Nunca aconselharia os meus filhos a serem autores de teatro na Escócia… ou em qualquer outro lugar. Mas às vezes são as coisas que nos escolhem. Comecei por escrever contos muito maus. Preocupava-me sobretudo em trabalhar o diálogo. Interessava-me o que o diálogo era capaz de fazer, o que as pessoas diziam e não diziam, como uma pessoa enganava a outra. Aos poucos, a prosa que se encontrava entre o que as pessoas diziam foi-se derretendo e fiquei apenas com o diálogo. Passei a ser um escritor de teatro.
É uma escolha estranha. Poucos são os casos de êxito na Escócia, não há teatros suficientes, nem interesse suficiente. Quando comecei, há seis anos, não se conseguia sequer produzir uma peça escocesa na Escócia. Os directores dos teatros estavam convencidos de que não havia público para ver peças escocesas e por isso assistíamos a produções de peças latino-americanas, australianas, etc. Hoje em dia, a situação mudou. Agora só vemos peças escocesas na Escócia e criou-se até uma resistência no público a peças que não sejam escocesas. E a minha situação pessoal também mudou. Há seis anos, Philip Howard, o encenador que dirigiu Facas nas Galinhas disse-me que não podia colocar a peça no Traverse Theatre, uma sala com capacidade para 300 pessoas, e hoje vejo a minha peça a ser encenada em vários países. Encontro-me agora do outro lado, e quando vou, por exemplo, à Alemanha, respondem-me os directores dos teatros alemães aquilo que os escoceses me respondiam quando comecei na Escócia: “Não há interesse no público para vir ver peças alemãs. Por isso produzimos peças suas.” Hoje sou eu o colonizador.
Quando comecei, acreditava que, para se ser autor de teatro, era preciso estar-se muito zangado. Pus-me então a ler livros e encontrei uma coisa sobre a qual me podia zangar. Na altura foi o problema da propriedade de terras na Escócia. Acontece que a maior parte dos terrenos são propriedade de meia dúzia de pessoas e que as pessoas que de facto vivem no campo não detêm esses terrenos. Estava zangado.
Demorei dois anos a escrever a peça. Dois anos é muito tempo para se estar zangado, é muito cansativo. E estava tão ocupado a pensar que estava a falar para o público e que queria que eles estivessem sentados a ouvir aquilo em que eu acreditava, que o resultado não foi nada bom. Passei muito tempo a pesquisar e isso matou a peça. A peça estava criativamente morta, não tinha qualquer imaginação. Foi a minha primeira peça, era má. Como antídoto para este desastre, pensei então escrever uma peça que viesse inteiramente da minha imaginação. Foi assim que começou a aparecer Facas nas Galinhas. A história inicial parte do que passei a saber sobre os moleiros. Os moleiros na Escócia eram muitas vezes postos de parte pela comunidade porque, como se diz no texto, existia uma lei que concedia ao moleiro uma percentagem da farinha que lhe era mandado moer. Os camponeses suavam o trabalho para conseguir o milho e o moleiro assobiava enquanto a mó trabalhava. E ainda por cima tinha direito a uma percentagem do suor do camponês. Inventei então a história de uma rapariga que, de cada vez que vai ao moinho, mais se apaixona pelo moleiro. Esta era aliás uma história que nasceu na minha “peça zangada” em parte contada por uma personagem a outra. A história era boa e eu achei que não a devia desperdiçar.
Escrevi então Facas nas Galinhas antes de mais como uma peça radiofónica em que apenas esta história era contada. Quando parti para a peça, comecei a imaginar como seria viver num mundo onde só se tivesse certas palavras para certas coisas. Céu era céu e não era mais nada. Se o céu está escuro, então diz-se chuva. Não há advérbios, palavras que descrevam. Inventei uma língua, as personagens falam como se tivessem acabado de aprender a falar. Foi aqui que apareceu o outro elemento de Facas nas Galinhas. Passou a ser uma história tanto sobre o crime e o amor como uma história sobre a linguagem. A peça ganhou uma dimensão metafísica que antes não tinha e passei a ser eu a decidir o que acontecia naquele mundo. Fui encontrando as personagens à medida que elas iam falando. Elas são aquele momento, nascem da linguagem.
Para os actores escoceses a peça causa grandes dificuldades. Eles precisam de passado para justificar a acção das personagens. O seu trabalho baseia-se muito na psicologia das personagens, é muito sentimental, estão sempre à procura de razões, e essa é para mim uma forma muito triste de representar. Pinter, por exemplo, não é representado na Escócia. Para a minha peça, os actores inventaram o passado das personagens. Mas as palavras que as personagens dizem não são o resultado da acção. São a própria acção.
A escrita desta peça permitiu-me fazer duas grandes descobertas que marcam hoje a minha escrita.
A primeira está relacionada com a linguagem. Escolhi não utilizar a linguagem realista, porque as personagens têm de ser mais do que são, têm de ir além de si próprias, têm de ser metafóricas. Não sei se ainda acredito nisto, mas na altura convenci-me de que a história não pode ser apenas uma história mas que tem de ter qualquer coisa para além dela.
A segunda descoberta foi a estrutura. Aprendi a estruturar e isso é uma das coisas mais importantes na escrita. Tornei-me um escritor obcecado pela estrutura. Tenho uma relação muito rígida com o processo de escrita. Tudo tem de ser estruturado e por isso trabalho meses e meses na construção do enredo, desenho todas as cenas como se desenha um mapa, sei quem vai entrar e sair, sei em grandes traços o que vão dizer as personagens, e só começo a escrever depois de ter definido minuciosamente estas unidades.
Nunca tive facilidade em pôr personagens a falar uma com a outra. Porque não o consigo fazer, tenho de as colocar numa situação tal que não lhes reste outra hipótese que não falar. E, falando, não estão apenas a falar, estão a dizer qualquer coisa, estão a perder ou a ganhar. É como Pinter ou Mamet. Pinter diz que num diálogo dramático as personagens estão ou a tentar superiorizar-se ou a cair em estado de inferioridade. Foi isto que aprendi em Facas nas Galinhas.
E é contra esta segunda lição e descoberta que permanentemente luto. Procuro uma maneira mais livre de escrever teatro, estou farto de ficar sentado tanto tempo a desenhar mapas e a beber chá. É aborrecido. Facas nas Galinhas é uma peça muito aberta apesar desta rigidez de trabalho, mas tenho consciência de que a minha escrita tem vindo a ficar tão fechada que já não encontro espaço. É isso que agora procuro. Tentei fazê-lo na peça que estou a escrever neste momento forçando um acontecimento que me destabilizasse qualquer mapa: uma das personagens transformar-se-ia em animal a meio da peça. Entretanto desisti da ideia e, imaginem, voltei aos mapas.
Por isso, Facas nas Galinhas tornou-se, até certo ponto, uma maldição. Mas não apenas por me ter proporcionado esta descoberta doentia, como também por me marcar, devido ao seu êxito, como o escritor de Facas nas Galinhas. Como se estivesse permanentemente de luto por este texto.
Entretanto já se lhe seguiu Kill the Old Torture Their Young. Escrever esta peça representou um combate maior que a anterior. Não queria um Facas nas Galinhas, parte II. E queria escrever uma peça sobre a Escócia. Porque tenho ainda aquele sentimento, provavelmente um sentimento que nunca me deixará, de que não sou um escritor político e de que o deveria ser. Sendo o teatro um local onde as pessoas se deslocam a uma sala para vir assistir ao que eu tenho para dizer, cumpre-me apontar o dedo. Kill the Old… tinha como objectivo ser um panegírico daquilo que a Escócia pensa ser e aquilo que de facto é. Nós os escoceses temos uma imagem muito suave de nós próprios, achamo-nos muito tolerantes e justos quando na realidade expulsamos refugiados. Temos uma crença desequilibrada em nós próprios. Queria olhar para isso numa peça, mas não tenho a certeza de que esta peça o faça.
A história por trás desta peça é o regresso de um homem à Escócia depois de ter estado a viver durante dez anos em Londres. A Escócia tem uma relação difícil com Londres. Odiamos Londres. Era Londres que validava culturalmente o nosso trabalho e esta dependência faz-nos zangar. Foi este o cerne da história. Depois tive de, tal como para Facas nas Galinhas, esperar por mais coisas. Sobretudo pelo abstracto.
Concordo que é impossível representar ou encenar o abstracto, mas preciso dele para que a peça aconteça. A história não chega. A ideia abstracta de Kill the old… acaba por ser a quantidade de coisas que utilizamos para dizermos a nós próprios que vivemos. O que conservamos connosco para termos a certeza de que vivemos. Quando olhamos para trás, para o que é que olhamos? Família, religião, amigos, trabalho? Porque fazemos as coisas? Ainda o sabemos? Se me perguntarem, não sei de onde vieram estas ideias. Não sei de onde vêm as ideias. A última peça que escrevi [Presence que estreia em finais de Abril no Royal Court Theatre em Londres] começou pela vontade de escrever sobre o que é estar numa banda durante dez anos e essa banda tornar-se uma família. Queria escrever sobre os Beatles. Porque raio, quando a) nenhum deles é escocês e b) não é uma peça política? Não sei, mas espero que o que escrevi venha a ficar com as pessoas. Não quero contar-lhes mais do que o sentido literal das coisas. Crio um mundo e tenho esperança de que as pessoas entrem dentro desse mundo, que sejam atingidas pela peça e depois voltem para casa. Quero que se percam na minha história e a oiçam com o lado irracional. Por isso as minhas peças são curtas. Detesto intervalos. Quebram o ritmo, dão tempo para pensar e os teatros na Escócia cobram demasiado dinheiro pelas bebidas.
Mas voltando aos Beatles. Investiguei a ideia inicial e descobri que tinham estado em Hamburgo nos primeiros anos da sua existência. Decidi colocar a peça em Hamburgo. Quanto mais lia sobre Hamburgo, descobri que o primeiro clube onde tocaram pertencia a um nazi. Outra ideia surgiu – os Beatles encontram os nazis. Tudo começou com uma intuição. Leio sobre a intuição e a ideia, com tempo, vai ganhando forma. Será isto.
Para esta peça tinha várias hipóteses para uma primeira cena. Passava-se num beco, num clube, num quarto…? Tive de experimentar todas elas para saber qual era a melhor. Uma teoria que retiro de uma frase de Brian Friel. Diz ele que cada história tem sete faces. Para mim, cada cena tem sete faces. E há apenas uma maneira dramaticamente pura de a escrever. É preciso descobri-la. Tenho então de torcer as coisas até já não poder torcer mais. Tenho de experimentar as várias faces. Agora que andei às voltas com o Woyzeck de Büchner que adaptei para um teatro de Londres, aprendi precisamente a avaliar ainda mais a economia de escrita. Escrever apenas o necessário e avaliar o peso de cada frase. Escreve-se a cena de tal maneira que, quando o espectador a vir, acredite que não havia outra maneira de escrever e contar aquela cena.
É por isso que levo tanto tempo a escrever uma peça. Há um segredo no coração de cada cena e é preciso encontrá-lo.
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