Davide Enia – O SABOR NA BOCA

Davide Enia nasceu em Palermo em 1974. É Licenciado em Literatura Contemporânea. Frequenta os seminários de Danio Manfredini, Rena Mirecka, Tapa Sudana e Laura Curino. Em 1998 escreve Studio per 2 Petali di Rosa, que dirige e interpreta. Trata-se de um díptico composto por Orfeu e Euridice e Cola Pesce, trabalhos que viria a desenvolver em separado. Em Novembro de 1999 interpreta Il Calciatore. Studio Sulla Giovinezza in Endecasillabi, uma obra de 25 minutos com palavras, canto e dança. Em 2000, dirigiu um seminário com adolescentes marginalizados na Scuola Interculturale della Cascina Popolare “La Ghiaia” (Berzano S. Pietro, To), criando com eles La Cantata del Tempo Nel Labirinto. Em 2001 apresenta-se como autor, intérprete e encenador de Malangelità. Italia-Brasile 3 a 2 estreou em Maio de 2002 no Estadio S.Siro de Milano, integrado no festival Teatri Dello Sport. Maggio ‘43, estreou em Faenza em Janeiro de 2004 e venceu um prémio Ubu. Para a televisão gravou várias histórias de sua autoria para o programa A História somos nós da RAI 3. Em 2003, com a sua peça Scanna (estreada na Bienal de Veneza de 2004) obteve o prémio Tondelli 2003. As suas três peças estão editadas num volume da Ubulibri com introdução de Franco Quadri.
Itália-Brasil 3 a 2 foi estreado no Teatro Taborda em Setembro de 2004, com tradução de Alessandra Balsamo, intepretação de José Airosa e direcção de Pedro Marques (uma co-produção com a A&M). O texto foi editado na Revista dos Artistas Unidos nº 11. Em Maio de 2005, Davide Enia apresentou, no Teatro Taborda, o seu espectáculo maggio ‘43.

Sou lento, começo a pensar no assunto de um espectáculo muito tempo antes de ir para a sala de ensaios, depois passo muito tempo na sala, sem fazer nada, a ensaiar, a levar pedaços de texto, trabalho, deito fora, converso, 10 horas por dia, 12… quatro meses, seis meses. Agora, por exemplo, estou a pensar no próximo espectáculo, já só penso nele e estamos em Maio de 2005, só vou entrar em produção em Abril do ano que vem, para uma estreia no Inverno ou até depois. Sou lento e não quero que me digam que vá mais depressa.

Venho do mundo do futebol
Eu não venho do teatro, não fiz nenhuma escola de teatro, venho do mundo do futebol, joguei futebol, e por isso em Itália-Brasil quis contar um momento da minha vida e da vida da minha família, o jogo do Mundial de 1982, em que a Itália venceu inesperadamente ao Brasil. O que me fez fazer esse espectáculo foi a vontade de contar a vida através de um acontecimento especial, um acontecimento de tal forma singular que me permitia ver as relações entre as pessoas, entre as pessoas da minha família. Há quem me pergunte “futebol e teatro, o que é isso?”. Para mim, é uma evidência, faz parte de mim. Kafka, que trabalhou com contabilista, conhece o mundo da burocracia e pode escrever O Processo. Para mim, isso seria impossível, é um mundo que não conheço, venho do futebol, escrevo sobre o futebol. É simples.
Bohumil Hrabal, o magnífico autor de Uma Solidão Demasiado Ruidosa, fala de um operário que, como ele, trabalha numa prensa de destruição de livros. E consegue falar do mundo inteiro e da História: a partir daquilo que conhece.
E em Itália-Brasil, eu, como actor, recorro a uma técnica tradicional siciliana, o cuntu, uma forma especificamente palermitana que era usada para contar as batalhas dos cavaleiros de Carlos Magno… Mas eu não sou filho dos cavaleiros, sou filho dos jogadores de futebol, da televisão, do cinema. Uso o cuntu para contar um jogo de bola. Podem dizer-me que filologicamente é incorrecto, e depois? Bem sei, estou-me nas tintas, não sou filólogo, faço teatro.

Dois anos antes
Para contar, começo por recolher muita informação. Estreei Itália-Brasil em 2002, mas comecei a estudar, a ler, a compilar documentos, dois anos antes, em 2000, a recolher todas as informações sobre aquilo que se tinha passado nesse ano. Mal comecei a saber, olha, sentei-me numa cadeira e pus-me a contar o jogo. Mas também aquilo que ia acontecendo em minha casa, com a minha família a ver o jogo. E tinha, nessa altura, três horas e meia de material. Depois, a pouco e pouco, comecei a deitar fora. Havia até coisas muito bonitas que tive de deitar fora, não cabiam. Até que ficaram aqueles 90 minutos.
Trabalhava sozinho, sentado a contar, com os músicos ao meu lado. Porque tal como o texto influenciou a música, a música veio alterar o texto. E preciso dos músicos, sozinho não consigo trabalhar. Sem os músicos, perco-me. A certa altura, já tínhamos uma estrutura, um desenvolvimento preciso – chegámos àquele momento em que sabes de onde partes e aonde chegas. Ainda é parcial essa estrutura, ainda é um segmento, mas é visível.
A dramaturgia são os 90 minutos do jogo, no meio metemos o que quisermos. E são os 90 minutos jogados no campo mas também vividos na minha família, são esta dupla narração. E eu sou o super-narrador, posso entrar e sair, fazer o que muito bem entender.
Só depois destes dias de trabalho é que me sentei ao computador e me pus a passar a limpo, a escrever. E, escrevendo, corrigia, emendava, vinham-me novas ideias, sentado a escrever não fico só a escrever, faço as personagens, represento, ando de um lado para o outro, faço todo o meu teatro.

Uma escrita para ser contada
É uma escrita que nasceu para ser contada.
A sua primeira dimensão é a narrativa directa no seu confronto com as pessoas.
Por isso deixamos sempre hipóteses de mudança do texto durante a carreira e dentro do próprio espectáculo. Não fazemos sempre igual. Mas esta mudança contínua permite, não tanto uma diversificação do espectáculo, como um aprofundamento das questões que o espectáculo levanta. Chegar a cingir o que é essencial em Itália-Brasil, apanhar-lhe a alma. É um trabalho de cinzel, de aperfeiçoamento contínuo.
Mesmo depois de estreado o espectáculo. Já sei que vocês ficaram surpreendidos por o texto que saiu no livro não ser igual ao que eu vos enviei quando o quiseram fazer, pois não é. Sobretudo, não acaba da mesma maneira. Na vossa versão, que foi a que eu comecei a fazer eu contava o desafio todo e no final vinha aquela história trágica do Dinamo de Kiev durante a ocupação nazi, o massacre feito pelos nazis no campo de jogo.
Depois de 30 representações, percebi que era mais interessante despedir-me do publico com uma mensagem de alegria do que com a visão terrível do fuzilamento do guarda-redes Trusevitch. Tinha que o fazer rir.
Todos em Itália temos na nossa cabeça o minuto 90 onde se consegue marcar… goooooooooooooolo. E percebi que a história do Dinamo de Kiev fica mesmo dentro do espectador, não sai de nós. Se a ponho no fim, os espectadores ficam paralisados. A partir de certa altura das representações, comecei a colocá-la a meio, aos 45 minutos – e é assim que está no livro. É um soco brutal. E a seguir tens de fazer rir. E sais do teatro a rir, mas com aquela mágoa que lá está e de que te vais lembrando. É uma espinha que fica cravada – e só me apercebi disso após 30 representações.
Eu queria que Itália-Brasil fosse um espectáculo feliz – para mim e para os espectadores. Neste período de merda que estamos a viver, não queremos um teatro de guerra, queremos um teatro de alegria. Itália Brasil foi isso: fez-te rir, mandou-te para casa com um sorriso. Quando o massacre do Dinamo de Kiev estava no final, tu ias para casa com dor, e isso não era justo.

Como a cana do bambu
O espectáculo, na sua carreira, na sua vida, altera o texto, sempre, sempre. Vou percebendo mais coisas. Até à última respiração. O espectáculo é um texto aberto. Eu não sou Shakespeare. Tento sempre andar à procura do equilíbrio interno. É como a cana de bambu: oscila sempre, cada vez menos, até se firmar. Mas o equilíbrio não existe, o que existe é a procura do equilíbrio. Mal o encontras, morreste, acabaste. O meu trabalho são estas oscilações pequenas, estas alterações, esta procura do equilíbrio – é o que eu faço. A partir de um enredo narrativo, vou criando camadas sucessivas de linguagem até chegar à justeza da expressão, o que não quer dizer que seja a expressão definitiva. Nada é definitivo naquilo que o homem faz. Mas mal uma pessoa se acerca do definitivo, temos de passar ao seguinte.

Cada vez mais pequeno
Parto de um material bastante informe, e vou mudando, reduzindo, reduzindo sempre. Até que chegas a uma forma que é aquela, a de trabalhar nas coisas mais pequenas, cada vez mais pequenas, e também mais pequenas as mudanças.
Quanto mais dominas o material, mais pequenas, infimas, são as alterações que vais fazendo, metes uma nota e é a nota justa, pois antes metias cinco, primeiro eu dizia cinco palavras, agora só a palavra certa.
Penso que o som precede sempre o significado.
Quando pensamos na poesia com rima, pensemos no princípio da Divina Comedia de Dante, Nel mezzo del cammin di nostra vita / mi ritrovai per una selva oscura / che la diritta via era smarrita. A via diritta era smarrita, bela imagem para indicar a diversificação da existência, a dificuldade. Mas a imagem nasce da necessidade do som, de fazer rimar vita com smarrita. E já no som tens a sensação daquilo que está a ser contado, nas letras, no ritmo.
E isso consegue-o o dialecto entre nós, que é uma lingua estratificada durante séculos. Pois, sobretudo no sul de Itália, em Palermo e em Nápoles, foram-se sucedendo muitas civilizações colonizadoras. E todas passaram por Nápoles e Palermo, criando assim dialectos muito diferentes do restante sul da Itália. Tanto que em Nápoles se veio a desenvolver uma tradição de teatro e de canções muito poderosa – e Palermo tem outras tradições, as marionetas, a música popular, o cuntu.
Com os dialectos, consegues ter uma riqueza de ritmos, de sons, que te permitem criar inumeras variações sobre os diferentes estados de alma. Já dentro do dialecto há uma grande possibilidade de expressão – e eu não sei por exemplo, nas representações aqui em Lisboa, se os espectadores liam as legendas, me compreendiam ou só seguiam a sonoridade.

Um narrador que se senta
No meu teatro há um narrador que se senta e conta. Em Itália-Brasil eu levantava-me, corria, podia fazer isso, em Maio ‘43 não saio da cadeira. E sou só eu a contar. Ou a fazer as muitas personagens que entram na narrativa. Em Maio ‘43 faço 9 personagens, é só encontrar a posição, o gesto da personagem, a maneira como se senta – e passar de uma a outra.
Talvez também por isso eu altero os espectáculos. Tanto faz que eu conclua uma frase com uma causal ou com uma final, o importante é o sentimento que eu consigo insuflar, o sentimento que está lá dentro. O importante é que o contexto musical avance, seja imparável, que se continue a harmonia, que seja a mesma: não tem importância mudar duas ou três notas, a música é aquela.
E há ainda a respiração. Nós no Ocidente respiramos em 4 tempos. Por isso o narrador corta por vezes esse andamento da respiração, altera os tempos, acelera, interrompe a cadência e o ouvinte, que também respeita nos mesmos quatro tempos, pergunta “o que é isto? Que foi que se passou?”. Mudando continuamente o ritmo quem te escuta é obrigado a seguir-te. Tu que me ouves respiras como eu, se eu altero a minha respiração, crio uma incerteza, uma dúvida, um sobressalto na tua escuta: e é isso o contar histórias. É a hipótese que temos de jogar emotivamente com o ouvinte e com aquilo que estamos a contar. São estas duas coisas.

Trabalho sobre a minha família
O meu trabalho tem esta dimensão minúscula: trabalho sobre a minha família, aquilo que conheço. O meu trabalho é permitir que a história exista, que as personagens falem dessa maneira, se movimentem deste modo e que haja vida no interior do espectáculo. Trabalho na peúgada das minhas personagens, mas de uma forma minúscula, apanhando os movimentos das pestanas, se quiseres. Se eu tiver que ir a um cirurgião e lhe disser “tenho de ser operado, o que é que vais fazer?” e o cirurgião me disser “ primeiro vou abrir-te, depois suturar esta parte, mexer aqui, cortar ali, coser etc”, eu entrego-me a ele, confio neste cirurgião. Se, em vez disso, ele me diz “vou salvar-te a vida”, eu desconfio, não me entrego. Não quero falar à Humanidade em geral, quero fazer viver estas personagens. Se, depois, o espectáculo é universal, são os tais dois ou três passos a mais que não competem ao autor, se acontecer está bem, se não acontecer, paciência…
Quando estás a trabalhar num texto, é como com uma canção. Por que é que uma canção surge e toca toda a gente? Por que é que isso acontece? Que é isso? Tu fazes uma canção, trabalhas muito para a escreveres bem, para a escreveres com sinceridade, para a carregares de embelezamentos, a pensar que há uma mulher que, ao ler-te, pensa que queres fazer amor com ela, é para isso que escreves. Se, depois, chegas a Portugal ou à Alemanha e a tua canção ecoa lá, melhor ainda. Mas não é uma coisa em que eu pense. Nunca penso nessa hipótese. Penso num espectáculo que me agrade a mim como espectador, a mim leitor quando o leio ou a mim como actor quando o digo.

Itália-Brasil 3 a 2
Eu antes de Itália-Brasil tinha já feito dois espectáculos, um que se chamava Studio per 2 Petali di Rosa , onde eu já contava duas histórias como em Itália-Brasil e um outro, Melangelitá que era um erro total. Era bonito mas era um erro enorme. Eu gostava dele, mas era um erro, um erro. E depois foi o Itália-Brasil, que, embora os dois primeiros funcionassem bem, foi o meu verdadeiro primeiro espectáculo. Talvez até os volte a fazer no futuro, às vezes penso nisso.
Itália-Brasil é realmente popular, pelo menos em Itália. Fala de futebol, eu conheço o mundo do futebol. Fala de um momento em que todos em Itália sabíamos que ia haver o jogo, estávamos suspensos e vimos. E há uma grande identificação, uma espécie de grande consciência nacional nesse momento. E fala da vida – porque durante o jogo, muitos são os que fazem aqueles mesmos gestos. Não interessa que uma pessoa fume estes cigarros ou aqueles, ou beba café – o que me interessa é que um espectador de Bolonha ou de Milão ou de Turim me venha dizer “em minha casa, também era assim”. Não da mesma maneira mas de uma forma análoga, pelo que o espectador ao ver o espectáculo também desenrola o fio da memória – o seu pensamento vai para aquilo que em casa dele estava a acontecer, olha para a cena e ao mesmo tempo a memória parte. E no final o espectáculo tocou-o porque o fez despoletar a sua memória pessoal.
Itália-Brasil foi um milagre, eu não esperava que se passasse o que se passou, teve mais de 400 representações. Eu tinha uma intuição do espectáculo, mas não esperava que ele se tornasse tão popular, que falasse às pessoas de teatro, que nele entendem umas coisas, aos do mundo da bola que entendem outras, às mulheres que ainda ouvem outras mesmo que nada entendam da bola, mas toca a todos e faz rir. Parecia impossível falar de certas coisas no teatro, este espectáculo fez ruir muros, mostrou que era possível. Que qualquer acção do ser humano pode entrar no teatro, pode ser dramatizada.

Aquilo que eu sei
Eu não sou capaz de falar de coisas que não conheço. Não seria capaz de fazer um espectáculo sobre o Holocausto, não sei. Sei que estou sempre a contar, que conto continuamente a cidade de Palermo. É aquilo que eu conheço. E para contar aquela cidade, conto o mundo que conheço, a minha família, as minhas brincadeiras, a vida destas pessoas. Por isso falei do futebol, cresci nos jogos de bola de rua. Falei dos bombardeamentos de Palermo em 1943, ou do núcleo familiar em Scanna. E possivelmente o meu próximo trabalho é sobre a cozinha, pois gosto de cozinhar.

O discurso simbólico
O Ascanio Celestini é analógico, eu serei simbólico. O Ascanio fala da Guerra, e depois leva-a até aos mais pequenos elementos. Eu parto dos pequenos elementos, se depois esses elementos se transformam na guerra de todos, serão uma metáfora, um símbolo. Mas eu falo do ínfimo, do mais pequeno, sei o que se passa em minha casa no Itália-Brasil. Se aquilo passa a simbolizar, a ser uma metáfora do que acontece em todas as famílias, ainda bem. Os nossos processos, o de Ascanio e o meu, estão de certo modo nos antípodas.
Em Palermo há calor demais, há sol demais para que uma pessoa consiga movimentar-se por entre os elementos. E cada coisa ganha uma dimensão simbólica. Para mim, o bombardeamento de Palermo é “o” bombardeamento, o jogo contra o Brasil é “o” jogo de futebol, quando o meu avô morreu foi “o” funeral, não é um funeral qualquer, é “o” funeral da História da Humanidade. Se, depois, ele ganha uma dimensão universal, isso quer dizer que era uma metáfora que funciona. Mas temos um processo oposto, o Ascanio e eu. A analogia parte do universal até ao particular – é o que faz Celestini. Eu fico-me pelo particular, que pode talvez vir a pertencer a todos, não sei. É isso o que faz com que o meu teatro seja metafórico. Eugenio Montale falava de “ uma muralha que em cima tem cacos de garrafas partidas”. Ele apresenta esta imagem, não diz que a vida é assim: mas é uma imagem que passa a ser universal. É o “ objectivo-correlativo” que T. S. Eliot descobre no ensaio sobre o Hamlet para definir a relação entre a experiência individual e o correspondente efeito poético: um conjunto de objectos, uma situação, uma cadeia de factos que constituirá a fórmula dessa emoção particular de tal forma que uma vez retomados, essa emoção seja sempre evocada.

A memória é inútil
Em Itália o teatro tenta suprir o estado, tenta recuperar o desastre que vivemos de forma contínua, tem uma vocação cívica. É uma operação que me parece totalmente inútil. A memória é inútil, completamente inútil. Estamos aqui a contar os bombardeamentos de 1943 e verificamos que os americanos continuam a bombardear Bagdad. Os mesmos erros, as mesmas monstruosidades continuam a ser feitos – apesar da memória. Melhor seria não termos memória, pelo menos podíamos dizer “enganámo-nos”. Mas quando sabemos o que aconteceu há sessenta anos, a bomba atómica… bom seria não termos memória de todas as porcarias que foram feitas pela humanidade, pelo menos estávamos mais tranquilos.
Toda a actividade do ser humano é inútil, o teatro também. Desta inutilidade – é que, até por ser inútil, fica o valor poético da acção em si. Era inútil que o Maradona fintasse todos os jogadores adversários para marcar golo. Mas no jogo de 1986, em plena guerra das Malvinas, ele finta todos os jogadores e marca um golo. É uma acção de tal forma inútil que se torna poética.
Para viver, basta cozinhar qualquer coisa, mas nós queremos cozinhar bem – é esse “bem” que está a mais, que é radicalmente inútil e é aí que reside a poesia. É o mesmo que o golo do Maradona, tornar a inutilidade um prazer. Consegues com o teatro melhorar o quê? O mundo? Ou o teu circulo de amigos, melhorar um bocadinho apenas? Eu não acredito na humanidade, não acredito mesmo.

Prefiro rir a chorar
Mas prefiro rir a chorar. Claramente. Eu não acredito na humanidade. Não acreditando, e sabendo que o jogo está perdido, quero divertir-me, fazer todas as fintas, escrever qualquer coisa que faça rir ou que faça chorar, pelo menos a um ou dois que venham ver-me.

Ainda se está a passar a mesma coisa
Nos anos 50, a Itália saía da guerra, o teatro dialectal falava do presente, da sobrevivência. Se agora, por exemplo o Ascanio e eu nos referimos à segunda guerra mundial é que estamos a mudar o que nos contavam os nossos avós. Em Palermo, ainda vivo com as ruínas desse bombardeamento e o meu imaginário simbólico fez-se no meio desses espaços ainda bombardeados. É um processo muito subtil mas claro. Falas de um facto que ocorreu há sessenta anos mas que é absolutamente igual ao que acontece hoje. No teatro grego havia a máscara: esta máscara indica que é a personagem tal. Mas falas de um acontecimento que está a ocorrer hoje. Quando estás a falar de uma coisa que se passou em 1943, basta saires do teatro hoje mesmo, em 2005, e dizes “merda, ainda se está a passar a mesma coisa, como é possível?”.

Em ‘43, em ‘74 ou em ‘86.
No caso de Maio ‘43, é um acaso passar-se em 1943. Podia fazer sobre outro qualquer momento trágico. Aquilo que a mim realmente me interessa – não estou a falar do espectador nem de mim como autor, falo de mim mesmo: é que nesta história eu tenho 12 anos. Eu, Davide Enia, fiz 12 anos em 1986, mas a situação não era diversa. Não havia um bombardeamento aéreo, mas na Fiat eram atirados para o desemprego centenas de operários, não havia o mercado negro, mas tinhas que te arranjar para comprar comida sem dinheiro, não vinham os americanos desembarcar, vinham, no entanto colonizar-te, do Norte da Itália… Muda o nome, mas o assunto é o mesmo: quem apanha com as coisas é o povo. Não é um discurso demagógico, é a verdade: quem apanha é o povo. E quem uma vez conquistou o poder, continua a detê-lo. E pouco há a fazer. Tens de curvar a espinha para conseguires uma vida mais ou menos digna, honesta: e continuas a ter de curvar-te, seja em ‘43, em ‘74 ou em ‘86.
Claro que as mortes que eu conto são de 1943, as histórias do meu avô e do meu tio são de 1943. A ferida daquele período histórico ainda estava aberta. Até porque em ‘43 se falava ainda em dialecto, hoje já não. Em Palermo, nos bairros populares, ainda se usa o dialecto, é a língua do berço, a que aprendes logo. Ascanio olha para a 2 a Guerra Mundial como o grande espaço onde se cruzam as histórias, eu não é tanto a Guerra que me interessa mas Palermo. Se o bombardeamento tivesse sido no século XVII eu falaria do século XVII. E há a questão do dialecto. O italiano é uma lingua fundada pela televisão dos anos 60, os meus avós não falavam italiano. O dialecto é por um lado a estratificação do passado e dá uma imediata compreensão do presente. É urgente, é necessário. Quando vejo uma mulher que me agrada, é em dialecto que suspiro por ela. “ Mi fa sangue” que é diferente de dizer “gosto dela”. Quando digo, em dialecto, “mi fa sangue”, nomeio o elemento que faz com que o coração bata mais depressa, com que o sexo se endureça: é o sangue. Não consigo encontrar esta expressão no italiano, portanto penso em dialecto.

Sou a pessoa mais perto de mim
Eu sou actor, porque, fisicamente, sou a pessoa mais próxima de mim. Vou para a sala de ensaios e ensaio. Sou financiado pela Câmara, pelo Estado, pela Região e com uma produção independente, trabalho num centro social abandonado no meio de rapazes com problemas, é o local onde ensaio e eu vou para lá quando quero. E levo os músicos, pronto. Não preciso de mais ninguém, os músicos e eu.
É preciso trabalhar num lugar neutro, que não é a tua casa. Mas eu ensaio muitas vezes perante os miúdos. Os miúdos são o público mais terrível que se pode ter, não têm os vícios dos adultos, ou se aborrecem ou acreditam. E se acreditam, olham para ti de boca aberta. Se se chateiam, vão-se embora. E eu assim percebo como funciona o espectáculo. Mesmo quando intelectualmente ainda não compreendem os símbolos que meteste no espectáculo, eles estão dentro dele, sensorialmente. São um público maravilhoso e terrível ao mesmo tempo. E com os miúdos da rua, no meio de Palermo, eu conto-lhes o golo de Paolo Rossi e é um eco extraordinário.
Sou eu quem produz, a minha produtora, que se chama Santo Rocco e Garrincha. Não tenho outro produtor, nem quero, chega assim.
Itália-Brasil 3-2
foi assim. E estreámos no Estádio de San Siro em Milão!

E estreámos
Tinham visto os meus primeiros trabalhos, souberam que eu estava a preparar o Itália-Brasil 3-2, disseram-me “estamos a fazer um festival sobre teatro e desporto, queres vir?” “Sim”. E depois telefonaram-me a perguntar: “e onde fazemos o espectáculo, no teatro Franco Parenti em Milão?”. Não me apetecia, nem me cheiraram as outras hipóteses que surgiam. Até que alguém disse “E se fosse no estádio de San Siro?” “ Siiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim!” E estreámos em Maio.
Entre Maio e Dezembro, conseguimos algumas mas muito poucas representações. Pouquíssimas, umas vinte no máximo. Eu ao mês gastava 800 euros ao telefone a ligar para toda a gente, mas toda a gente mesmo “venham ver o meu espectáculo”, e era eu que fazia os telefonemas. Telefonava, faz de conta, a 100 pessoas e dessas 100, vinham 3. E essas 3 compravam o espectáculo. Eu sabia que era bom, que podia interessar. E recomeçava a fazer os telefonemas.
Até que em Janeiro de 2003, começaram a telefonar-me. E entre Janeiro de 2003 e Abril de 2004, fizemos umas 400 representações… Em toda a Itália, menos em Palermo.

Em Palermo
Em Palermo não conseguimos trabalhar. É que eu não andei pelas escolas de teatro, as pessoas das instituições olham-me com desconfiança. Mas sou financiado pela cidade – só que os teatros institucionais não nos querem. Deveriam ser obrigados, somos financiados pela Cidade. Mas não querem saber quem somos. Eu estou-me nas tintas, em Palermo quase ninguém sabe quem sou. Mas faço um mês de representações em Milão… agora vou para lá repor o Itália-Brasil 3-2 pela enésima vez.
Houve uma vez em que fizémos um trabalho de 20 minutos para a televisão. E isso mudou a minha vida em Palermo, toda a gente tinha visto, olha que bom, é ele. Eu tenho uma cara de assassino, toda a gente me reconhece, viam-me na rua, convidavam-me a beber uma cerveja, a sentar-me com eles, foi reallmente um acontecimento popular. E contam-me coisas, histórias deles. Mas contavam mesmo.
Eu não quero forçar as pessoas a contarem-me histórias delas, não. Se quiserem, contam, mas se não quiserem, bebemos uma cerveja juntos e vamos à nossa vida. Mas o que acontece é que as pessoas me contam histórias privadas, histórias da prisão, de crimes que fizeram, contam mesmo. E depois, essas histórias passam a ser minhas, pego nelas, torço-as, modifico-as, aproprio-me delas, faço o que quero com elas, são minhas. O meu trabalho é esse, escrever, não é fazer uma reportagem ou um documentário.

Entrevistas para quê?
Para o Maio ‘43, entrevistei muita gente. Mas o que me interessou mais foi o que me disseram sobre a pesca das enguias , eu nunca poderia saber isso sem que mo contassem, impossível. Contaram-me isso, como me contaram as imagens do bombardeamento de Palermo.
Mas falar com estas pessoas serviu-me sobretudo para eu perceber o mais pequeno, os cheiros daquele mês de Maio, como é que se andava na rua com aqueles sapatos. E uma vez que compreendes o mundo dentro do qual te movimentas, podes contar a história que quiseres, não é um documentário. Eu trabalho a outro nível.
Atenção: no fim de tudo, podemos estar perante um testemunho histórico, são os tais três passos a mais que eu não faço, pode ser que aconteça, pode ser que fiquemos apenas no particular. Tento ser muito rigoroso, trabalho muito no pormenor.
Entrevistei pessoas não para as passar a limpo para o documentário, entrevistei porque me serviam para saber como era Palermo naqueles anos, o que é que se comia, os sabores que tinham na boca, as brincadeiras que faziam as crianças, o que vestiam, onde é que a gente nova, de 17, 18 anos ia fazer amor, era isso o que me interessava, a vida, não o testemunho histórico. Estou-me nas tintas para o testemunho histórico. Que o espectáculo, depois, resolva isso, é já outra coisa, e é de certo modo independente de mim.

Uma peça para 9 actores
Em Scanna que se pode traduzir por Destruição ou Massacre… há nove actores em cena e eu não represento. Escrevi a peça para ganhar um prémio. Foi quando estava a trabalhar no Maio ‘43, e se calhar é por isso que também se fala de guerra. É um fresco sobre a guerra. E a mim pareceu-me que era mais fácil ganhar o tal prémio Tondelli (e ganhei mesmo) com uma peça com várias personagens do que com um monólogo. E são 15.000 euros. Ganhei por unanimidade. Eu comecei a escrever a pensar no prémio mas é claro, quando começas a escrever já não pensas no dinheiro, pensas no texto. Scanna fala destas 9 pessoas que aguardam o pai que não chegará nunca – e neste tempo de espera destroem-se, massacram-se. Como se as relações básicas dos seres humanos fossem as animais, as bestiais. E são relações animais. A relação homem-mulher fundamentalmente – se a mulher é bonita tu queres fazer amor com ela, não há nada a fazer. Se queres fazer uma delicadeza a uma rapariga boa no fundo queres é fornicar com ela. Os homens massacram-se como animais. São como cães que marcam o seu território. Em Scanna estamos no meio deste mundo de violência, há momentos de extrema delicadeza, pessoas que dançam com bolas de sabão, a menina voa para o céu, fazem uma representaçãozinha teatral, a tal sobrevivência de que eu falava. Mas neste espectáculo, o mundo é de tal forma violento, que as pessoas não aguentam mesmo, não conseguem elevar-se ao nível da beleza, da poesia – e regressam à fealdade do quotidiano, às multas a pagar, aos impostos, ao massacre que houve em Génova durante o encontro do G8, ao fascismo quotidiano, ao racismo nos estádios, às perseguições homofóbicas, essa é a vida quotidiana que realmente estamos a viver.
O homem é mau. Tem tanta poesia dentro – mas também tanta maldade.
Em Scanna as nove personagens estão sempre em cena e sabem sempre o que os outros estão a fazer. Mas eu criei uma grelha de tal forma apertada que pode haver até mudanças lá dentro. Estão sempre atentos aos outros. E tu como espectador também não sabes quem seguir, se um se outro. Todos têm a sua vida. E podes ir vendo. Claro que é dificil estar fora do palco, é mais fácil eu fazer tudo, é complicado reger tanta gente sempre em cena, foi duro. E há actores que são tão diferentes uns dos outros, actores criativos que abrem novas perspectivas, há actores-relógio de uma grande exactidão, que te garante a continuidade do espectáculo que não terá lirismo mas mantém a base imprescindível. É um espectáculo que tem erros. Mas tem vida, toca as pessoas.
Estreei em Veneza, na Bienale, em 2004.
E é um espectáculo num dialecto de tal forma profundo que é incompreensível. Fazê-lo em Veneza ou em Lisboa seria o mesmo. Perecebem-se as acções, o que está subterrâneo. Mas trabalhar com outros actores levou-me a paragens onde eu nunca teria chegado sozinho, o meu imaginário é muito limitado. Posso continuar a falar das mesmas coisas, é possível – mas talvez não escapes nunca deste mesmo blues. Ou fazes como o Tom Waits que trabalha com tanta gente diferente e assim vai mudando o som de cada um dos novos trabalhos. Não te encerras naquilo que fizeste, vais abrindo. É o que estou fazendo neste projecto Scanna e naquele que vou começar a fazer daqui a uns meses que vai ser sobre a cozinha.

O salto
Não devo entrar em mais nenhum dos meus espectáculos, por agora já dei tudo o que sabia como narrador-autor. Agora estou a abrir o leque de hipóteses, arriscar a abertura. Pode ser que caia, pode ser que me afunde: mas quanto mais profunda é a queda mais interessante o perigo, o trabalho novo. Se eu erro um espectáculo, fico furioso. Fico realmente fodido.
Mas quando estou diante de uma hipótese pergunto aos meus rapazes “vamos saltar? Pode ser que se caia fundo, mas arriscamos?” Se me dizem que sim, lá vamos nós. E logo se vê.

A Terra Vista do Mar
A Terra Vista do Mar foi um convite dos Artistas Unidos. Não queres fazer um cabaré de homenagem a Pinter? Muito bem. Isto foi em Junho de 2004, e eu disse “sim, sim, sim”. E esqueci-me. Completamente. Em Fevereiro de 2005, contacta-me a Sociedade de Autores Italiana a perguntar que texto é que era que os Artistas Unidos iam montar. E quem traduzia. E eu não me lembrava de nada. E depois recebo um email do José Maria Vieira Mendes a dizer “já cá temos todos os textos, de Jon Fosse, de Letizia Russo, Spiro Scimone, ainda falta o teu.” “Merda!” E eu tinha 10 dias para o escrever, E escrevi A Terra Vista do Mar. Sinceramente. É uma espécie de pequena reflexão interior sobre uma coisa que é muito importante para mim, o mar. E gostei muito do ensaio que vi o Gonçalo fazer, fiquei contente por ele se deixar ir pelo ritmo do texto, deixar-se levar, sem o querer dominar, deixando margens para a improvisação, fiquei contente de ele não gritar, de chamar o espectador para ele.
Para mim há cidades belas mas que não têm mar, Roma, Florença. Mas quando me falam de Nápoles, digo logo “Tem mar!”, Barcelona ? “Tem mar”, Lisboa? Tem o Tejo. Mas o Tejo parece um mar, o oceano. Escrevi de seguida e é aquilo que eu pensava nestes dez dias em que o escrevi, tem umas coisas interessantes como escrita: os parágrafos com os verbos no infinitivo, de que gosto muito, mesmo quem lê consegue reconstruir tudo na cabeça. E há uma sinceridade despudorada quando eu digo que escrevo para que uma mulher me deseje. Fala sempre da terra, desta coisa estranha, acolhedora e envolvente que é o mar. A terra é o espaço das lutas, das batalhas, das destruições. O mar também mata, mas não lhe importa que sejas negro, mulher, criança – o mar é democrático. O homem é um bastardo, mata por racismo, por interesses económicos. O mar acolhe tudo em si, recolhe – e dá-te vida com o iodo, com o peixe. O mar tem esta dimensão da água, a águas das mulheres, as águas da mãe. O banho de mar é como quando penetras numa mulher – naquele momento, mesmo que sintas dor, estás bem. É quando sais que começam os problemas e te queres refugiar na tua casa.
É impossível estar sempre dentro do mar, como é impossível estar sempre dentro de uma mulher: o ser humano não é feito para a eternidade nem para o equilíbrio.
Um banho de mar é um banho de mar.
Nós é que o implicamos noutras significações mas é só isso: um banho de mar. Um gesto é puro quando é só um gesto.
Por que é que sempre que fazemos uma coisa temos de pensar na mulher que nos irá ler e talvez nos deseje, Porquê? É uma derrota, esse destino.
Maradona faz um gesto puro, finta oito jogadores e marca um golo. Mas não pensava nas consequências, não pensava nas Malvinas, pensava em marcar golo. Ou quando Bob Dylan escrevia uma canção com três acordes: é simples mas pertence a todos.
O teatro é simples. Mas pertence a todos. Na pureza do gesto.
Não acredito na obra de arte que é compreendida por poucos. Em Itália temos De Filippo, todos o compreendiam. E há aqueles que ficam na tua cabeça, Bach, Chaplin, Picasso. Chaplin, toda a gente sabe o que é, o sapateiro e o médico, todos sabem o que é o Grande Ditador, estes génios têm esse condão: ficam connosco, não nos saem da cabeça.

De que é que eu preciso?
De que é que eu preciso? Um bocado de pão, um golo do Maradona, uma canção do Bob Dylan, pouco mais.
Por que é que a pizza é famosa? Porque só tem três coisas, farinha, tomate e mozzarella e está feito. Mas o sabor fica-te na boca. Como o cuscus de peixe que se come na Sicília, prato de origem árabe: tem o sabor do mar, fica na boca o mar.

Depoimento recolhido em 14 de Maio de 2005 por Gonçalo Waddington, Jorge Silva Melo e Pedro Marques.

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