CÂMARA ARDENTE de Harold Pinter

Câmara Ardente

CÂMARA ARDENTE de Harold Pinter
Tradução e Dramaturgia
Graça P. Corrêa Encenação Graça P. Corrêa  Interpretação António Filipe, António Rama, Carlos Aurélio, Elsa Galvão, Gonçalo Portela e Pedro Matos Cenografia Luís Balula Figurinos Maria Gonzaga Sonoplastia Carlos Arroja
uma produção Graça P. Corrêa- Art.com Unidos acolhida no Espaço A Capital a 4 de Outubro de 2001)

Uma das peças mais brilhantes de Pinter, CÂMARA ARDENTE (The HOTHOUSE) é um texto inédito em Portugal e geralmente desconhecido, dado que o próprio autor só o revelou publicamente em 1980, vinte e dois anos depois de o escrever. A acção desta comédia negra desenrola-se ao longo de poucas horas no espaço de uma clínica de internamento – numa imagem contundente e clara da asfixia física, afectiva e existencial contemporânea.

“Vivemos à beira do desastre, de um género subtil. Sente-se no ar que respiramos. Não é visível mas enche-nos a sala de cada vez que a porta se abre. Há terror por toda a parte. Uma tensão interna e poderosa porque as suas causas não são completamente entendidas.”
(H.Pinter) ACERCA da peça THE HOTHOUSE (*)

“Câmara Ardente” (The Hothouse) nasceu como uma ideia de uma peça de 60 minutos para a rádio BBC, cuja sinopse Pinter submeteu em Novembro de 58: ” A peça desenrola-se num centro de investigação de psicologia. Um dos departamentos desta instituição dedica-se à realização de testes que servem para estudar as reacções do sistema nervoso perante diversos estímulos. A peça irá demonstrar a indiferença deste departamento (nas pessoas da médica e da sua assistente, também mulher), ao material humano sobre o qual baseiam as suas deduções. A peça servirá para demonstrar até onde podem conduzir os excessos da investigação científica, quando praticada por pessoas obcecadas e fanáticas”
A peça estava então estruturada da seguinte forma: Na Cena 1, a médica e a assistente entrevistavam uma cobaia. Na Cena 2, o homem era conduzido a um quarto insonorizado; prendiam-lhe umas braçadeiras aos pulsos e colocavam-lhe uns auscultadores na cabeça. Enquanto o homem é sujeito a choques elétricos e testes de autêntica tortura, as duas mulheres conversam casualmente sobre as roupas que irão vestir no Baile Anual da Instituição. Na Cena 3, viam-se as duas mulheres a conversar animadamente na cantina, enquanto a cobaia continuava no quarto insonorizado a responder a uma série de perguntas gravadas. Na cena 4, é introduzida uma nova voluntária, desta vez uma velhota que considera estas experiências científicas como uma fonte de descontração. É conduzida à sala onde se encontra a primeira cobaia; e é igualmente submetida a testes e interrogatórios. Na cena 5, a velhota sai toda deleitada da sala, depois do interrogatório refrescante. Entretanto o homem, completamente quebrado e incapaz de articular palavras, é conduzido à sala inicial para ser encaminhado para novos testes, enquanto as duas mulheres, já esquecidas da sua presença, saem para ir ao Baile Anual. Vê-se o homem, completamente abandonado e só, no meio do vazio e do silêncio.”

Algumas destas ideias foram mantidas na peça final. No entanto, Pinter abandonou definitivamente a ideia de trabalhar a peça para a rádio, e muito menos de ilustrar de forma primária uma tese pre-determinada sobre as instituições. Assim, na sua forma final, “The Hothouse” explora o mesmo tema de forma muito mais subtil e acutilante: a ideia de que uma instituição tem uma vida própria, estranha, sinistra, fora de controlo.
The Hothouse surge-nos assim como um conto arrepiante, uma peça profética acerca do secretismo e da insanidade burocrática de uma instituição estatal que aparentemente tem como desígnio “curar” os dissidentes sociais.
“É uma peça que tinha de ser escrita”, diz Pinter, explicando que a única razão porque não a revelou até 1980, deve-se à própria situação política que se vivia em Inglaterra nos anos 50.

“Foi escrita enquanto ficção, mas agora tornou-se realidade”, diz Pinter em 1980, “Na altura em que a escrevi, a peça poderia ter sido considerada uma fantasia. De facto, em 1958, a maior parte das pessoas não tinha conhecimento de tais coisas. Não é que eu considere esta peça como uma obra sinistra ou lúgubre. Não penso que seja. Acho que é uma mistura estranha de “risos com arrepios”.

Segundo Pinter, “a peça é essencialmente acerca do abuso da autoridade”. Tal como nas outras peças de Pinter, “The Hothouse” foi inspirada em experiências pessoais:
“Em 1954 eu dirigi-me ao Maudsley Hospital, em Londres, oferecendo-me como cobaia. Na altura eles estavam a pagar cerca de dez libras por uma cobaia, e eu estava desesperado por dinheiro. Tinha visto um anúncio e decidi ir lá. A princípio tudo me pareceu ter um ar muito clínico e oficial. Enfermeiras e médicos todos de branco. Primeiro mediram-me a tensão. Estava tudo nos valores normais. Depois levaram-me para um quarto com elétrodos. E disseram-me “Sente-se aqui por alguns instantes e descontraia-se”. Eu não fazia ideia do que iria acontecer. Subitamente ouvi um som agudo e terrível através dos auscultadores e quase que saltei até ao tecto. Senti o meu coração a fazer: BANG! O som continuou durante alguns segundos mais e depois foi desligado. O médico entrou a sorrir e disse-me: “Apanhou um susto, não foi?”. “Ah pois foi”, respondi eu. E em seguida disseram-me: “Muito obrigado”.
Não houve interrogatório, como na peça; mas esta experiência marcou-me profundamente. Fiquei todo a tremer. E tenho a certeza de que teria ficado extremamente vulnerável se me tivessem feito perguntas.Mais tarde perguntei-lhes do que é que se tratava e eles disseram-me que estavam a testar os níveis de reacção. Fiquei perplexo com esta resposta. Afinal de contas, a quem é que eles estavam a aplicar aquele tipo de tratamento de choque?
Seja como for, foi esta experiência que me levou a escrever “The Hothouse”. Tomei perfeita consciência de estar a ser utilizado para uma experiência da qual não entendi o propósito, e durante a qual me senti completamente impotente.

The Hothouse acaba por ser uma farsa negra sobre a loucura, a paranóia, a luxúria, a cobiça e a suspeita que perpassam num hospício estatal, em que os doentes são codificados e abusados, e o corpo administrativo é desumanizante, acabando por ser chacinado.
Pinter está a dizer que o Estado tem interesse em produzir cidadãos modelo, contentes e conformados com aquilo que lhes foi programado. A “Cãmara Ardente” parece ser o tipo de sítio em que os dissidentes são “integrados” e “adaptados”

Pinter foca a sua acção sobre o pessoal administrativo. Isolados e enclausurados, tornaram-se vítimas da máquina burocrática que supostamente operam.
Os doentes são identificados por números, em vez de nomes; e os membros da administração e pessoal têm nomes que parecem diminutivos, sugerindo que também devem ter sacrificado parte da sua identidade à instituição.
À frente da administração encontra-se Roote, um ex-coronel irrascível cuja autoridade vai-se esboroando diante dos nossos olhos.
Logo a seguir encontramos Gibbs, o tenente, de nome que sugere cara facetada e comprida, monocórdico, trocista, e traidor.
Miss Cutts, a amante dos dois, que oscila entre uma masculinidade cinzenta e uma feminilidade manhosa. Lush, declaradamente um cínico.
Lamb, o recruta – que se vê vitimado por um tratamento semelhante ao que Pinter sofreu, o cordeiro sacrificado por um lapso na segurança desta instituição de pesadelo. Tubb, o porteiro, que está mais próximo da fornalha dos doentes, onde coseu o bolo da última ceia de Roote.
E finalmente Lobb, o funcionário da Secretaria, o homem do Ministério, exímio em frases oficiais monosilábicas e misteriosas. O enredo é despoletado pela determinação de Roote em descobrir quem foi responsável pela morte do doente 6457 e pela fertilização da doente 6459, a qual acabou de dar à luz, neste dia de Natal. Torna-se bastante evidente que é Roote o pai; e no final, é Gibbs quem, após a chacina, o acusa de ter sido igualmente o assassino. Mas esta peça não é de forma alguma um thriller, em que o investigador vai revelando ironicamente a sua própria culpa. Trata-se sim, de uma farsa política e moral que denuncia a corrupção inerente às instituições burocráticas.
Instituições essas que se afastaram de qualquer lei natural. Pois a morte é encarada não enquanto um facto da natureza mas sim enquanto um lapso administrativo. Torna-se evidente que a função “curativa” da instituição é a de “ajustar” os dissidentes e revoltados à norma da sociedade. Nas palavras de Roote: “Porque, afinal de contas, eles não são criminosos. São apenas pessoas que precisam de ajuda, uma ajuda que nós tentamos dar, de uma forma ou de outra, com a melhor das discrições, com o melhor do nosso juízo, para que eles recuperem a sua confiança, confiança em si próprios, confiança nos outros, confiança no… no mundo.” É precisamente este o tipo de linguagem oficial e muito humanitária que é utilizada pelas sociedades autoritárias para justificar o uso de instituições psiquiátricas para reformar os dissidentes.
Neste mundo de ordem inflexível, o nascimento também parece ser uma gafe ou um engano. Depois de submeter Gibbs a um interrogatório cerrado sobre a doente que deu à luz, Roote termina à maneira da comédia de music-hall: “não, acho que não a conheço.” Em seguida, depois de justificar o direito à cópula por parte do pessoal, refere a necessidade de relatórios. Quando Gibbs lhe pergunta o que fazer do bebé, Roote responde prontamente: “Veja-se livre dele.”. Uma frase que invariavelmente despoleta um frisson por parte da audiência. Pois a peça mostra como qualquer organização trata o nascimento e a morte com um desprezo casual.
A peça chamava-se originalmente “O Túmulo é um Lugar Agradável e Privado”. “Câmara Ardente” lida com temas que acabarão por recorrer na escrita de Pinter trinta anos mais tarde, durante a década de 80, em que o autor começou a envolver-se seriamente em acções contra a política oficial, nacional e internacional. Aliás, é também nessa altura que o autor resolve encenar esta peça, até aí desconhecida do público. A diferença entre esta peça da juventude e as peças políticas da maturidade refere-se mais à estrutura e tom do que ao conteúdo. Pois em “The Hothouse” Pinter retrata uma instituição de pesadelo, mas parece deliciar-se no absurdo da própria malvadez oficial. Esta comicidade absurda atinge um dos seus picos febris na cena do climax do 1º Acto, quando Lamb é torturado num quarto insonorizado, acreditando muito sinceramente e até ao fim que vai ser promovido no cargo. Mesmo quando lhe prendem elétrodos aos pulsos e os auscultadores à cabeça, Lamb parece não perceber. Depois de levar com um choque elétrico que lhe atravessa o corpo, é interrogado de uma forma brutalmente cómica e indicadora da sua impotência total.
Esta cena de interrogatório é ao mesmo tempo cómica e aterrorizadora, funcionando como pivot estrutural de toda a peça. Pois prova de forma evidente que a aceitação da norma é o próprio nome do jogo. E também demonstra que ambas as partes do processo, o interrogador e a vítima, estão contaminadas. Lamb implora por mais perguntas, como se estivesse viciado na droga da revelação de si-mesmo; enquanto Miss Cutts e Gibbs parecem ter ficado sexualmente excitados na cabine de controlo.
No que diz respeito a Miss Cutts, Pinter mostra explicitamente como ela ficou pessoalmente contaminada pela febre do orgasmo da tortura, na cena em que ela revela a Gibbs a sua obsessão pela sala 1-A: ” o teu sentido de tempo é perfeito, sabes exactamente quando parar, aquelas perguntas, e tens de começar a fazer-me perguntas, outras perguntas, e eu tenho de começar a fazer-te perguntas, é tempo de perguntas, tempo de perguntas, para sempre, eternamente, eternamente e para sempre.”
A última imagem da peça volta a recorrer à cena da interrogação. Depois da fuga sanguinária dos doentes, à maneira de uma tragédia Jacobina sob a ressonância das fechaduras, das correntes que se arrastam, das portas que rangem – e depois do diálogo entre Gibbs e o Secretário de Estado Lobb (que utilizam a linguagem branda e soporífera das reuniões ministeriais, em que varrem a carnificina para debaixo do tapete e determinam que “tudo deve continuar”). Depois de tudo isto, Pinter volta a mostrar-nos a sala insonorizada e a imagem de um Lamb que olha em frente, num transe catatónico. Como uma figura esquecida, à semelhança de Firs no “Cerejal”; como um símbolo poderoso da crueldade negligente e arbitrária do poder instituído.
“The Hothouse” surge-nos assim como uma das melhores peças de Pinter; uma peça que lida de forma contundente com a corrupção do poder, com o absurdo da burocracia, com o secretismo do governo, com a disjunção entre a linguagem e a experiência física. A peça revela igualmente a agudeza da consciência política de Pinter, já em 1958. Pois foram precisos muitos mais anos para revelar ao mundo o uso que os Soviéticos fizeram dos hospitais psiquiátricos, enquanto cadeias para os dissidentes sociais; bem como o abuso Americano sobre os prisioneiros políticos na América Central; bem como os métodos de interrogatório político utilizados pelos Ingleses na prisão de Maze em Belfast. Trata-se acima de tudo de uma fábula sobre o que pode acontecer quando os direitos individuais ficam subordinados ao poder do estado. Se a peça tivesse sido produzida quando foi escrita, teria estabelecido Pinter não enquanto um mestre das pausas ou um autor de comédias da ameaça, mas sim como um dramaturgo activamente político.