CADA DIA A CADA UM A LIBERDADE E O REINO

Cada Dia a Cada Um a Liberdade e o Reino

Concepção do espectáculo e montagem dos textos Pedro Marques e Jorge Silva Melo
Com Américo Silva, Andreia Bento, António Évora, António Filipe, António Simão, Carla Bolito, Carla Galvão, Daniel Martinho, Gonçalo Waddington, Gustavo Sumpta, Hugo Samora, Isabel Muñoz Cardoso, Joana Bárcia, João Meireles, José Airosa, Jorge Silva Melo, José Raposo, Luís Esparteiro, Margarida Marinho, Maria João Abreu, Miguel Borges, Miguel Sobral, Nuno Melo, Paulo Moura Lopes, Pedro Carraca, Pedro Lima, Pedro Marques, Rogério Vieira, Sérgio Gomes, Sérgio Grilo, Sylvie Rocha, Teresa Sobral, Vanessa Dinger e Vitor Correia Cenografia Rita Lopes Alves e João Calvário Figurinos Rita Lopes Alves Luz Pedro Domingos Som André Pires Encenação Jorge Silva Melo Assistência de encenação João Meireles, Pedro Marques e Alda Moreira Produtor Manuel João Aguas Produção Artistas Unidos Produção executiva O Meu Joelho

Sala do Senado, Assembleia da República, 26 de Novembro de 2003.

cada_um_cPor ocasião das Comemorações do Centenário da Sala das Sessões e no âmbito das várias iniciativas culturais promovidas pela Assembleia da República, foram os Artistas Unidos convidados para fazer um espectáculo a partir dos discursos proferidos na Assembleia.No nosso espectáculo, não queremos reconstituir sessões. Não temos intenção de fazer uma reconstitução histórica. Nem cabeleiras postiças, nem bigodes.
Passarão palavras. De Passos Manuel a Almeida Garrett, de Ayres de Gouveia a Sá Carneiro, de Sophia a Borges Carneiro ou a Mendes Leite, de Rodrigues Carneiro a Leonel Tavares, de Miller Guerra a Sá da Bandeira.
Queremos mostrar como aquilo que é feito na Assembleia da República reverbera na vida dos cidadãos. A “luz crua do dia”, na bela formulação do Prof. Henrique de Barros que, no seu discurso de apresentação da Constituição em 1976, fala das “suas virtudes e os seus defeitos, os seus acertos e os seus erros, os seus êxitos e os seus insucessos”.
Procuraremos mostrar como as ideias dos homens de ontem, discutidas, apresentadas, expostas, tímidas, ousadas, se transformaram em debates, os debates em controvérsias, as controvérsias em decisões, e as decisões, finalmente, em vida. Em rua.
São usados fundamentalmente discursos das sessões sobre a Abolição da Pena de Morte (1867), a Abolição da Escravatura (1836/40), a Reforma do Ensino (1870), um discurso de Sá Carneiro de 1971 e o discurso de Henrique de Barros na Assembleia Constituinte em 1976.
Queremos fazer ecoar outra vez, em rápidas fotografias da memória, as ideias pensadas noutros tempos, mas que necessariamente vivem.
cada_um_dUm actor negro lerá excertos do debate sobre a abolição da escravatura; uma actriz ligada à educação passagens de Passos Manuel; um menino, excertos do primeiro programa curricular: decisões antigas, ingénuas umas, mas corajosas, prolongam o seu gesto nas pessoas de hoje.
Haverá muitos actores: homens e mulheres de todas as proveniências; gente que pede a palavra para erguer a voz e agradecer aos homens do passado ideias, debates, controvérsias, leis.
Estas pessoas não falam em nome de nenhum partido, nem de nenhuma ideia, nem querem gerar um debate, nem causar polémica, nem fazer nenhuma lei, querem que essas palavras ainda nos iluminem, fugaz ou duradouramente, lêem, dizem porque as ouvem.
“O nosso problema é não ouvirmos, um teatro em que não se ouve é um teatro morto”, diz o autor Spiro Scimone que temos trabalhado.
O centro da sessão será o histórico debate sobre a abolição da pena de morte, exemplar de clareza. E excertos serão representados das sessões de 1821, 1835, 1852, 1916 e 1867. De certeza que as palavras que vamos ouvir sobre a Reforma do Ensino nos poderão ainda ensinar a ver as nossas escolas de hoje. É isso que procuramos. Ver o gesto inicial, a nascente dessas palavras, já esquecidas ou dadas como adquiridas.
Todos os textos foram extraídos das actas dos debates excepto um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen que, pelo seu ajuste e pela importância simbólica que Sophia teve na Constituinte, nos parece poder dar o título à sessão (“Cada dia a cada um a liberdade e o reino”):

A FORMA JUSTA
Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos – se ninguém atraiçoasse – proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
– Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo
Sophia de Mello Breyner Andresen, O DIA CLARO

cada_um_e“Inexperientes como todos éramos na prática da democracia representativa, competentes no campo jurídico apenas alguns de nós, ansiosos todos por descobrir soluções progressistas adaptáveis à ideologia de cada qual, ingénuos talvez, qual de nós ousará sustentar que não cometemos erros e que fomos sempre capazes de encontrar as formulações mais realistas, mais susceptíveis de trazer ao domínio da realidade viva os ideais diversos que nos motivavam? Qual de nós ousará?”
Henrique de Barros na Assembleia Constituinte, 1976