CASA DESABITADA, uma instalação de Ana Vieira
Inauguração: Rua Ivens, nº 56, 3º Lisboa, de 7 de Maio até 6 de Junho de 2004
No Porto: Rua Nossa Srª Fátima nº 384 – de 11 de Março a 3 de Abril de 2005 (em colaboração com a Galeria Graça Brandão)
Apoios: Fundação Calouste Gulbenkian – Serviço de Belas Artes, Câmara Municipal de Lisboa, Museu do Chiado, Goethe Institut, Danças na Cidade, Restaurante Tavares Rico, Eira
11 de Março a 3 de Abril
Rua Nossa Srª Fátima nº 384, Porto
Horário: 15h00 às 20h00
Apoios: IA – Instituto das Artes – Ministério da Cultura; Fundação Calouste Gulbenkian – Serviço de Belas Artes.
CASA DESABITADA
Nas palavras da artista, esta exposição é “uma intervenção numa casa, entendida como objecto global e corpo emotivo de evocações, de sons, de portas entreabertas, de imagens,…” . Uma casa onde o vazio é pontuado por imagens, sons e objectos que ao evocarem a vivência quotidiana de uma casa transformam o espectador naquele que espreita, que escuta e que ao movimentar-se pelo espaço da instalação, resiste ao convite (ou à ordem mental?) que lhe indica que deve sair daquele lugar.
MEMORANDO AGORA PARA UMA CASA DESCONHECIDA
Ociosas, as sombras perseguem gestos e as formas.
Fiama Hasse Pais Brandão, Epístolas e Memorandos
Não, não são fantasmas, nem sombras, nem vestígios, ecos, nada disso, que é o que mais há e todos já registaram, são ângulos rectos que se cruzam, uma máquina de reflexões, um prisma de olhares cruzados e repetidos, da capo sempre, teia romanesca de imaginações que o passeio invade, cruza, não, não são saudades, olhares para o passado, nostalgia, o desabitado que marca a casa, o tempo pára e recomeça enquanto atravessamos o espaço posto à nossa disposição nesta “Casa Desabitada” de Ana Vieira, é um palco de olhares tecidos, recortados, olhares cruzados, ouvidos surpreendidos, incitamentos, aliciações, sugestões que o som guia, surpreende, conduz, Scylla e Caribdis puxando a si o libidinoso navegante, passeante, espectador, eu, navegante em perigo, suspenso se sozinho, pois navegamos em redondo por esta casa opaca e transparente (onde começa a casa? onde começou a sua nova habitação? o que ficou dela para que sempre recomece o passo de dança entrevisto?), pelas portas entreabertas, frinchas, buracos que desvelam, pelo ângulo certo, pela recusa, circular, da totalidade.
Se é a meia-encosta que Nietzsche pedia que nos colocássemos para encontrar o melhor ponto de vista sobre a matéria, é a meia-porta que Ana Vieira nos sustém a cada esquina deste círculo vicioso, em que o perigo espreita, a luz não vem do fundo, nada transparece através das ranhuras de Deus, como nas cinzentas casas de Dreyer, cada porta tem um romance por detrás, dança que recomeça e não pára, como dantes as janelas que James Stewart de fora e telescópio espiava. Haverá um sentido nisto, um policial de que não vemos o fim, a presença das projecções, reflexões, miragens, luzes, até o triste e incandescente néon nos olha, feroz, a nós que passeamos suspeitososos, indiciados.
Depois dessa estóica lápide contra morte que foram as suas capas com interior espelhado (os “Pronomes” que uma noite de Novembro de 2001, vi na Galeria Franco Steggink, em São Miguel, Açores), depois da cortina branca esvoaçando na brisa, monótona, suspensa e ecoando a espera, o adeus, a dilacerante ausência (“Antecâmara”, Galeria Giefarte, 2002), há neste passeio entre perigos e recatos, silêncios e sons, que Ana Vieira instalou em singular 3º andar da Baixa de Lisboa, um sarcasmo, uma ironia, um desapego, uma ferocidade, um sentido trágico dos gestos sempre recomeçados, dança, mãos, corpo que veste, perna que surge e desaparece, mão cortando legumes, facas para quê, para onde, que opacidade é esta, que história contamos, de que incitação nos fala, quem nos expulsa da propriedade, da vida interior, que casa particular, casa desconhecida é esta, que sonhos encastrados nestas paredes as atravessam, de que mordacidade falamos?
As casas de Ana Vieira, que tantas vezes nelas se inscreve, de fora, por fora, recolhendo-lhe em tecido as sombras azuis, sobrepondo, pintados, os interiores aos exteriores, ocultando, revelando, remetendo à passagem dos corpos, sombras vazias no tempo, não são já lugar de espera ou nostalgia, as casas estão feridas, há lanhos de desejo, de transfigurada conotação sexual, há na frieza do memorando um escalpelo analítico, anda perto daqui a lâmina afiada de Hitchcock, podíamos ouvir os pássaros atacar, casa encantada, desencantada, casa lembrada, imaginada, sonhada, sonho do olhar, nódoa, cicatriz.
É desta cicatriz das casas que a Ana Vieira sempre foi tratando, esconderijo ou reflexo, cicatriz interior, mesa que pode ser teatro. E este dispositivo geométrico que desta vez instala, tão aéreo, insuspeito (onde começou?), partindo a cada ângulo para outra refracção, reflexão, projecção ou desmultiplicação, é gume que recorta o nosso olhar, néon que nos arde na sala ao fundo, mas ao fundo de quê, de que passeio por onde nos metemos?
Que rasgão nas casas é este? Sangram?
As paredes estão com febre – e pode haver um riso, um desapego sobre o que fomos vivendo por aqui, em perigo, escapando à luz, sem sermos vistos, visitantes fantasmáticos de uma tarde que um sorriso – negro de negro negrume – faz reviver.
Jorge Silva Melo
Maio de 2004