Arne Sierens – A bolsa de seda e a orelha da porca

Descobrimos Arne Sierens quando, há mais de um ano, preparávamos as leituras de teatro holandês contemporâneo. Foi, aliás, a presença de uma peça do belga Sierens que obrigou a mudar o título do projecto: de “holandês” para “neerlandês”. A peça escolhida foi O Meu Blackie (também já conhecíamos O Baterista), e foi um dos momentos mais felizes dessas leituras. Repetiu-se a dose em Julho deste ano: entre o Festival de Almada e o CCB, quatro leituras de textos de Sierens, que desta vez veio cá e conversou com os actores (n’a Capital, na esplanada do Festival, no barco) e com o público (em duas sessões de entrada livre). Já com três das quatro peças estreadas (Mouchette fica para daqui a pouco), Sierens voltou a Lisboa para assistir aos espectáculos. Numa esplanada do Chiado, foi abordado por um inglês que se apresentou como Sir Jack e tomava rapé; Jack afirmava que, para ele, o ditado mais verdadeiro era (traduzindo) “Não se pode fazer uma bolsa de seda a partir de uma orelha de porca”. Passado uns segundos, Arne disse “Mas é que eu acho que se pode.”Publica-se aqui uma selecção das conversas de Almada e do CCB.

Um percurso

Estudei encenação em Bruxelas e comecei por encenar peças clássicas. A certa altura não conseguia encontrar peças para encenar e então comecei a escrevê-las. Era mais fácil. Durante os meus quatro anos de estudo fui assistente de encenação em várias produções no teatro nacional em Gent, mas quando acabei fundei a minha própria companhia chamada Sluipende Armoede [À rasca de dinheiro], porque não tínhamos nenhum. Começámos numa velha fábrica, onde fazia muito frio. Durante dez anos tentámos arranjar dinheiro do governo e não conseguimos. Aconselharam-me a encontrar o meu caminho no teatro de repertório. Fi-lo durante dois anos na companhia De Blauwe Mandaag, onde fui escritor residente, mas desisti porque era muito infeliz. Era uma companhia muito interessante, dirigida por um encenador muito bom mas que era, na minha opinião, um mau director artístico. Tive a oportunidade de ir com dois amigos meus, Stef Ampe e Johann Dehollander, para o Nieuwpoorttheater, uma espécie de casa de artes que fomos dirigir, isto há cinco anos. Deixámos este teatro este ano e formámos a nossa companhia, o DAS Theater. [D de Dehollander, A de Ampe e S de Sierens…]

Processos de escrita

Para cada produção o tipo de trabalho que fazemos é diferente. Às vezes trabalho com improvisação. Começamos com os actores, uma pessoa responsável pela encenação, outra pelo texto. Outras vezes trabalho com Johann Dehollander, ele encenando e eu como co-encenador. Nos últimos dois anos, encenei eu e o Johann representou. Mudamos constantemente. Cada peça é um processo diferente. Às vezes sou um escritor clássico e apresento um guião, outras vezes começamos do nada, uma palavra, documentários. Na minha primeira peça com Alain Platel, Mãe & Filho, eu disse-lhe que não iria escrever: só duas semanas antes da estreia, quando foi necessário existir um texto, porque os actores precisavam que alguém decidisse o que eles iriam dizer. Mas isso é mais redacção do que escrita. Surgiu no fim.
Para cada produção faço investigação num sentido muito lato. Investigação que pode levar vários meses ou até anos. Investiguei sobre um bando de motociclistas dos anos 60. Entrevistei todos os membros e namoradas do gang que agora têm cinquenta anos e são vagamente criminosos. Mas nunca utilizo o material literalmente. Tento arranjar uma desculpa para entrar nas casas deles para poder ver como eles vivem. O tema é sempre uma desculpa. Sou um voyeur. Quero conhecer os pormenores, como falam, como vivem. Começo então a coleccionar coisas.
O que procuro é material que me toque. Não é uma procura racional. Quando começo a chorar é bom sinal. Quando me rio violentamente tenho qualquer coisa a que chamo de profundamente humano. Pode ser uma palavra, uma imagem, um pequeno pormenor, um movimento que me provoca. Tenho uma grande biblioteca de vídeos, colecciono um grande número de documentários, filmes, uso tudo. E começo. Ou começo na minha secretária, um processo que leva nove meses e dou o texto ao encenador e durante os ensaios mudamos. Ou então fazemos um casting para escolher os actores e trabalhamos durante 5 meses, improvisando. Acaba sempre por durar nove meses. Pode também acontecer que comecemos a ensaiar e improvisar e no final eu decido que texto será. Posso até escrever um texto uma semana antes da estreia. O texto para mim não é o princípio mas o fim. O texto para mim não é importante. É uma parte.

Começar

Pode acontecer que eu comece pelo cenário. Para O Meu Blackie começámos com: vamos fazer uma peça sobre um cão como protagonista, a biografia de um cão. Depois conversei com a pessoa que trabalha comigo nos cenários e decidimos ter um muro, um muro de cimento. Depois faço as audições. Depois junto o material. Para esta peça, o tema era “camponeses”. Quando eu era novo costumava ir para a casa da minha tia que vivia no campo. Era um miúdo da cidade no meio de camponeses. Era um pouco autobiográfico. Começámos por ver documentários sobre camponeses e depois entrevistámo-los. Camponeses de vacas, camponeses de porcos (que são muito diferentes). Os camponeses hoje estão numa posição terrível, porque são culpados de tudo, estão a contaminar o mundo com aquelas hormonas todas e as doenças, são mesmo pessoas estúpidas. E não conseguem arranjar mulher, grande problema, porque nenhuma mulher quer casar com um camponês. Hoje em dia na Bélgica, os camponeses vão a bailes para conhecer mulheres.
Começamos a improvisar e a ensaiar. Aos poucos vamos descobrindo coisas. Há uma coisa que não fazemos: trabalhar cena a cena. Não, trabalhamos com tudo ao mesmo tempo. O movimento, a dança, o texto, o cenário, a música, acontece tudo ao mesmo tempo. É um trabalho caótico.

Robert Bresson

Uso Bresson como ponto de partida. Gosto muito dos filmes dele, são muito condensados, tem esquemas de partida muito bons. Não fazemos nada que se pareça com ele, o Bresson é escuro, preto e branco, nós não. Bresson não consegue rir. Nós estamos sempre a rir. Por exemplo, Mouchette. Vi o filme de Bresson e chorei durante o tempo todo. E cinco horas depois ainda estava a chorar, o que para mim significava que era um bom filme. Foi difícil depois começar a escrita da peça. Porque escrever para duas personagens é muito mais difícil do que escrever para dez. Quando se escreve para duas, apetece sempre ter mais personagens que ajudem a escrever a história.

Actores

Começamos como uma família, uma tribo de pessoas e vamos descobrindo coisas. É muito importante que os actores precisem uns dos outros a princípio. Primeiro interessa que eles se preocupem em como vão conhecer o outro e só depois se preocupem com quem vão ser. Não temos um grupo de actores residentes. Trabalhamos sempre com uma mistura entre amadores e profissionais. Trabalho com gente nova, às vezes crianças. Escolho-os porque me interessam. Prefiro que não tenham experiência mas que tenham um segredo, qualquer coisa que eu queira saber. Muitas vezes são muito fechados. Pessoas que sofreram, que têm qualquer coisa partida, que têm uma história interessante.

Encenar

Não sou um encenador no sentido clássico do termo. Trabalho com um grupo, estou ao mesmo nível que os actores. Quando um actor vem ter comigo e me pergunta o que deve fazer, respondo sempre que não sei, peço que ele me mostre qualquer coisa e então talvez possa dizer sim ou não ou discutir sobre isso. E isto é uma provocação, porque actores que querem um encenador que lhes diga para onde ir, então vieram ter à porta errada, não é isso que eu faço. O que é difícil para eles. Eu acho que os actores têm de ser artistas. Eu depois posso adicionar coisas ou combiná-las, sugerir. E isto leva muito tempo a fazer: ensaiamos durante cinco meses.

Música

O meu passado está ligado à música. Fui cantor numa banda de pós-punk, e foi aí que comecei com o teatro. Um dos meus amigos da banda (era baterista) com ele escrevi três óperas. Foi aí que tudo começou. Mas tivemos de parar porque a ópera é muito caro. Queria fazer coisas novas mas a cena musical na Bélgica ainda é muito de século XIX: Puccini foi o último berro. É difícil fazer coisas novas. A certa altura então considerei a hipótese de utilizar a juke box. É mais barato trabalhar com CD’s. Trabalho com a música durante os ensaios. Está sempre presente. Mas também Fassbinder e Fellini a utilizaram. Durante os ensaios passa tudo o que passa na rádio e peço aos actores que tragam música eles próprios, porque pode ser esse o princípio para se conhecerem. E a música diz muito, traz ao de cima qualquer coisa de irracional. Às vezes ponho por exemplo a música muito alto e então os actores deixam de ter problemas em falar porque eu já não os oiço. Começam a comunicar. E passado uns dias tiro a música.

Cinema

Hoje em dia demora-se quatro anos a produzir um filme na Bélgica. E assim sendo, o argumento, quando chega a estreia, já apodreceu. Enquanto não houver possibilidade de produzir o filme num ano, eu continuarei a dizer que não ao cinema. Todos os bons filmes belgas são feitos através de fraudes. Pedem dinheiro para uma curta-metragem e acabam por juntar mais uns dinheiros e fazem uma longa. É assim.

Influências

O teatro profissional na Bélgica é muito recente. Antes da segunda guerra, a Bélgica era um país francês, falava-se francês, aprendia-se francês. Como tal, até 1960, não havia uma companhia de teatro na Flandres, só amadores. Só muito recentemente se começou a escrever para teatro em neerlandês.
As minhas referências não passam tanto pelos escritores mas muito mais pelas artes plásticas, por exemplo. Magritte, “Ceci n’est pas une pipe”, adoro-o, é o meu tipo de humor. E o cinema. Quando era novo ia quatro vezes por semana ao cinema. Nunca me interessei pelo teatro. É só depois, com 16 anos, que comecei a ver produções internacionais, Théâtre du Soleil, Grotowski, Living Theatre, Kantor, e foi então que me interessei pelo teatro. Todos estes nomes não pertencem ao teatro de texto, mas àquilo a que se chama “théâtre autonome”, que não se refere a literatura mas a si próprio, é tudo “action theatre”, teatro visual. É este o teatro que me interessa, descobrir qual o lugar do texto neste tipo de teatro. Foi este o meu ponto de partida. As minhas fontes, as minhas histórias e imagens, estão no cinema de Fassbinder, Pasolini ou Buñuel. Uma vez disse que queria casar Pina Bausch com Dario Fo, o homem que conta coisas e ao mesmo tempo dança.

O mundo

Quando comecei a escrever escrevia sobre a segunda guerra mundial, a primeira, um homem que regressava de um campo de concentração, era muito exótico, grandes temas. Depois comecei a simplificar e a aproximar-me cada vez mais daquilo de que sei mais, a guerra nas famílias. E quanto mais perto estava dos temas que me interessavam, melhores ficavam os textos. Mas sempre que escrevo uma peça tento pôr tudo lá dentro, quero um universo, África e o Pólo Norte, deserto e chuva, todos os temas, risos e choros, estupidez e muita coisa que não percebo, deixo lá ficar, terra incognita, buracos, muito buracos, porque é isso a vida. Gosto de trabalhar com ritmos, com cor, como boa música de rock’n roll.

Linguagem

Escrevo em flamengo, sujo. Não é um dialecto, é uma linguagem que inventei baseada no dialecto do meu bairro, mas também utilizo palavras de outros dialectos e quando não encontro uma palavra, invento-a. Gosto que a linguagem seja como quatro cavalos a puxar cada um numa direcção diferente, muito selvagens. Não é uma linguagem controlada mas sim como um macaco dentro de uma gaiola, aos pulos, como quando entro num café e as pessoas falam e falam e perguntam-se o que disseram e pouco depois já se esqueceram e ao fundo do café há uma discussão muito mais importante mas nós não ouvimos e no canto formigas a prepararem um ninho e isso também pertence à realidade, é disso que gosto, da simultaneidade, o sentido do caos. Tenho um pouco o mesmo problema que Bartók. Ele utilizava melodias populares e as pessoas diziam que era música popular. Eu também faço uso da linguagem popular e tento fazer qualquer coisa com ela, qualquer coisa de novo, não de bonito, de sincero. Não sou um realista mas quero ser um “verista”.

Brugse Poort

Venho de um bairro operário, pobre, pessoas que trabalhavam numa fábrica de têxteis, um bairro pouco saudável, onde moram pessoas que não vivem mas sobrevivem. Que votam em partidos de extrema-direita, quando nos anos 60 votavam em partidos socialistas e comunistas. Porque o governo não se interessa por estas pessoas. Meteram-nos em bairros sociais que são quase reservas de índios, gaiolas onde eles estão juntos, campos de concentração. E são estúpidos demais para ganhar dinheiro e sair dali, não estudam. Trabalham e quando deixam de trabalhar deixam de interessar. São pessoas muito vulneráveis, têm muitas cicatrizes e não têm vontade própria, não têm escolha. Não querem viver lá. Criam tácticas de sobrevivência ao caos. São de facto estúpidos, idiotas, apetece esmurrar-lhes a cara, mas o facto é que eles são eu. Eu sou tão idiota quanto eles. Eles são o meu sangue, os meus traumas, a minha base, a minha fonte de inspiração. Ao mesmo tempo é uma escolha querer falar sobre este bairro. As personagens estão todas ligadas, são uma família, conheceram-se na rua.

Não dizer (mostrar) tudo

Eu quero fazer teatro hic et nunc. Com temas de hoje. Quero fazer peças sobre o meu público. Quero que o tema no palco seja o mesmo que o público na plateia. O que é impossível. A ideia inicial do Nieuwpoorttheater era precisamente fazer teatro que esteja perto das pessoas. O que não quer dizer que seja teatro popular, nada disso, queremos comunicar ao máximo, ser abertos. Porque 90% do teatro faz-me adormecer, aborrece-me passado um quarto de hora. Porque é sempre pessoas a falar e a falar e a falar e não deixam nada para mim, fazem tudo no palco. E lá estou eu, que posso eu dizer, já tudo foi dito, não há fantasia, mostraram tudo. Para mim o teatro tem de ser aberto como boa poesia, tem de me provocar. Gosto quando as peças não acontecem no palco mas nas cabeças do público. Não há teatro/drama no palco, o drama/teatro passa-se entre o palco e o público para que cada pessoa saia da sala com a sua peça, com a sua emoção. Por isso o texto muitas vezes apenas sugere. É uma forma de provocar a imaginação de quem vê. Se falamos de uma árvore, acho mais interessante que cada um imagine a sua árvore do que eu mostrar a árvore. Uma árvore verdadeira é fraca. A imaginação, quando funciona, é mais forte, mais pessoal.

Minimizar

Pego como base vida e realidade e transformo-a. Mas como lido eu com naturalismo e realismo? É esse o meu paradoxo. Durante muito tempo andei às voltas com ele. E não encontrava uma solução. Porque querendo ser o mais realista possível, não realista, mas agarrar ao máximo a vida e ao mesmo tempo transportar esta vida para o teatro sem cair na armadilha do naturalismo, realismo, surrealismo e psicologismo. Como é que se faz isso? Temos o Kroetz, por exemplo. Kantor ajudou-me. Escreveu o manifesto Teatro do Mortos. Antes andava à procura no teatro japonês. Eles tinham algumas soluções. Pegam em bocados realistas e transformam-nos numa forma mais “elevada”. Kantor diz que tens de trabalhar com material profundamente humano e depois fazer aquilo a que ele chamou torná-lo “fino”. Cortar o material para chegar ao mínimo. Em vez de aumentar, libertá-lo de tudo. Minimizar em vez de maximizar. Em lugar de ter uma cadeira que pode significar tudo, não, a cadeira está o mais perto possível do zero. É uma não-cadeira, tão básica quanto possível, e por isso pode ser mudada a qualquer altura, utilizada a qualquer altura. Temos de aniquilá-la. E então podemos trabalhar como um poeta com as palavras, como um malabarista, atirá-las ao ar e conseguir combinações surpreendentes. Mas não se estrutura as coisas. O que é mais importante, Hamlet ou a mesa? Depende. Tens de ser livre para o dizer. Tens de colocar as coisas numa zona livre e ser muito aberto. O que é perigoso. Ao princípio é assustador, porque tudo é importante. Não podes pensar nos resultados, tens de te deixar surpreender. E ver então as coisas que te interessam e fazer assemblages, com grande liberdade. O teu material tem de ser muito forte, tem de ser de aço, coisas mesmo profundas, não merdinhas.

O gajo que está lá atrás

Não trabalho com a tradição americana ou anglo-saxónica. A história não está no texto, está na emoção. É um sentimento. Quando ponho uma história em palco, não estou a pôr A História, mas uma possibilidade de história. Podia ser diferente. Aquela história está por milhares de outras que aconteceram, acontecem e acontecerão no futuro. É aquilo a que os chineses chamam de sincronismo. Tudo é um pouco por acaso, nada é definitivo. No fundo eu odeio o Hamlet, porque é uma espécie de Deus. Ele não é substituível. Interesso-me muito mais pelo gajo que está lá atrás a fazer de soldado. Ele é substituível. É o gajo que não está a falar. Em que pensará ele? É ele que me estimula a fantasia, não uma pessoa que me explica tudo sobre a vida.

Depoimento recolhido por JMVM e FF

{backbutton}