BAAL de Bertolt Brecht
Tradução Jorge Silva Melo, José Maria Vieira Mendes canções traduzidas por João Barrento Com Miguel Borges (Baal), José Airosa (Ekart), Joana Bárcia (Sofia Barger), Rita Durão, Isabel Muñoz Cardoso, Teresa Sobral, Carla Galvão, João Meireles, Miguel Telmo, Sérgio Gomes, Américo Silva, Paulo Moura Lopes, António Simão, João Saboga, Vítor Correia, Pedro Carraca, Gustavo Sumpta, Hugo Samora, Vanessa Dinger, João Pedreiro, Sérgio Grilo e Tiago Damião Cenografia e figurinos Rita Lopes Alves e José Manuel Reis Máscaras João Prazeres Luz Pedro Domingos Apoio Musical Rui Rebelo, Pedro Leal Encenação Jorge Silva Melo com a colaboração de Andreia Bento e João Meireles
Uma co-produção Artistas Unidos / Teatro Viriato / Coimbra, Capital Nacional da Cultura 2003 / S. Luiz Teatro Municipal / Câmara Municipal de Évora
Estreia Teatro Viriato, Viseu, 7 e 8 de Março de Março 2003
Coimbra, Teatro Académico Gil Vicente, 11 e 12 de Março de 2003
Lisboa, S. Luiz Teatro Municipal, 19 a 30 de Março de 2003
Vila Nova de Famalicão, Casa das Artes, 11 e 12 de Abril de 2003
Évora, Teatro Garcia de Resende, 29 e 30 de Abril de 2003
O texto está publicado no volume TEATRO I de Bertolt Brecht (Ed. Cotovia).
A primeira peça longa de Bertolt Brecht é a história da vida de um poeta e cantor bêbedo, rude e mulherengo. Com o seu amigo músico, Ekart, Baal deambula por toda parte bebendo e lutando. Engravidada por ele, Sophie segue-o e acaba por se afogar. Baal seduz ainda a amante de Ekart que acaba por assassinar. Perseguido pela polícia, morrerá sozinho numa floresta. Apesar de ser um retrato anti-heróico, não há dúvida de que muito da imagem romântica do poeta-fora-da-lei se aplica a este Baal cuja linguagem descende directamente de Rimbaud e Villon.
BAAL aparece como resposta a O SOLITÁRIO de Hans Johst, onde se relata a história do poeta alemão Grabbe dando-lhe um significado expressionista contra o qual Brecht se quis insurgir. Inspirando-se na vida do poeta francês, escritor medieval de baladas, François Villon, Brecht pretende em Baal mostrar a natureza elementar do indivíduo que se alimenta do prazer e não pensa sequer em pagar as despesas da vida burguesa. Mas ao longo da escrita, Brecht encontra também Verlaine, Rimbaud e Büchner. Com Baal, Brecht revolta-se contra o pathos expressionista, contra os artistas endeusados, contra o tradicional conflito, por ele repudiado, entre a vida e a arte. Brecht procurava o escândalo e encontrou-o. Pouco depois da estreia, o presidente da câmara de Leipzig proibiu a continuação da carreira da peça.
Em Portugal foi estreada no Teatro da Trindade numa versão de José Fanha e João Lourenço e encenação de João Lourenço com Mário Viegas, João Perry, Virgílio Castelo e Irene Cruz nos protagonistas.
BRECHT SOBRE BAAL
10 de Fevereiro de 1922
Espero ter evitado em BAAL e NA SELVA um grande erro de outras artes: o seu esforço para arrastar o público consigo. Criei instintivamente distâncias e preocupei-me em fazer com que os meus efeitos (poéticos e filosóficos) fossem controlados. O magnífico isolamento do espectador não é afectado, não se trata de sua res, quae agitur, ele não sente que tenha sido convidado a partilhar sentimentos, a encarnar no herói e a comportar-se de maneira indestrutível e importante ao observar-se a si próprio simultaneamente em dois exemplares. Há um interesse de um tipo mais elevado: o da comparação, o do outro, imenso, surpreendente.
Janeiro 1926
O modelo para Baal
A biografia dramática chamada BAAL trata da vida de um homem que viveu na realidade. Era um tal Josef K., do qual pessoas me diziam conseguirem lembrar-se claramente, tanto da sua pessoa como da sensação que provocava. K. era filho ilegítimo de uma lavadeira. Cedo ganhou má reputação. Sem ter obtido qualquer formação, parece ter sido capaz de impressionar pessoas de facto bastante cultas com conversas extraordinárias pela informação que continham. O meu amigo dizia-me que com a sua maneira incomparável de se movimentar (ao pegar num cigarro, ao sentar-se numa cadeira, etc.), K. provocou uma tal impressão numa quantidade de gente, que estes, sobretudo jovens, passaram a imitá-lo. No entanto, devido ao seu estilo de vida irreflectido, foi-se afundando cada vez mais, sobretudo porque nunca tomou nenhuma iniciativa e porque de cada vez que alguém lhe dava uma oportunidade a explorava de maneira vergonhosa. Vários episódios obscuros pesam-lhe na conta, por exemplo o suicídio de uma rapariga. Tinha formação de mecânico, mas que se saiba nunca trabalhou. Quando as coisas em A. começaram a ficar quentes de mais, fugiu para bastante longe com um médico falhado. Voltou porém em 1911 a A. Numa tasca em Lauterlech, no meio de uma rixa que meteu facas, este seu amigo morreu, quase de certeza morto pelo próprio K. Que de qualquer das formas desapareceu muito rapidamente de A. e parece que morreu miseravelmente na Floresta Negra. [“Das Urbild Baals” em Die Szene, Berlin, Janeiro, 1926]
Por volta de 1926
Sobre Baal
Procurava em vão, ao tornar visível a figura de Baal no palco, mostrar a oposição à burguesia “daquele” tempo. A burguesia estava já tão arruinada, sem salvação possível, que apenas criticava a forma que – enquanto forma – era indiferente, acessória, ou então tentava acabar com um tal “je ne sais pas quoi” da formulação. O verdadeiro opositor só posso esperar encontrar no proletariado. Sem ter sentido em mim esta oposição nunca teria sido capaz de criar um tipo como aquele.
1954
Olhando para as minhas primeiras peças
[…] A peça BAAL pode causar várias dificuldades àqueles que não aprenderam a pensar de forma dialéctica. Não conseguirão ver na peça muito mais do que uma glorificação de um puro egotismo. No entanto há um indivíduo que se opõe às exigências e os desencorajamentos de um mundo que conhece não uma produtividade utilitária mas exploradora. Não podemos dizer como reagiria Baal se os seus talentos fossem utilizados: ele não o deixou. A arte de viver de Baal partilha o destino de qualquer outra arte no capitalismo: é atacada. Ele é associal, mas numa sociedade associal.
Vinte anos depois de ter escrito BAAL estou ocupado com um material (uma ópera) que volta a pegar na ideia principal do BAAL. Há uma figura chinesa do tamanho de um dedo, de madeira e vendida no mercado aos milhares, que representa o deus gordo e pequeno da Felicidade confortavelmente deitado. Este deus, vindo de Leste, devia entrar nas cidades que foram destruídas após uma grande guerra a fim de convencer as pessoas a lutarem pela sua felicidade e bem-estar pessoais. Juntou seguidores de vários tipos e torna-se alvo de perseguição por parte das autoridades quando alguns deles começam a proclamar que os camponeses têm direito à terra, os trabalhadores a tomar conta das fábricas, os filhos dos trabalhadores e camponeses a tomar conta das escolas. É preso e condenado à morte. E então os carrascos praticam a sua arte no pequeno deus da felicidade. Mas o veneno que lhe fazem engolir só lhe sabe bem, a cabeça que lhe cortam volta de imediato a crescer, no patíbulo ele executa uma dança brincalhona e contagiante, etc, etc. É impossível matar por completo a necessidade de felicidade da humanidade.
Nesta edição, a primeira e última cena de Baal foram revistas. De resto deixo a peça conforme a primeira versão, dado que me faltam forças para a mudar. Admito (e aviso): à peça falta sabedoria. […]
[“Bei Durchsicht meiner ersten Stücke” Prefácio para Stücke 1.]
Baal não é um poeta especialmente moderno. Baal não é um prejudicado pela natureza. É do tempo em que esta peça for apresentada. É a dolorosa caveira de Sócrates e Verlaine. Aos actores que reclamam os extremos quando não conseguem encontrar soluções no intermédio: Baal não é uma natureza nem cómica nem trágica. Tem a seriedade de todos os animais. A peça pretende mostrar que é possível conseguir-se o seu quinhão, se se estiver disposto a pagar. A peça não é a história de um ou dos muitos episódios, mas de uma vida. Começou por se chamar: “Baal devora! Baal dança!! Baal glorifica-se!!!”
Bertolt Brecht, Sobre BAAL
Vários sobre BAAL de Bertolt Brecht
Enquanto estudo sobre um artista, BAAL lembra o retrato do poeta Lenz feito no conto de Büchner. Mas também são de Büchner, e em particular do WOYZECK, a estrutura episódica por “Stationen”, o estilo de escrita “cinematográfico” e as diferentes profundidades com que as personagens são caracterizadas. Onde os dramaturgos expressionistas evitam o lado duro e exigente da criatividade ao representarem a figura do “poeta” (como no DER EINSAME de Johst ou DER BETTLER de Sorge), Brecht agarra-se a esse lado de Büchner que tanto influenciou os naturalistas alemães – a sua falta de romantismo e a sua capacidade para olhar de frente a verdade de uma situação. Ao fazer Baal actuar num cabaret, Brecht também o coloca numa tradição muito diferente da escrita alemã, chegando, via Wedekind, a Grabbe e mais uma vez também a Büchner. É aqui, propõe ele, que a verdadeira vida da poesia alemã se encontra e não junto da “alta cultura” a que Johst pretende associar o seu Grabbe.
in Peter Thomson e Glendyr Sacks (ed.), The Cambridge Companion to Brecht
A poesia violenta dos primeiros trabalhos de Brecht emerge mesmo do mais pequeno dos seus relatos. O crime, a bebida, a violação, o assassínio, a violência da multidão, nada escapa. A lua paira sobre o palco enquanto personagens com nomes como Glubb e Gloomb, Schlink e Bulltrotter, Bolleboll e Gougou tropeçam num desespero sem objectivos. Os interiores são bares ou um hotel barato; lá fora um deserto, à noite; nas indicações cénicas o vento sopra continuamente. “Voici le temps des ASSASSINS”, Rimbaud predissera: “Oh! Tous les vices, colère, luxure/ Magnifique, la luxure/ Surtout mensonge et paresse.”
Uma exagerada inexistência de leis toma conta do teatro; uma reacção amargurada e anárquica contra os predicamentos da moralidade ortodoxa. O fora-da-lei, o duro desiludido é agora o herói; pode ser um criminoso, pode ser semi-humano, mas em peças como BAAL pode também ser romanticamente transformado num idealista invertido, que ataca cegamente a sociedade em que vive. Na Alemanha dos anos 20 a experiência vívida da guerra, da revolução e o colapso económico deram uma relevância aguda e temática a esta voga, de tal maneira que um número grande dos artistas e escritores mais vivos usavam termos de referência semelhantes àqueles de Brecht. (.) Nasceu toda uma escola de um submundo estilizado que correspondia, de uma maneira própria, às histórias de Westerns e gangsters e se inspirava em grande parte no que chegava do outro lado do oceano. Era uma escola ao mesmo tempo agressiva e frívola, como o movimento dadaísta berlinense para o qual Mehring e Grosz e os irmãos Herzfelde (estes dois que se vieram a associar a Brecht) pertenciam: e demonstrava uma preocupação anti-patriótica consciente com os costumes estrangeiros e até mesmo com as palavras.
John Willett, The theatre of Bertolt Brecht
Baal raramente é poeta, porque não ama a arte mas o prazer da vida. Goza em tascas e tabernas, aproveita-se de raparigas menores e de mulheres casadas. Dedica-se a mulheres e homens. Onde ele está o ciúme aparece, o desassossego. Tem tão pouca moral quanto a natureza. Pequeno e irreflectido em tudo o que é humano, Baal é grande e generoso na sua relação com a natureza com a qual se funde. Não é o homem que se apodera da natureza, a natureza vive dentro dele. Violentamente e terrivelmente, tal como viveu, morre Baal. Por ciúmes apunhala, embriagado, o seu amigo. Sozinho e arruinado acaba como um animal, ao ar livre, no meio da natureza da qual é parte indissociável. Tomado por um gigantesco egocentrismo, tenta tirar o prazer à morte. Aqui se cruza a figura de Baal com a ideia que Brecht faz de François Villon, de cujo final fala no poema surgido por essa altura, “De François Villon”, citando dois versos de François Villon: “Quando esticou as quatro patas e morreu / Percebeu tarde e dificilmente que até este esticar sabia bem.” Perguntamo-nos naturalmente por que escreveu o jovem Brecht, que cresceu numa casa familiar protegida, numa cidade sossegada, quase idílica, a sua primeira grande personagem, Baal, de tal maneira que os seus contemporâneos a consideraram ser um monstro monstruoso. Por que foi conduzida a sua fantasia de vinte e poucos anos para uma tal direcção, quando a vida desprendida da vagabundagem nada o atraía e o peregrino romântico lhe era distante? Também não se sentia atraído pela boémia de Munique. Pessoalmente, individualmente, nada havia que fizesse prever uma afinidade com um Verlaine, que tanto o fascinava. Além disso, o sentimento mundano de Baal não deverá ser apenas entendido enquanto reacção ao Expressionismo. Este Baal é muito mais a expressão de uma reacção contra uma atitude perante o mundo e a vida que é dominada pela obrigação. A concepção espiritual do mundo de Brecht nasceu num tempo em que o mais importante era satisfazer a obrigação. A obrigação para com a pátria reduzia a vida a uma existência composta por privação, dedicação, ordem e sacrifício. Esta postura foi repetida vezes sem conta, em tempos de guerra, ao jovem Brecht. A ela pertencia também a literatura, em particular os clássicos alemães enquanto objectos demonstrativos de como se dominam os instintos. Professores na escola e universidade valorizavam o conflito entre obrigação e tendência natural como sendo o grande e inesgotável tema da literatura alemã. A categoria da obrigação, enfatizada pela sociedade burguesa e mais tarde completamente tomada pela guerra, denunciava qualquer necessidade de felicidade, qualquer pretensão ao prazer na vida. Contra isto se colocou, a princípio escuro e inconsciente, o mundo sentimental de Baal. Contra a obediência irracional, o egoísmo irracional. Contra o emudecimento da natureza humana por respeito à obrigação, protestava Brecht com a pretensão ao prazer irreverente. Da imagem do homem inibido construiu a imagem do homem desinibido. O homem, empurrado para um extremo devido à renúncia, procura a solução na libertinagem.
Werner Mittenzwei, Das Leben des Bertolt Brecht
Balada do niilismo, BAAL é sobretudo a sua personagem: um novo deus pagão, rebelde, indiferente à existência ou à ausência de Deus, com receio das crianças, apenas achando que não se deve ser muito preguiçoso, senão não existe prazer, e que é preciso ser forte porque o gozo nos enfraquece, sempre livre sempre sem sentido, sempre embriagado de álcool ou de poesia, homossexual, irreverente, produto de uma sociedade que nega até ao fim, condenado por uma sociedade que ele mesmo condena, que refuta com sua liberdade, às vezes mesmo com ternura. BAAL é a poesia da podridão, fruto típico de uma época destruída. Mais tarde, Brecht escreve: “Reconheço e advirto; falta clarividência nesta peça”. Escreveu em transe, num vómito, a história deste sombrio animal do materialismo vulgar. Mas o que há nesta peça é acima de tudo poesia.
Fernando Peixoto, Brecht, Vida e Obra
BAAL são os poemas de Brecht transformados em hino de regresso à natureza, às suas algas e ervas, à existência animal. Se há eternidade, ela reside na absorção do presente. Baal deambula num mudo povoado de seres vivos, operários, burgueses, ladrões, marginais, amantes, num mundo cheio de paixões e de desejos primitivos – fome, sede, carne, sexo – onde o ser humano sabe, quase sem ter de reflectir, que também ele, amanhã, será um fragmento da terra, da árvore, da planta ou do animal, que irá apodrecer, decompor-se e voltará a nascer num novo ciclo da existência. Baal é o poeta da prodigalidade humana: gasta-se como gasta os outros, destrói-se e nunca se satisfaz. Canta em público, mas não para ganhar o que quer que seja. A obra de Brecht é um hino à dissolução. A certa altura Baal diz: “A decomposição rasteja até nós. Os vermes cantam”.
Frederic Ewen, Brecht, Sa Vie, Son Oeuvre, Son Temps
BAAL é seminal na obra de Brecht. É fulcral no que respeita às suas preocupações: há muitas indicações de que Baal representa um projecção dramática do próprio alter ego de Brecht. Mas, de certa forma, também Baal se distingue da restante produção do autor. Não só há uma maior preocupação poética na linguagem e na cena, como em nada se pode ver a sua preocupação crítica em relação à sociedade capitalista. Parece ser apenas a glorificação de um egoísmo nu. Mais tarde, Brecht irá defender o texto contra esta acusação.
Ronald Gray, Brecht, The Dramatist