Antonio Onetti – A cada história a sua linguagem

Antonio Onetti é o mais conhecido dramaturgo andaluz contemporâneo. Nascido em Sevilha em 1962, começou a sua carreira como actor numa companhia de Sevilha antes de estudar, em Madrid, na Real Escuela Superior de Arte Dramático e no Centro Nacional de Nuevas Tendencias Escénicas. Foi professor de dramaturgia na Escuela Superior de Arte Dramático de Sevilha e orientou diversos ateliers de escrita. Actualmente vive em Sevilha, onde trabalha como dramaturgo, encenador e argumentista de cinema e televisão.
Começou por chamar a atenção como autor em 1985, quando o seu primeiro texto, Los peligros de la jungla, ficou em segundo lugar no Prémio Marqués de Bradomín (o mesmo aconteceria, três anos depois, com Marcado por el típex). A sua peça curta La puñalá foi representada em Espanha, Roménia, França, Inglaterra e Colômbia. Recentemente, a sua adaptação da Mãe Coragem de Brecht, Madre Caballo, obteve grande sucesso: depois da estreia em Cádiz, a digressão incluiu várias cidades espanholas, europeias e da América Latina. O seu último texto, La Calle del Infierno, já foi apresentado em Sevilha, Barcelona e Madrid.
Escreveu as seguintes peças: Los Peligros de la Jungla (1985), La Chica de Cristal (1986), Malfario (1987), Marcado por el Típex (1988), Líbrame, Señor, de Mis Cadenas (1989), La Diva al Dente (1990), La Puñalá (1992), Salvia (1993), Purasangre (1993), La Rumba del Maletín (1995), Madre Caballo (1997), Almasul, Leyenda de Al Andalus (1999), La Calle del Infierno (2001).
Em 12 e 13 de Julho deste ano, durante o festival de Almada, com o apoio do Instituto Cervantes e aproveitando a vinda a Portugal do espectáculo La Calle del Infierno (pela companhia Valiente Plán, no Teatro Maria Matos), os Artistas Unidos realizaram um fim-de-semana de leituras de peças de Antonio Onetti (dirigidas por João Meireles e Joana Bárcia, na Sala Virgílio Martinho do Teatro Municipal de Almada). Nuno Melo, Teresa Sobral, João Meireles, Pedro Carraca, Vanessa Dinger, Miguel Telmo, Vítor Correia e António Simão leram, numa tradução de Jaime Rocha, Puro-Sangue; António Simão, Sylvie Rocha, Isabel Muñoz Cardoso e João Meireles leram Marcado pelo Tipex, numa tradução de Joana Frazão; Gustavo Sumpta e Sérgio Gomes leram, numa tradução de Clara Riso, Santíssima Apunhalada. Estes textos, juntamente com A Rua do Inferno (tradução de António Gonçalves), foram publicados pelos Artistas Unidos no nº 2 da colecção Livrinhos de Teatro.
No fim das leituras, no dia 13, Antonio Onetti falou connosco e com os espectadores presentes. O texto que se segue resulta dessa sessão.

Espanha, a ditadura e o realismo
Pertenço a uma geração que se revelou nos anos 80 em Espanha, uma época que foi de grande invenção para os escritores. Somos a primeira geração de escritores que começou a trabalhar na democracia. As gerações anteriores foram marcadas pela ditadura, pela luta contra a ditadura e sobretudo pela censura que intervinha directamente naquilo que se podia escrever e representar e na maneira como as companhias e os autores representavam e escreviam para conseguir escapar a essa intervenção. Por isso, a maioria dos textos tinha um carácter urgente, muito imediato, de acordo com a situação política. E trabalhava-se muito com o universal, coisas que não parecessem demasiado concretas mas que o espectador compreendesse. Porque se estava a falar da ditadura.
Quando acabou a ditadura e começou a democracia, foi a altura em que as pessoas da minha geração (tenho agora 41 anos) começaram a fazer teatro. Eu comecei por trabalhar como actor numa companhia. E, tal como eu, havia muita gente que estava a trabalhar em companhias independentes e que ficou muito desorientada. Estavam habituados a certos modelos e de repente não sabiam o que fazer em liberdade. Nós não tínhamos vivido isto tão directamente, eu tinha 14 anos quando morreu o Franco, ou seja, vivi a ditadura, mas não estávamos condicionados por isso. Por outro lado, demo-nos conta de que a maior parte do teatro que se tinha escrito naqueles trinta anos anteriores tinha perdido actualidade. Por isso mesmo, por ser muito urgente, demasiado universal. Nós que fazíamos teatro ou recorríamos aos clássicos – que sempre se tinham podido fazer – ou inventávamos um teatro novo que correspondesse àquilo que queríamos contar e que podia ser bem diferente.
As pessoas da minha idade escolheram dois caminhos. Uma parte, herdeira do que tinha sido o teatro independente, do universal, dedicou-se a um tipo de teatro que procurava aquilo a que a que se chamou em Espanha “novas tendências”, uma certa vanguarda, um teatro poético, da imagem, cruzando estéticas e outras artes cénicas… Um outro grupo de escritores, em que eu me podia incluir, tentou trabalhar a partir da sua idiossincrasia, do seu estilo, em busca de um novo realismo. Procurámos recuperar a tradição realista que se tinha quebrado em Espanha, uma vez que, durante a ditadura, a única coisa que tinha sobrevivido e poderia parecer realista era o teatro mais burguês e menos comprometido. Em Inglaterra, por exemplo, isso não aconteceu, o teatro de esquerda era realista, com John Arden, Osborne…
Nós tentámos recuperar esse realismo. Queríamos um realismo que não era o realismo dos anos 50 ou 60, o realismo americano de Miller ou Tennessee Williams, nem o teatro realista espanhol de Buero Vallejo… Reconhecíamos que existia o Fernando Arrabal, conhecíamos Beckett, conhecíamos Brecht. Tentávamos assim recuperar o que tínhamos aprendido com esses autores e voltar a transformá-lo naquilo que para nós era o mais importante da tradição espanhola, o teatro realista.

Marcado pelo Tipex
Claro que estar a falar de realismo depois de terem ouvido Marcado pelo Tipex parece um pouco estranho. Talvez Santíssima Apunhalada ou sobretudo Puro-Sangue se adequem mais ao que estou a dizer. Marcado pelo Típex é o oposto, e isso acontece porque a partir dessa ideia de procurar um certo realismo o meu trabalho nunca se centrou em criar um estilo pétreo ao longo da minha obra, mas precisamente o contrário: acho que sou mais dramaturgo do que escritor, no sentido de ver a dramaturgia como a criação de uma linguagem. Acredito muito na dramaturgia do espectáculo e do texto, e nesse sentido nunca quis fazer um teatro “literário” mas sim um teatro “dramático”, muito teatral, passe a redundância, partindo do facto de já não estarmos no naturalismo, sabemos que o que acontece no palco é teatro, não tentamos convencer ninguém de que aquela acção é verdadeira — é uma representação. A partir daí o meu trabalho foi sobretudo desenvolver linguagens diferentes para contar histórias diferentes. Cada história deve criar a sua própria linguagem, em que pede para ser contada, tal como o encenador tem de escolher uma linguagem para cada peça que monta. Não podemos fazer como antigamente, antes de haver encenação, quando todas as peças de teatro clássico de capa e espada se montavam da mesma maneira artesanal, que se repetia indefinidamente. Eu tento fazer o mesmo com o texto.
O Tipex é a história do abismo que existe entre o que se quer criar e aquilo que de facto se cria. É a luta do criador: pode-se sonhar contar uma coisa e persegui-la, mas fica-se insatisfeito, um autor totalmente satisfeito é um pouco estranho… Porque a pessoa quer sempre ir mais longe, e depois chega até onde pode, dependendo do talento, da oportunidade que se teve, do trabalho que dedicou a isso. Eu queria contar essa história, jogar com aquilo que é a criação literária, a composição das personagens. Talvez na leitura a peça pareça mais homogénea mas, numa encenação, ao utilizar a linguagem da representação, a interpretação e a composição de personagens “reais” como o escritor e a namorada seriam feitas de uma maneira e a composição das personagens do romance seria diversa, como na RosaPúrpura do Cairo de Woody Allen, em que a personagem que fugiu da tela e vem ter com os outros é diferente deles. Ao mesmo tempo, a peça está recheada de sonhos, que também são componentes da criação, a parte mais dionisíaca e, por outro lado, com aquilo que tem a ver com a técnica, a composição pura e dura: as regras, se há oposições, se há um conflito, o que é que vai acontecer, se se deve desenvolvê-lo… E isto ao serviço de contar uma história em termos que são muito humorísticos.

A investigação e a história
Mais do que o ter sido professor — fui professor de dramaturgia na Escuela de Arte Dramático de Sevilha durante 5 anos — é importante o meu desejo de investigar o que é a linguagem teatral, que é uma linguagem muito rica. E, normalmente, quando falamos de investigação em linguagem teatral, vamos quase inevitavelmente buscar a linguagem não-dramática, ou seja: investigamos o teatral no não-teatral. A mim parece-me muito interessante que um encenador faça um espectáculo a partir da lista telefónica. Mas normalmente isso não é teatro dramático. É teatro a-dramático, é outra coisa. Eu sempre assentei o meu trabalho num teatro que é nitidamente dramático, o teatro onde posso encontrar Sófocles, Shakespeare, Brecht, Valle-Inclán, Lorca… Não me parece nem bem nem mal que se investigue o que se quiser, mas o meu trabalho está aí. Ao contrário de muita gente, penso que este mundo dramático ainda tem muitas possibilidades de investigação. A certa altura parecia que o realismo tinha chegado aos seus limites, nos Estados Unidos, com Miller e Tennessee Williams. Mas depois apareceu Shepard, com um teatro também realista que, no entanto, ia mais longe, que remetia para as obras de Bacon. Apareceu Mamet, que além do mais jogava com a linguagem de uma forma muito determinada — e apesar disso continuam a abrir-se portas ao realismo e ao teatro dramático.
Toda a gente percebe perfeitamente que os monólogos de Shakespeare se dirigem ao público, mesmo que o actor fale consigo próprio, tal como na ópera se pára o espectáculo e se faz a ária, de frente para o espectador: vais até ao proscénio, fazes a ária e depois o espectáculo continua. É um modelo de relação com o espectador que também me interessa. Em A Rua do Inferno há uma série de elementos de relação entre as personagens e o espectador, entre as personagens e o espaço, entre a situação e o espaço. Eu não tento que isso esteja em primeiro plano, não tento fazer um espectáculo daquilo que eu possa ter investigado, mas sim usar aquilo que investiguei ao serviço da história, para que a história se conte a si própria, da maneira mais simples e acessível ao espectador. Quando se escreve com humor está-se a escrever para o espectador. E o mesmo quando se escreve dramas, para que o espectador se emocione, quando se lhe dá tempo para secar as lágrimas.
Outro exemplo: a peça La diva al dente, que é a história de uma burla à volta de uma cantora e de um negociante de arte. Aqui a linguagem evolui ao longo de três actos: no primeiro acto é uma peça mais ou menos realista, digamos, em termos de vaudeville; no segundo, a coisa começa a complicar-se e há uma personagem que se põe a cantar, mas de uma maneira justificada pela acção; e no terceiro acto, da mesma maneira que no vaudeville tudo se reúne, reúne-se a linguagem, todas as personagens acabam a cantar, e de repente aquilo converte-se numa opereta. Ou seja, a peça avança não só através dos elementos da história, mas também através de elementos da linguagem, porque se está a passar a um estádio superior que resulta do anterior e que tem a ver com a história. Nessa peça canta-se porque gira à volta de uma cantora. No Tipex aparecem as personagens, o mundo da literatura, o sonho, porque se trata de um escritor.

Policiais
Em Marcado pelo Tipex joga-se com os elementos do género policial levados à sua fórmula mais estúpida (há uma personagem que se define como um péssimo escritor, que escreve um péssimo romance).
Há uma coisa que me incomoda, que é a cultura, “la grande culture”, no sentido em que, por exemplo, fazer uma comédia não pertence à cultura. Mas se vais até à última aldeia e compras uma jarra de barro feita por um artesão, isso sim é cultura. Para fazer cultura, há que escrever literatura, fazer uma coisa que de preferência não se perceba, e sobretudo que agrade aos directores dos festivais. Eu estou contra isso. E reivindico, porque não tenho outro remédio, como parte do meu acervo cultural tudo aquilo que nos impuseram, desde que nascemos, da cultura norte-americana. Os índios e os cowboys tiveram uma presença maior na minha vida do que os bandoleiros andaluzes, lamento. Tenho que assumir isso, não posso tirar a parte do cérebro que está contaminada, fazer uma lobotomia. Claro que uma pessoa se pode reeducar, mas eu gosto dos romances de Dashiell Hammet, de Philip Marlowe, de Le Carré… Acabei por gostar deles, da mesma maneira que gosto deCamusou Sartre, ou Saramago. Então pareceu-me boa ideia jogar com esses tópicos dos romances americanos no Típex, onde as quatro personagens estão reduzidas à sua mínima expressão, são esvaziadas de conteúdo e se convertem em joguetes.

Almasul e a reinvenção de uma linguagem
Digamos que aquilo que sempre fiz ao abordar uma peça de teatro foi colocar a mim próprio uma hipótese de investigação ao mesmo tempo que contava uma história. Não se trata de pôr a investigação sobre o vazio, havia sempre uma relação entre a história e a busca da linguagem adequada para contá-la. Tenho uma peça chamada Almasul, leyenda de Al-Andalus, que é uma história do século XI. A ideia surgiu-me quando começou a pujança do integrismo, tanto o muçulmano como o cristão, ou o fanatismo do Estado de Israel em toda essa questão da Palestina. E parece que o Al-Andaluz foi, numa certa época, um modelo de convivência. Ao contar essa história, queria fazê-lo em termos lendários, com esse gosto de nostalgia que a lenda tem. E isso obrigou-me a fazer uso da poesia arábico-andaluza, porque era uma linguagem muito poética. Mas a poesia arábico-andaluza era escrita em árabe… E no século XI, dizer a uma mulher que tinha olhos de vaca era um piropo muito apreciado, referia-se à doçura da vaca. Claro que se fizesse a transposição desses modelos poéticos do século XI para os nossos dias, o resultado seria completamente absurdo. Era portanto preciso reinventar uma linguagem, que era absolutamente artificial, escrita em espanhol e no século XX, que correspondesse ao espírito dessa poesia arábico-andaluza. Foi um trabalho muito específico, que conduz a uma peça mais próxima, digamos, de um teatro “shakesperiano”, com muitas personagens, batalhas, quadros, com actos diferentes…

Salvia e as várias maneiras de trabalhar
Por outro lado, tenho uma peça, Salvia, cuja origem foi uma série de artigos escritos quando se deu o cerco de Sarajevo, sobre uma companhia que se tinha refugiado no teatro. Como não podiam fazer teatro na sala principal foram para o cabaret, que existia na cave. Durante o cerco escreveram uma peça e estrearam-na, de maneira que as pessoas iam à estreia a desviarem-se dos franco-atiradores, das bombas. Havia a situação dramática do técnico, tinha perdido as pernas… Isto foi contado pelo Alfonso Armada, que é um autor dramático espanhol e jornalista do El País. Eu decidi que queria fazer uma peça a partir disto e a minha maneira de a escrever fazia um pouco apelo ao estilo de autores de leste que conhecia: checos, eslovacos. É uma peça que vai de trás para a frente, que começa com o final e acaba com o princípio; que tem uma certa frieza, que tem também muitos jogos de linguagem. A hipótese de trabalho era essa.
Uma característica importante da origem do meu teatro e da minha geração é que tivemos a oportunidade de nos formarmos. Não éramos autodidactas, já havia um certo desenvolvimento das escolas de interpretação, de encenação… e de dramaturgia, embora muito menos. E quase todos tínhamos sido antes actores ou encenadores, ou continuávamos a sê-lo simultaneamente, de modo que tínhamos um contacto muito grande com o palco, um certo conhecimento do acto teatral a partir de dentro, dessa vivência do actor e do encenador, o contacto com o público. E tínhamos sobretudo a possibilidade de trabalhar com grupos que nos eram próximos, com quem nos entendíamos. Isso gerava outras formas de abordar a escrita dramática. Até aí havia um divórcio muito claro entre o escritor de teatro, que escrevia isolado e sozinho no seu escritório, e aquilo a que se chamava criação colectiva, quando o grupo assumia a autoria porque toda a gente participava, ou era assim oficialmente. Nós começámos a criar modelos de trabalho em que a peça podia continuar a ser de um autor, de um dramaturgo, mas que estava integrado no grupo: podia escrever para esse grupo, ou incluir os actores no processo de criação, trabalhando com improvisações no desenvolvimento de uma estrutura dramática prévia a que depois daria forma, tanto ele no seu escritório como o encenador definindo a encenação.
Em Salvia eram quatro actores, o encenador e eu. Em dois meses desenvolvemos a estrutura dramática e escrevemos o texto. Digamos que, durante um mês, quem dirigia o trabalho era eu, o autor, propondo improvisações e situações, e o encenador funcionava mais como testemunha desse trabalho e um interlocutor do autor, mais do que dos actores. À medida que ia aparecendo aquilo que queríamos, o dramaturgo ia desaparecendo e ia aparecendo o encenador, de maneira que na última semana o dramaturgo já não existia, tal como na primeira semana o encenador não existia: houve um processo de substituição. Eu sempre assumi a autoria dessas peças que posso ter feito por encomenda ou outro tipo de trabalhoporque as considero tão minhas como as que escrevo em casa, de uma maneira autónoma ou independente.

Centro e periferia
Em Espanha, quase todos os elementos culturais foram transferidos para as regiões. Isso fez com que nos últimos 20 anos se tenha desenvolvido muito o teatro em toda a periferia, se bem que os focos mais importantes de produção e movimento sejam Madrid e Barcelona. O que acontece é que muitas pessoas, quando querem aprender e conhecer, vão até Madrid, como foi o meu caso — estive lá, fiquei uns anos, e depois tinha vontade de desenvolver o meu trabalho na minha região, em Sevilha. E isso aconteceu com muitíssimas pessoas.
Com a diferença de que Madrid, neste momento é um caos absoluto: há muita produção teatral, mas tem-se vindo a banalizar, vão desaparecendo os espectáculos mais interessantes e aparecendo os espectáculos de massas copiados dos musicais da Broadway, que vão açambarcar a atenção; ultimamente temos os monólogos do pénis, da vagina, daqui a pouco aparecerão os de outras partes do corpo… E é isso que traz as pessoas. Aos actores que já estão numa série de televisão e já são populares, a mesma produtora monta-lhes uns monologozitos e isso arrasa. Isso está a acontecer sobretudo em Madrid, onde se faz quase toda a televisão e quase todo o cinema. Daí que haja uma quantidade enorme de actores e de gente, uma população que vai e vem.
Pelo contrário, nas regiões, por um lado, ter a administração próxima dos problemas permitiu que se tenham restaurado no total uns 800 teatros, 800 salas que antes eram cinemas, teatros semi-destruídos, salas que se converteram em teatros, teatros à italiana maravilhosos que se equiparamcom toda a maquinaria moderna, ou teatros construídos de raiz, como o Teatro Central de Sevilha em 1992, que é um espanto.
Há assim um paradoxo: por exemplo, a última peça que fizemos no Centro Andaluz de Teatro, foi uma versão de Romeu e Julieta, escrita por mim, que estreámos no Teatro Central, uma sala absolutamenteconvertível: carrega-se num botão e desaparecem as cadeiras, literalmente. Nós tínhamos um palco central, com duas torres, 100 espectadores em bancadas dentro do palco, e depois a plateia. Quando levámos o espectáculo a Madrid, fomos à sede da Companhia Nacional de Teatro Clássico, o Teatro Pavón,e tivemos que fazer a peça na metade do espaço, com um terço do público no palco, porque não cabia. É um espectáculo que não tem de facto cenografia, porque ela é feita pela iluminação, que é muito complexa, com base em elementos móveis que giram — mas é preciso ver-se o chão, e no Teatro Pavón não se vê o chão, porque a plateia está abaixo do palco. Ou seja: nós, os pobres parolos da aldeia, vamos à metrópole e temos de fazer um terço do que podemos fazer. E não é que nos tenham mandado para um sítio qualquer: é o teatro que tem neste momento a Companhia Nacional de Teatro Clássico, porque todos os espaços cénicos oficiais, que dependem do INAEM (Instituto Nacional das Artes Cénicas e da Música), do Ministério da Cultura, estão fechados, para obras. O Olympia, o Teatro de la Comedia, o Teatro María Guerrero, todos. É um paradoxo que me parece bastante explicativo. Neste momento, fazer teatro na Galiza é um prazer, porque tem mais dinheiro, mais ajuda e subsídios do que em Madrid.

Cinema e televisão
Há muitos autores dramáticos que foram passando à televisão (mais como meio alimentício) e ao cinema (já como meta artística). Entre outras razões porque, no teatro, durante os anos 70 e princípio dos 80 ocorreu o fenómeno do delírio do encenador — de repentehavia liberdade e dinheiro para a cultura, mas num mundo em que o encenador era o motor, gerador de coisas, o homem de acção que move os outros, e o autor estava desaparecido, ou porque estava a escrever em casa, ou porque as criações eram colectivas, e então parecia que o texto era uma coisa que tinha acabado. Pouco a pouco, houve um ressurgimento, uma aceitação de que o papel do autor é importante — porque a palavra é importante, e há muitas ideias que não têm outra maneira de serem transmitidas.
E no cinema aconteceu um pouco o mesmo: vínhamos de um cinema mais de autor, monopolizado pelo realizador. Agora há pessoas que se estão a incorporar como guionistas, junto de realizadores com que se relacionam bem,como é o caso do Ignacio del Moral (com Fernando León de Aranoa, o realizador de Los Lunes al Sol) e também o meu, que estou a trabalhar com Benito Zambrano, o realizador de Solas.
O princípio que nos fez começar a escrever foi procurar essa zona da realidade em que vivemos e que não pertencia ao mundo do teatro, que não tinha sido contada. A primeira peça em que aparece um toxicodependente em Espanha é o Caballito del Diablo, de Fermín Cabal, em 1981. Há dez anos estreei uma peça, Líbrame, Señor, de mis cadenas, que é uma espécie de À Espera de Godot , mas com dois drogadosque estão à espera do passador. E há uma cena no fim em que a rapariga morria de overdose em directo, durante a representação, enquanto ele se estava a injectar e a contar-lhe um filme. Dez anos depois, estava a fazer os diálogos para uma novela para televisão, e aparece-me esta cena para escrever, descrita pelos argumentistas! Dez anos antes isso nunca se tinha feito e em palco parecia agressivo, inadequado, obsceno, e dez anos depois fazia-se numa telenovela das sete da tarde! E eu só tive de mudar os nomes das personagens e copiei a cena. Acho muito engraçado o que mudou em dez anos. E provavelmente aparece agora em televisão porque dez anos antes a começámos a utilizar em palco.
Porque é que não se fala do tráfico de seres humanos, da prostituição, da emigração, etc.? Agora o cinema em Espanha está a trabalhar com essas questões. Ignacio del Moral tem um peça chamado La Mirada del hombre oscuro, em que uma família de domingueiros vai à praia, com a tortilha, o guarda-sol, e de repente a criança vai a correr para a água e grita: “Pai, estão aqui dois negros mortos!” E é um pouco o não saber actuar perante isso, a realidade burguesa perante o drama que lhe chega do mar. Isso sempre esteve no teatro. La mirada del hombre oscuro depois fez-se em cinema e chama-se Bwana.

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