencial de Bruno Boëglin que montou Roberto Zucco no TNP de Villeurbanne), mas paradoxalmente os textos de Koltès contribuíram em grande medida para a reputação do seu encenador, a ponto de escamotear qualquer verdadeiro debate estético e dramatúrgico com a obra dramática em si. Seria preciso chegar o ano 2000 para que aparecesse esse ensaio tão belo de Christophe Bident, Bernard-Marie Koltès, Généalogies (1), uma tentativa salutar de contrariar a mitologização precoce de um escritor e de encetar ao mesmo tempo uma verdadeira leitura, poética, política e também filosófica, de uma obra cujo teor literário foi durante demasiado tempo menorizado. Da mesma época, é preciso assinalar também o ensaio de François Bon, no sentido literal, que tenta ler os textos de Koltès através dos estilhaços e fragmentos que mostram a arquitectura subterrânea de uma leitura íntima que comunica com a de uma outra obra, a do próprio François Bon (2) . Não só a sombra do encenador Chéreau obscureceu a realidade mesma dos textos, mas configurou sobretudo uma leitura que substancializa a nossa visão da obra, apoiando-se ao mesmo tempo no cinema (e no seu realismo histórico) e no boxe (que paralisou de uma vez por todas a dialéctica que trabalha os textos).

É manifesto que o próprio Koltès sabia perfeitamente que este ascendente da encenação era nefasto ao seu desenvolvimento de escritor de pleno direito. De resto, não deixou de o fazer saber publicamente, e os últimos anos da sua vida foram marcados por um distanciamento em relação a Patrice Chéreau, contestando sobretudo as distribuições dos papéis (em particular a decisão de repor Dans la solitude, vestindo ele próprio o papel do dealer, sendo que era muito importante para Koltès que esse papel fosse representado por um actor negro (3)).
Foi em parte para evitar este tipo de apropriações à sua escrita que Jean-Luc Lagarce e Didier-Georges Gabily se puseram a encenar eles próprios as suas peças – mesmo se esta decisão lhes fosse custar caro, visto que não estava dentro do espírito dos tempos, nesses inícios dos anos 80. Aquilo de que se aperceberam intimamente, tanto um como o outro (e apesar de o terem feito com meios, estratégias e fins muito diferentes) foi que a sua escrita teatral não se poderia realizar completamente se eles não assumissem até ao fim a sua tradução no palco (que eu vejo como uma escrita de pleno direito (4)). Daí a sensação muito violenta de traição quando Gabily confiou, em vida, um ou outro dos seus textos para que fossem montados por outros encenadores.
Koltès, Lagarce e Gabily anunciavam o encetar de uma nova época para as escritas de teatro. Uma época que já não seria caracterizada pela cisão entre o escritor do texto literário e o escritor do texto de palco. Foi esta cisão que deu lugar e espaço ao encenador, arrogando-se um estatuto hegemónico em relação aos textos que “monta”. Mas a partir do momento em que essa cisão já não é o quadro dominante e em que a encenação se torna um dos elementos do trabalho teatral, a escrita e o palco deixam de ser dois elementos distintos, leia-se antagonistas, mas antes dois momentos, duas sequências de um único processo de criação. Vemos claramente que os escritores de teatro deste início de século pertencem a uma destas duas categorias, à antiga situação ou à nova organização da fabricação teatral: aqueles que escrevem para serem montados por outros e aqueles que escrevem para que se escreva o seu palco. Dando lugar a estéticas bem diferentes, podemos agrupar, nesta segunda categoria, escritores que tudo separa, mas que acabam por ser todos escritores para o palco, e do palco: Olivier Py, Xavier Durringer, Serge Valletti, Hubert Colas, Pascal Rambert, Jean Lambert-Wild, bem como autores bastante mais novos, como Anitia Uzeyman, Joris Lacoste, o laboratório de imaginário, abrigado no Centro Dramático de Caen, ou o colectivo de escritores “Lumière d’août”, sediado na Bretanha.

Infelizmente, os escritores que chegam ao palco só muito raramente dominam o seu instrumento de produção, a saber, o próprio palco e sobretudo os actores que lhes vão permitir testar o que estão a fazer. Se fosse preciso ousar uma ideia, a partilhar e mesmo a pôr à prova concretamente, uma ideia que pudesse voltar a dar vida a um Ministério da Cultura exangue e sem horizontes, seria com isto que se poderia sonhar. Existem hoje em França Centros Dramáticos e Cenas Nacionais (cerca de cinquenta Centros Dramáticos para a criação, na sua grande maioria confiados a encenadores, na sua grande maioria não-escritores, e dedicados maioritariamente ao repertório antigo, bem como cerca de sessenta Cenas Nacionais, para a difusão das obras teatrais e do espectáculo vivo em geral), é uma situação ao mesmo tempo muito florescente e, paradoxalmente, em plena desertificação criadora. Qualquer pessoa com alguma liberdade e lucidez reconhece a necessidade de uma verdadeira reforma desta paisagem. Sonhemos um pouco: a reforma do conjunto dos “lugares de teatro” deveria permitir a redefinição de dois objectivos claros e distintos, para romper com a actual confusão dos géneros, das missões e das práticas. Ou a casa serve para difundir as obras, o mais alargadamente possível, e está equipada para esta missão, com pólos de produção dos espectáculos que irão em tourné. Ou então ela torna-se o instrumento de uma verdadeira equipa de criação, em torno de um criador centrado nas questões da escrita, textual e de palco, com um “ensemble” de actores permanentes, que lhe permita levar a cabo o seu trabalho como todo o rigor. É pagando o preço de uma revolução copernicana à escala dramatúrgica deste tipo que as escritas voltarão a ser credíveis na paisagem teatral francesa e, por consequência, europeia. Como imaginar, com efeito, que uma escrita ecluda sem lhe dar o tempo, a duração verdadeira e necessária à sua eclosão? Uniformizou-se brutalmente o tempo de ensaios, de seis a oito semanas, sem dar conta que assim se tornam impossíveis experiências de trupe como a de Gabily ou Lagarce, que nunca teriam podido escrever sem aqueles seres que estimulavam e povoavam a sua proximidade.

Sem esquecer os gestos de escrita que acompanham as escritas de hoje, quero falar da actividade, completamente menorizada em França do olhar dramatúrgico sobre as obras dramáticas. É manifesto, e totalmente consternador, constatar que os “poderes públicos” que financiam o teatro, da mesma maneira que os seus substitutos executivos, não estão de todo preocupados com a existência de órgãos redactoriais que dêem conta dos espectáculos criados e analisem o seu sentido o alcance. Apesar de se poder recensear uma actividade dinâmica de revistas “independentes”, não existem estruturas e formas que possam abrigar um verdadeiro discurso, literário, político, sociológico e filosófico, sobre as obras que nascem. Mais uma vez, como Lagarce ou Gabily sentiram cruelmente em vida, a Instituição tem muita dificuldade em abrir-se ao desconhecido, ao pouco conhecido, porque estão precisamente a começar a ver a luz do dia. Decididamente, impõe-se uma revolução mental…

Tradução de Joana Frazão

1- Editado pela Farrago.

2 – Pour Koltès, nos Solitaires Intempestifs, colecção “Essais”.

3 – Uma tal oposição de pontos de vista está longe de ser anedótica, bem pelo contrário. Mostra claramente que toda a escrita para teatro é, à partida e consubstancialmente, uma escrita do próprio palco, uma escrita que só existe plenamente se for prolongada por decisões concretas no palco. Se quem escreve o texto e quem escreve o palco estão cindidos em duas pessoas distintas, como acontece maciçamente no fim do século XX, o teatro artístico expõe-se a mal-entendidos dramáticos, como não deixámos de assistir desde Beckett.

4 – Ver sobre este assunto os dois primeiros opúsculos de “Ecrivains de plateau” (em torno do trabalho da Sociétas Raffaello Sanzio e do Théâtre du Radeau).

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