CICATRIZES de Anthony Neilson

Cicatrizes

CICATRIZES (Stitching) de Anthony Neilson
Tradução
João Saboga Com Nuno Melo e Teresa Sobral Cenografia José Manuel Reis Figurinos Rita Lopes Alves Montagem José Manuel Reis e Luís Dias Luz Pedro Domingos Som André Pires Encenação Pedro Marques

Estreia Teatro Taborda, 4 de Dezembro de 2003

O texto está publicado na Revista nº 9 dos Artistas Unidos.

Um casal vai ter um filho. A mulher está grávida e eles discutem se deverão realmente assumir a relação e decidir tê-lo. A sua ligação é confusa, perversa, desequilibrada. Eles testam os seus limites para encontrarem a resposta. Assumem fantasias sexuais, preenchem questionários, rebentam com as convenções. Até onde irão? Descobrirão a resposta?

STU Agora temos de andar para a frente. Temos de ser uma coisa nova. Não podemos ser o que não somos. E não podemos ser o que não éramos.
ABBY Não podemos?
STU Não, não podemos.
Pausa.
ABBY Gostas da minha roupa nova?
A. Neilson, CICATRIZES

cicatrizes_aA escrita teatral é uma daquelas coisas que é tanto subvalorizada como sobrevalorizada.
Parece-me que não é preciso explicar isto. Mas nas raras ocasiões em que dou aulas, fico sempre surpreendido porque o dramaturgo é entendido como uma espécie de político sem partido. Neste momento, há alguns escritores muito bons aos quais se pode aplicar esta acusação, mas, para quem está a começar, isso é um fardo muito pesado. Quando eu perguntava aos estudantes, por exemplo, que ideias é que eles tinham, eles respondiam quase sempre com temas. Eles queriam escrever peças sobre o racismo, sobre os sem-abrigo, sobre a erosão da democracia. Eles queriam “dizer alguma coisa” e isto era visto como sendo um requisito fundamental para uma peça de teatro: ela devia “dizer alguma coisa”.
Claro que estes estudantes estavam frequentemente bloqueados e não eram produtivos. Tinham o seu tema, mas não faziam ideia de como proceder, porque não tinham vontade de aceitar que o dramaturgo é, nem mais nem menos, um contador de histórias – um descendente directo daquela pessoa que se sentava no largo da aldeia a contar histórias às crianças. Quando eram confrontados com isto, muitos dos estudantes eram extraordinariamente resistentes, ficavam desiludidos até, como se a narrativa fosse – em si própria – de alguma maneira, pouco aliciante e estivesse fora de moda. “Contem a história”, insistia eu, “e os temas seguirão o seu caminho”.
A história é o caminho pelo qual o subconsciente encontra expressão no mundo real. Ao preocuparmo-nos com as mecânicas da narrativa libertamos o ego e permitimos que algo de mais verdadeiro surja. E quando o texto está acabado, certamente que “dirá qualquer coisa”, porque o carácter é a acção: as escolhas que se fazem para as personagens irão reflectir a nossa personalidade, a nossa visão sobre o mundo, honestamente e sem clichés. Por poucas palavras, produziremos uma coisa verdadeiramente dinâmica: uma peça que fala tanto ao público como ao seu criador. Um diálogo de criação e resposta nos dois sentidos.
cicatrizes_bClaro que, especialmente no teatro, existem aqueles que procuram sem descanso uma alternativa à narrativa. Uma tal procura é louvável mas, pela minha experiência, está condenada ao fracasso. Em virtude do facto de que tudo começa e acaba, a negação da narrativa é a negação da vida. (Para uma compreensão mais completa desta questão, aconselhar-vos-ia o ensaio de David Mamet “Arquitectura Contracultural e Estrutura Dramática”, que acerta em cheio na mouche.) Se alguém encontrar um caminho melhor, serei o primeiro a rejubilar. Mas, até lá, recomendaria que todos os escritores se concentrassem no aperfeiçoamento das suas faculdades para contar histórias – que é, em si, trabalho para uma vida.
Voltemos atrás: o dramaturgo é descendente natural do contador de histórias das aldeias. Porquê o dramaturgo e não, por exemplo, o romancista? Pelo simples facto de que a natureza do teatro é efémera. Quando a produção de uma peça termina, ela ficará a viver só na memória do público. É essa a beleza absoluta do teatro e é por isso que só no teatro encontramos uma forma que fixa verdadeiramente a impressão que fazemos com as nossas frágeis e transitórias vidas.
E é por isso que, finalmente, me sinto de alguma maneira desconfortável com este primeiro volume de peças. Publicar peças parece-me contraditório, redutor. Sinto que – tal como as fotografias de férias e os vídeos de casamentos – tudo brota do nosso sentimento de impermanência, e, no fundo, da morte. Porque ao fazermos isso significa que temos de tecer uma pequena dor no meio de todas as nossas alegrias. E também significa que temos de nos aperceber de uma certa alegria no meio de toda a nossa dor. Não tenho a certeza qual delas é a maior.
cicatrizes_cEspero, pelo menos, que estejam a ler isto porque querem produzir uma destas peças. Elas não foram feitas para ficarem na página. Elas não foram exclusivamente criadas por mim, mas, cada uma delas, foi criada por uma equipa de amigos e colegas, e aquilo que têm neste volume é uma transcrição das nossas experiências. Ficaria muito feliz se pudessem torná-las também em memórias e experiências vossas.
Imploro-vos que não sejam reverentes. Mudem-nas como acharem melhor, estejam onde estiverem, seja em que tempo for. Tornem-nas melhores – Deus sabe que há sempre possibilidade de o fazer – ou melhor ainda, substituam as minhas falhas pelas vossas. Acima de tudo, façam-nas viver e respirar.
Gostava só de terminar com uma frase de uma (não muito boa) peça radiofónica. Mesmo assim, se me permitem a indulgência, acho que resume o espírito com o qual foram escritas estas peças: “E que somos nós senão curtas e tristes histórias escritas pelo mundo, e ele próprio uma história escrita sabe-se lá por quem?”
Anthony Neilson, Prefácio a PLAYS ONE, Methuen