História de Amor (ensaios por escrito) – José Maria Vieira Mendes

A 5 de Julho de 2007, estreou História de Amor (Últimos Capítulos) de Jean-Luc Lagarce no Instituto Franco-Português. Os ensaios decorreram em três fases. Uma primeira em finais de Março, com três ensaios de mesa a que se seguiram alguns ensaios para a memorização (sempre complexa em Lagarce) do texto. Uma segunda fase em finais de Abril, em que os actores traziam já parte do texto decorado e se começou a pensar o cenário. E uma terceira fase, a última, de sete semanas, com o texto totalmente decorado. Pedimos a José Maria Vieira Mendes que fosse mantendo uma espécie de diário, registasse por escrito a sua experiência, deixasse uma memória do processo. É o que aqui publicamos.

Primeira Fase
Alguns ensaios de mesa. Antes, muito antes da estreia.

Resultados:

  • Os barulhos (comboio que se ouve, toque de telefone, moeda a cair no chão, disco que toca). Recorrente, mas como pegar sem redundar?
  • Pensar em canção ou apenas som de disco. A referência no texto existe, resta agora saber se a sigo, ignoro ou engano.
  • A evolução parece ser da brincadeira para o sério. A leveza inicial transforma-se, com o avançar, em conversa séria. Naturalmente assim. Sem esforço. Sobretudo no final da Segunda Parte. O Segundo Homem fica mais zangado, o Primeiro mais irónico e amargurado, distanciando-se, e a Mulher mais consciente do que fez. Mas posso estar enganado. Neste momento posso estar seriamente equivocado.
  • É bom entrarem com uma roupa de rua, um casaco ou assim. É bom, pelo menos por agora, para começar, tudo o que seja mais concreto.
  • É bom que Primeiro Homem ocupe o espaço que é dele. E é dele desde o início. E os outros a princípio deitam coisas abaixo por acidente, não se sentem confortáveis. Só mais tarde.
  • Riem-se em conjunto. Levantam-se de repente. Como se estivessem a descobrir coisas durante os ensaios. Tentar trabalhar essa frescura. Ser apenas. Sem marcações.

Segunda Fase
Já com cenário. Já com parte do texto decorado. Pouparam-me.

Cenário em diagonal ajuda. Não aponta para um só foco. Cria o desequilíbrio da representação. Abre o jogo. Tal como o texto, que passa da narrativa interior para a exposição ou o diálogo. Não é rígido. Não tem regras. E por isso o tom, o registo, não se pode agarrar a uma só posição. Não interessa fazer este texto sempre para o público. Não interessa forçar sempre o diálogo, como se eles, actores, estivessem só uns com os outros. Não interessa também fazer tudo em monólogos interiores. Porque é tudo isto. Não interessa delimitar.

Procurar o tom: descobrir, tacteando, o tom certo. Vamos descobrindo o que não é. E eliminamos. Pomos de parte. Estamos talvez ainda em sonolência, tudo baixinho, lento, sem ironias. Mas não me preocupa. Isso virá a seguir. Tal como o texto vai caminhando de parte para parte para uma maior afirmação, também os ensaios seguem esse percurso. A princípio distantes, observadores. Depois mais por dentro, sarcásticos, amargos ou até doces se for caso disso.

Cada vez me interessa menos descobrir mais sobre o texto. Encontrar respostas. Entender os níveis, discernir as metateatralidades. Quem fala aqui? A personagem? O actor? O escritor? A princípio parecia que só depois de respondidas essas questões era possível fazer o texto. Acho hoje que são essas as questões que não se podem responder. Primeiro, porque em muitos dos casos não se encontra resposta. Depois, porque fico com a sensação de que é não respondendo que o texto melhor se dá a ler. Difícil será descobrir qual o nosso papel no meio disto.

A sintaxe anti-naturalista da escrita dificulta a honestidade e simplicidade do trabalho de actor. Assim que o actor se acha diante de uma frase “escrita”, o tom muda, a presença é outra. Numa primeira reacção. E perde. Aos poucos vai-se recuperando o estar. E depois é dizer “Eu estou um pouco recolhida e, ao mesmo tempo, tão próxima também” como se fosse costume.

Não sou encenador. Nunca serei encenador. Apesar de ter uma propensão para manda-chuva. Volta e meia dou por mim de dedo apontado a tentar comandar. Retraio-me. Gosto de os ver experimentar. Tentar. Mas aborreço-me rapidamente. Ao fim de três horas de ensaio começo a entediar-me. Perco a concentração. A repetição, aquele trabalho persistente e paciente destes três actores, gente resistente, esse trabalho ultrapassa-me. A certa altura já não sei o que lhes dizer. Mas só eu estava de fora. Tenho de ajudar.

Não sou encenador. Não sei o que isso é. As ideias que tenho para uma encenação são assustadoras. Se eu me achasse encenador, seria um desastre o resultado final. Sujava tudo. Uma nódoa. Ainda bem que não sou encenador.

Terceira fase
Fase final de ensaios. A caminho da estreia.

21 de Maio (segunda-feira)
Primeiro ensaio. Fizemos a Primeira Parte, cinco páginas não mais, uma e outra vez. Útil sobretudo para insistir na Sylvie que respondeu e foi acertando.
Os três sabem já o texto, estão com vontade, com mais energia que eu próprio, e levam o ensaio para a frente.
Eu tenho ainda muitas dúvidas. Às vezes acho que não faço a mínima ideia do que estou a fazer. Parece que tudo é possível tal como tudo é errado. Mas continuo a chutar a bola para a frente. Dou ares de quem sabe o que procura. Sugiro. Às vezes falo muito. Falo demais.
O texto continua enigmático.
Procurámos acções paralelas, coisas concretas para fazer, mas tudo parece por enquanto desadequado e forçado. De qualquer das formas tentámos fixar duas, três marcações. Uma necessidade minha para sentir resultados.
Apetece-me sempre avançar. Não repetir tanto. Mas não devo. Ainda não está bem nem perto. Não podemos dispersar. E os actores respondem bem à repetição. Se fosse eu, enjoava, empalidecia e vomitava. Ficava tonto de fazer tantas vezes. Mas eles conseguem.
Depois deixei-os. Antes da hora do final do ensaio. Ficaram a bater texto. Com um buraco de fome na barriga. Mas foram eles que quiseram.

22 Maio (terça-feira)
Avança-se repetindo. Tacteando. Insistimos nas relações entre eles. Por enquanto o texto todo olhos nos olhos, fechado, entre eles. Para se perceberem as relações, as amarguras. Força-se. Procuramos os conflitos, tentar dar volume a um texto que é narrativo, expositivo. Procuramos intenções. Procuramos justificações. Procuramos contar uma história paralela, a história no presente.
Tudo o que se conta é passado. Já foi. Conta-se como foi. É preciso inventar a história do presente, do momento do espectáculo. Do ensaio. Da leitura. O momento em que acaba a peça é o momento da encenação, do actor. É o nosso momento. Que está escondido por vezes nas falas e outras vezes nem existe.
Não é conversa de que goste: procurar psicologias e relações, inventar narrativas, mas achei que aqui ajudava.
Pela primeira vez usámos a música. Que deu o momento de silêncio. Os três calados, olhando uns para os outros. Aos poucos clarificam-se algumas relações. O gesto de comando do Primeiro Homem, o escritor, aquele que controla os silêncios, que decide as marcações, o anfitrião. Os silêncios (e descobrimos dois momentos para eles – sendo que me parece que o segundo não ficará) foram reveladores. Não pensando no texto, no tal passado narrativo, os actores ficaram mais atentos. Concentraram-se no momento presente, o único a que no silêncio se podiam agarrar.
Em casa, à noite, li na biografia de Jean-Pierre Thibaudat, as páginas em que se fala da peça. Numas notas de encenação, lê-se que o Lagarce pensou começar com uma cena em que “nada se diz”. E em que os três andam de bicicleta. Até que o Segundo Homem e a Mulher abandonam o Primeiro Homem, deixando-o sozinho. “L’histoire, cela commence comme ça, il me semble.”
Ajuda.

Ainda se falha muito. Optei por insistir em pedaços pequenos. Ensaiar aos bochechos, duas, três páginas e voltar atrás. Até ao final da semana devemos ter passado por toda a Primeira Parte, a parte mais longa. Quinze páginas ao todo, creio.
Não sei se são momentos de lucidez ou então de ansiedade, mas volta e meia, e por instantes curtos, parece-me que nada do que fazemos faz sentido. Ou então que, se por um lado até pode fazer, por outro podia ser feito de modo completamente diferente.
Penso também às vezes que podíamos fazer mais. Encher a encenação. Os diapositivos, vídeo, imagens que existiram na encenação do próprio Lagarce. Mas pode ser isto porque ainda vamos no princípio e temos tão pouco. Acho que à medida que avançarmos também iremos encher. De uma outra forma, claro.

23 de Maio (quarta-feira)
Esta é uma boa fase. Aquela em que aparecem coisas novas a cada ensaio. Em que tudo parece avançar. Em que se acha que tudo o que se vai fazendo está certo.
É bem provável que o que descobrimos nestes dias seja depois desmontado, até destruído. Afinal não era assim… Mas pelo menos durante esta primeira semana avançamos com energia, fixamos já algumas coisas e desenhamos a Primeira Parte.
Talvez já amanhã se regresse ao Prólogo. E se ligue este à Primeira Parte. Prólogo e Primeira Parte para a primeira semana de ensaios.
Não se pode marcar a tragédia do reencontro, o drama da doença, quando aquilo de que se fala é de uma história de amor, uma ficção, o modo de a contar. O nome da peça é História de Amor e não Amor. O padrão é a narrativa. Por baixo, mas só por baixo, estão vestígios da tensão. É aí que temos de chegar. Aos vestígios. Mas para isso precisamos primeiro de os ter em bruto.
Cada um dos actores caminha de modo diferente. O PP mais cauteloso, concentrado, calado. Pensativo. O Lacerda oscilante, nuns minutos mais expansivo, noutros o oposto. Leva tempo a fixar-se. Talvez não queira. Por mim não precisa. Prefiro assim.
A Sylvie lança-se. Atira-se e não receia o erro. Começa a perceber por onde pode ir, os limites, aquilo que de facto não interessa. Às vezes resvala, mas logo corrige. Duas, três vezes e começa a fazer bem. Mas precisa desse caminho. Aos poucos, na cabeça, o cenário define-se. E também os figurinos. Algumas ideias. O escritor que vive no palco. A necessidade de preencher a sua “casa” com objectos pessoais, fotografias, bibelôs, papel, canetas, livros, caixas de iogurtes, pacotes de bolachas. Um acampamento em palco. Talvez também figurinos e adereços de outras peças, que ficaram. E que podem agora ser utilizados para um ou outro momento.
Ao Primeiro Homem não o vejo de pijama, mas calças largas, por um lado de andar por casa, mas por outro de quem vai receber visitas. E à medida que avança o texto fica mais caseiro. Pantufas, roupão…
Eles vêm mais vestidos. Ele à arquitecto. Jeans e blazer. Talvez camisa. Ou t-shirt, não sei. E ténis. Ela parece-me que sandálias, um vestido. Gostava que eles trouxessem frescura e Verão para dentro de uma casa escura, de Inverno.
A música. Vamos experimentando várias chansons. Gosto de ouvir a Hardy. Talvez “Le Premier Bonheur du Jour”. Quando ouvi em casa “Ma jeunesse fout l’camp” gostei mais. Mas em cena pesava muito. Vamos experimentando. Há mais. Tenho muitos cd’s que o Jorge me emprestou. E tenho os meus vinis. Barbara, Greco, Hardy, Moreau, etc.

24 de Maio (quinta-feira)
“Jorge
eu acho que estão a correr bem os ensaios. Estamos a avançar, a perceber melhor o texto e o que se pode fazer. Nem sempre tenho a certeza de que estamos a ir pelo bom caminho, mas tento não hesitar. Vou avançar até sábado e depois da folga, no domingo ou segunda-feira, dou-te mais detalhes.
Agora parece tudo muito rápido e sem pausas. Por isso é mais difícil explicar.
Abraço
zm”

Adereços de que vamos precisar (ou não):

  • um iogurte (e colher)
  • um ramo de flores
  • um guarda-chuva
  • discos (vinil e cd’s)
  • papéis espalhados
  • canetas num copo e lápis
  • e outros objectos de secretária de escritor: copo para clips, agrafador, apara-lápis, etc.
  • écharpe
  • bengala
  • garrafa de vinho
  • lenços de papel
  • caixas de comprimidos
  • um cabide de pé
  • roupa (figurinos de espectáculos anteriores para estarem espalhados – será possível ter qualquer coisa – uma meia, um sutiã, uma cabeleira do figurino de Music-Hall?)
  • fotografias (de Sylvie e PP – e também de Lacerda – de outros espectáculos)
  • manta para sofá (que também serve de cobertor)
  • pensar em aparelhagem (será só um “tijolo” ou uma aparelhagem mesmo?)
  • talvez seja precisa uma outra mesa
  • era bom ter uma ideia de onde ficam as estantes e ter qualquer coisa que as simule, para servir de apoio a alguns destes adereços.

estou a encher o cenário!!

  • figurinos:

Lacerda: calças largas, mistura de “andar por casa” com “dia especial em que recebe os amigos”. Um casaco de lã, pantufas.
PP: roupa de jovem arquitecto (blazer e jeans – ou calças claras)
Sylvie: vestido claro, simples, leve. Sandálias.

27 de Maio (domingo – folga)
Ponto de situação: fomos avançando, devagarinho, repetimos várias vezes as mesmas páginas até encontrarmos um esqueleto de encenação e os tons, etc. Quando sentia que de repetição para repetição já pouco se evoluía, quando me parecia que o meu olhar de fora se estava a esgotar e eles lá dentro também, passávamos à frente. E assim chegámos à página 20 de 24. Se o ritmo se mantiver, alcançamos o fim a meio desta semana.
Tenho impressão de que, correndo tudo bem, a certa altura (e daqui a uma, duas semanas) será uma questão de eles fazerem uma e outra e outra vez até se sentirem bem com o texto e com o jogo que ele propõe. Seriam ensaios que imagino que até possam volta e meia ser sem mim. Mas isto é uma impressão que tenho. Pode estar errada.
Tenho várias sugestões e pedidos para adereços e figurinos e cenário.
A minha ideia é povoar a “casa do escritor” com pequenas coisas espalhadas e desarrumadas e que contem histórias. Pensámos que na primeira parte da peça nos concentramos na casa e todas as movimentações andam por ela, respeitando a diagonal. Mas a partir da segunda, os dois convidados começam a mexer nos móveis, arrastam uma cadeira e alteram a diagonal. As luzes abrem e eles começam a ocupar o palco todo. Deixamos de estar numa casa e passamos a estar num palco.
Foi o que me ocorreu no ensaio de sábado, olhando para o modo como estavam a atacar a Segunda Parte. O protagonismo vai mudando. O Primeiro Homem vai-se apagando, desaparecendo. E a relação dos outros dois com o espaço também tem de mudar. Ficam mais à vontade, tentam controlar mais o jogo. Começam a perceber melhor o que estão a fazer.
Esta primeira semana de ensaios pareceu-me ter passado depressa. No entanto, não se trabalharam assim tantas horas. É a vantagem de se ensaiar com o texto decorado. Conseguimos desde logo trabalhar as várias possibilidades da cena muito mais livremente. A definição prévia do cenário também ajudou.

28 de Maio (segunda-feira)
Chegámos ao final depois de passarmos por uma Segunda Parte em que encontrámos o humor e as possibilidades de jogo em que ainda não tínhamos reparado.
O mais complicado do final, para além do tom, é a rapidez com que ele cai. Com que se precipita. Sem darmos por ela acabou. E para os actores fica muito difícil, porque a mudança de tom é rápida, quase sem tempo, mas necessária, pareceu-me. O Primeiro Homem deixa de falar. A Mulher explica e o Segundo Homem exige um Epílogo. Tem muito pouco a que nos possamos agarrar. E por isso amanhã voltaremos a este final, uma e outra vez, sem influências da Segunda Parte, concentrados apenas nele. E só quando estiver mais consistente podemos repetir com a Segunda Parte.
Os ensaios esta semana serão mais curtos. O PP e a Sylvie ensaiam Mecenas, Mecenas [espectáculo na Gulbenkian]. E com o que adiantámos a semana passada podem descansar mais esta semana. Eu também preciso do tempo. Para pensar no que está a ser feito. Para ler mais Lagarce (à medida que avanço na biografia vou percebendo o caminho que leva até História de Amor, as outras peças que precederam ou que jogam com esta, as peças com dois homens e uma mulher). Amanhã estarei apenas nas três primeiras horas de ensaio.

30 de Maio (quarta-feira)
O final de novo no ensaio de terça-feira. Uma e outra vez para tentar ganhar o tempo. E parece-me que conseguimos. Três páginas em mais de dez minutos. Pausadas. E assim o final faz mais sentido.
Depois deixei-os para juntarem isto ao que tinha sido feito para a Segunda Parte. Hoje comecei a ver o resultado. Tentar perceber como se conjugavam as duas.
Numa das vezes que fizemos, a Sylvie, procurando, deixou-se embalar e foi um gozo vê-la. Quase tudo errado, puxando o cómico para sítios onde isto não pode ir, mas com uma congruência e habilidade fantásticas. Depois corrigiu no seguinte, aproveitando resíduos do que tinha anteriormente feito.
Procuramos um equilíbrio entre a seriedade e o cómico, entre a veracidade e a falsidade. O que lhes peço é que joguem o jogo de tal forma que se tornem por uns momentos credíveis, mas por outros desfaçam essa convenção que acabaram de conseguir. O objectivo é nunca sabermos se falam verdade ou mentira. Se viveram ou não de facto aquela história, se o Primeiro Homem está ou não doente. (E isto parece-se tanto com a peça que tenho na cabeça e que quero escrever a seguir…)
Amanhã não ensaiamos.

2 de Junho (sábado)
O ensaio de 31 de Maio andou à volta do Prólogo. Recomeçar, voltar ao que já foi feito, voltar onde já estivemos. E perceber neste regresso que conquistar o texto é batalha bem mais rija do que estava a parecer. Conseguir avançar pela superfície foi rápido e produtivo. Passar uma segunda vez é bem mais complicado. Fazer disto um espectáculo não só legível mas também interpretado. E por isso fomos tentando. Uma e outra vez tentámos. A escrita do Lagarce, a espiral, a descoberta de novas leituras que confundem os actores e que a mim também me confundem e me roubam o chão. Esta escrita que se pega ao meu próprio discurso. Que tão facilmente se fecha, se complica. Gostava de ser capaz de lhe roubar os vestígios cerebrais. De lhe apagar o raciocínio e tentar dar a ver a simplicidade que também tem. A história e sobretudo o jogo que é a peça. O jogo que vão jogando os três actores com o público e com o texto.
Lagarce é Duras, sim, mas é uma Duras com humor na escrita. É um India Song em comédia. Não sei. De qualquer das formas mais irónico.
Experimentámos figurinos e discutimos a lista de cenografia com a Rita Lopes Alves. Durante a próxima semana começa a chegar o que falta. Ajudará nos percursos mas não contribui para aquilo que mais me preocupa neste momento: ser capaz de explicar aos actores quais os caminhos por onde podem andar. Quais os limites deste jogo, limites que nem eu próprio para mim sei definir. E que se alteram ou redefinem a cada ensaio que se faz.
O início, o Prólogo, é do Primeiro Homem, do Lacerda portanto. E ele corajosamente lá vai tentando. Sempre sem errar, curiosamente, sem falhar redondamente. Vai por aproximação cautelosa, em pequenos passos. Sou capaz de passar muito tempo a tentar perceber a cabeça daqueles com quem trabalho. E fico bastante tempo a pensar nisso mesmo.
Amanhã folgamos. Não ensaiámos nem sábado, nem domingo, nem amanhã, segunda. Foi boa esta pausa. Acabei de ler a biografia de Thibaudat e releio algumas peças. E percebo cada vez mais a linguagem desta escrita. A linguagem que, como em qualquer bom autor, recorre, se repete. O mesmo vocabulário, às vezes frases inteiras. Gosto disso. Do contágio entre obras. Mundo próprio. Como se fosse tudo uma só peça.
Cada vez acho mais que o trabalho que fizemos para o momento antes do Prólogo não é o correcto. Devemos começar a peça muito mais adiantados. Cheguei a pensar que podíamos apanhar os actores instalando-se, mas parece-me agora que já devem há muito estar instalados. Que o vinho deve ir já a meio. Que as flores estão já no jarro. Que a gabardina já no cabide. Etc.

6 de Junho (quarta-feira)
Depois de folgas, recomeçámos esta semana, na terça-feira. E voltámos ao início da peça. Ensaios em detalhe, com muitas repetições. Mais cansativos, mais informação. Hoje chegámos à Segunda Parte, aquela em que nos julgávamos mais à vontade, mas de repente dúvidas, paragens, questões.
Foi tudo para casa mais cedo. Amanhã recomeçamos com a cabeça limpa. Vou tentar bater o meu recorde de tempo de presença na sala de ensaio. Cinco horas!
As flores que cheguei a pensar que podiam ser trazidas pelo “casal de convidados” logo ao início, parece-me agora que deviam ser de plástico. Seria bom que parte daquele cenário de casa, aquele bocado de casa que vemos no palco, não fosse totalmente realista. Que se sublinhasse a artificialidade não apenas com a presença de figurinos de outras peças espalhados pelo espaço, mas também através de alguns adereços. Como por exemplo a máquina de escrever, peso morto no chão, ou o telefone, não ligado, apenas como decoração. E isto depois deverá transparecer para o que fazem os actores. Aos poucos tenho vindo a retirar-lhes acções como o beber o vinho. Pelo menos reduzir isso. O ideal seria possibilitar a leitura de que até o beber do vinho pode ser falso. Apenas movimento para compor determinada cena.
Tudo isto, quando explicado, complica neste momento o trabalho dos actores. E tenho de ter cuidado para não baralhar demasiado as cartas do jogo. Não se consegue tudo de uma só vez.
Não gosto de fazer pausas nos ensaios. Pausas maiores do que cinco minutos são raras. Mas vou percebendo que este meu ritmo, ritmo de fuçanga, pode não bater certo com o ritmo dos outros. Por vezes uma pausa mais longa faz milagres. Por enquanto vou ensaiando com eles quatro horas, quatro horas praticamente seguidas. Mas estou mais calmo. Mais sossegado ali dentro. Noutro dia apercebi-me de que esta minha energia fazia parecer que queria despachar o ensaio. Acabar rapidamente, e que isso retirava a possibilidade a eles, actores, de repetir, de parar. Tenho que lhes dar esse espaço.
Hoje o PP barafustou quando lhe pedi para repetir de certa maneira. Disse-me que precisava de experimentar, pediu-me para eu lhe dar esse espaço. Justo. Nesses momentos devo dar poucas ou quase nenhumas indicações. Permitir apenas que se faça outra vez.
Cantámos os parabéns e comemos uma torta de laranja. O PP fez anos. “É disso que eu estou a falar. Que estamos a envelhecer.” (História de Amor)

8 de Junho (sexta-feira)
Está certo o espectáculo até este momento, mas certo já não chega. Começo a pensar em possibilidades de ir mais longe. Rasgar um pouco o que corre o risco de se ficar pelo morno. O que achei que era mais difícil a princípio, tornar legível o texto, parece conquistado, falta-lhe agora mais intervenção, mais volume, mais fugas. Enriquecer, fugir. Dar mais. Arriscar.
Nos dois últimos ensaios fiquei preso aos pormenores, aos modos de dizer. Dirigir o detalhe, não os deixar fugir. O ambiente ficou um pouco sonolento. E por isso perigoso. Tenho agora dificuldades em reagir. Em ir procurar outras coisas. Mas não nos podemos encostar e deixar adormecer. Aproveitar a nova semana para isso mesmo.

13 de Junho (quarta-feira)
Nova semana começou com ataque aos silêncios. Puxamos também mais pela amargura, pelas tensões. Os figurinos mais certos, o cenário talvez um pouco cheio, mas ainda não dá para perceber. Os actores começam a divertir-se, começam a perceber o jogo. Se sair mal, corrige-se.
Cansamo-nos. Os ensaios estão um pouco mais longos. Para mim, muito longos, claro.
Amanhã vamos finalmente para o palco do Instituto Franco-Português (IFP). Trará nova energia. Novos objectivos.

14 de Junho (quinta-feira)
Depois de um ensaio na Bempostinha em que descobrimos boas coisas para a Segunda Parte (como enganar o público, como puxar pela ideia de que não sabemos quando se representa e quando se é verdadeiro), fomos para o palco do IFP. Perdeu-se por enquanto mais do que se ganhou. Mas é uma questão de hábito, supus, após as quatro horas de ensaio. A princípio tinham-se perdido todas as relações e tensões entre eles. No final, tínhamo-las reconquistado em parte.
O cenário fica bem. Salta mais à vista a ideia de que estão num palco. E isso é bom.

20 de Junho (quarta-feira)
Hoje será o último dia de ensaios no IFP antes de voltarmos para a Bempostinha por mais uns dias. Ontem, o primeiro corrido. Que correu bem melhor do que esperávamos. Falta neste momento, e cada vez mais, os ensaios corridos com correcções de pormenores a seguir.
Gostava que passasse uma provocação ao espectador. Que o espectador se sentisse desafiado. Esconder dele a verdade, tal como o texto ma esconde a mim, mas provocando com esse gesto a curiosidade. Levá-lo por um caminho e depois empurrá-lo para um buraco. E tirá-lo logo em seguida desse buraco e conduzi-lo por mais um tempo e deixá-lo passear descontraidamente e depois fazer cair um tronco em cima da sua cabeça. E isto sucessivamente ao ponto de no final este espectador caminhante temer todos os passos que dá.
Além disso, levantamos cada vez mais a guerra-fria entre os “actores” e o “escritor” de História de Amor. Ela, quase sempre de sorriso nos lábios, ele, mais cáustico, mais violento, vão ameaçando o escritor que pouco reage, que se mantém impassível e prossegue na sua história.

25 de Junho (segunda-feira)
O regresso à Bempostinha retirou alguma energia. Dois dias com dois ensaios corridos e pequenas correcções, pouco mais. Parecia que o fôlego se esgotava, que não apetecia fazer mais alterações no que estava.
Mas na sexta-feira vimos o espectáculo do Berreur com a Mireille [Les Règles du Savoir Vivre… apresentado no IFP] e deu vontade de ir mais longe. Não que procure o caminho escolhido por eles, o da minúcia, todo o movimento controlado, toda a palavra coreografada. Serviu-me o espectáculo sobretudo para compreender melhor o humor do Lagarce e também para perceber o funcionamento desta linguagem escrita, tão estrangeira, por vezes, à boca. O rigor da encenação do Berreur e a destreza da Mireille tornam ainda mais evidentes os jogos de linguagem, as preciosidades, as brincadeiras do dizer. Senti que por vezes se perdia o lado mais humano da peça, daquela pessoa em palco que a espaços me parecia ser uma marioneta de um texto.
Esta semana recomeçámos pois, após folga de dois dias, com um corrido para a imprensa (e o nervoso provocado pela presença de “público” modificou bastante o espectáculo) e voltámos a ensaiar pormenores. Tive algumas dúvidas com o ensaio dos pormenores. Tenho de ter cuidado para não exagerar nas indicações porque vai contra a ideia que tenho seguido de deixar algum espaço aos actores. Se marco tudo muito, começa a sobrepor-se uma máquina de ideias que não se adequa ao que já foi encontrado. Retraio uma vontade de dirigir mais, de definir o mínimo detalhe, até porque sei que isso só contribuirá para baralhar. Parece que permanentemente me contradigo. Tenho de ter cuidado comigo.
Voltei a pensar na ideia da utilização de papéis, indiciar que se lê uma peça, ou que foi escrita uma peça, ou um livro, o que for. A fazê-lo tem de ser esta presença tão secundária quanto a da máquina de escrever que temos agora em cena. Saber-se que lá está, mas não perceber exactamente para quê. Que esses papéis possam ser escrita do escritor, mas também velhos rascunhos sem valor.

1 de Julho (domingo)
Ontem, num ensaio corrido com apontamentos de luz, parecia que tinha encenado uma peça realista. Tombei numa armadilha que eu próprio construí. A ideia da casa dentro do teatro é a armadilha. Deveria funcionar ou deveria indicar ou deveria ser apenas um cenário, sem função realista. Aquele sofá não é um sofá, é só um pedaço de cenografia que ali foi posto para um ensaio. O problema é que a partir do momento em que está em cima de um palco, a convenção teatral sobrepõe-se, e a partir do momento em que o actor se comporta relativamente a esse sofá como sendo ele o sofá de uma casa realista, então a dimensão plástica e falsa que se propunha a princípio deixa de existir.

Como corrigir então isto neste momento:

  • Insistir com actores para desfazerem os seus comportamentos mais realistas.
  • Retirar alguns elementos da casa de modo a torná-la mais incompleta e imperfeita, sublinhando assim o seu carácter provisório, de mero cenário, de não-habitabilidade. E eventualmente prolongar alguns dos papéis no chão e livros para fora da zona convencionada como casa.
  • Carregar mais os momentos do texto em que se representam personagens, em que se mima o texto, fazendo aí sim uso do cenário. O cenário, a casa, o sofá, a mesa servem para representar a história e não para habitar os actores que lêem o texto. (ex.: a garrafa de vinho não deve estar em cima da mesa, mas sim “fora de cena”, no chão. Quase não os vemos a servirem-se.)
  • Reforçar mais um pouco a situação da leitura.

Ou seja, os dois actores vêm de fora para ler uma peça, sim, mas esta situação não se pode sobrepor ao restante. Se a ideia sempre foi tirar o tapete ao espectador, colocá-lo numa situação em que não sabe o que é representação e o que é “realidade”, o que é história e ficção e o que é actores e escritor, então deveriam ambas ter a mesma força.
E o problema maior está na Primeira Parte. Porque na Segunda Parte isso já quase existe. Falta um bocadinho ao Arquitecto, ainda preso por vezes ao realismo na representação, no dizer do texto, duro. Custa-me porém às vezes corrigir isto, porque para se fugir ao realismo muitas vezes se está a recorrer ao cliché, ao desenho da personagem em traços largos, por fora.
Estamos a quatro dias da estreia. O que é bom, o prazo certo para o trabalho que falta. O PP parece-me ainda muito inseguro. Mas pode ser traço de personalidade, queixar-se disso mesmo. Ter dúvidas até ao fim. O Lacerda tem o trabalho facilitado. E entrou bem desde cedo. A Sylvie tem dias. Faz tudo em passos grandes, mudanças bruscas. “Agora percebi isto” – e faz isto.
Na semana passada, na Bempostinha, estivemos a perceber melhor o texto, a descobrir pormenores, a tirar coisas que já não faziam sentido. E descobrimos intensidades onde antes nada existia. Momentos em que se ficava triste, triste porque a história é triste e não por razões psicológicas que se escondem do espectador, de um passado realista.

6 de Julho (sexta-feira)
Depois da estreia.
Os últimos dias de ensaios serviram para entender melhor a peça. Para também os actores a entenderem melhor. E pouco a pouco vão entrando, sentindo-se confortáveis naquele texto. As marcações vão sendo quebradas. A iniciativa começa a ser cada vez mais deles. Foi isto que faltou em grande parte do tempo de ensaios. Este entendimento comum do que se estava a fazer.
Depois da estreia mudava coisas, sim. Mudava sobretudo o cenário. Simplificava-o, reduzia o número de adereços e ficavam só aqueles que agora são necessários para a cena. Assumia mesmo o lado propositado da sua existência. “Esta toalha só aqui está porque é necessária para aquela cena”. Eliminava pois a história que esteve por trás do aparecimento da toalha. Na mesa do escritor quase nada. As estantes desaparecem. A mesa ao lado do sofá também. Os adereços ficam expostos uns ao lado dos outros e quando o actor lhes dá uso tem de lá ir buscá-los. A garrafa de vinho resiste, mas pousada no chão. E aparece uma garrafa de água, de plástico. As cadeiras mantêm-se. E os actores têm de dar mais. Se agora pouco descansam, passariam então a nada descansar. Não é preciso o cabide.
A evolução do espectáculo, percebi hoje quando o vi pela primeira vez com público, será a do aperfeiçoamento do jogo pelos actores, criarem o à-vontade dentro do texto e tornarem o espectáculo deles e também a da progressiva inclusão do público neste jogo. O público tem de ser cúmplice. Tem de se sentir peça da peça.
Aquilo que incomoda alguns espectadores é aquilo de que mais gosto: o tempo lento do espectáculo. Ficou lenta a peça porque me interessa propor um outro tempo no teatro. Estou cada vez mais obcecado pela ideia de tempo no teatro. Na escrita. Gosto de sentir o tempo do espectáculo. Gosto de o ver instalar-se na sala. Gosto de pedir ao espectador o seu tempo. Que ele o disponibilize. Que esteja disponível para um outro tempo.

Epílogo
Acabo como começo: não sou encenador. Gosto de estar nos ensaios. Gosto de participar, de ser mais um, de fazer em conjunto.
Mas tinha de experimentar, é um gesto que me parece natural e que vem atrás do que quero no teatro. Estar lá e não de cabeça apenas na literatura. E a experiência irá sobretudo, e como provavelmente não podia deixar de ser, mexer com a escrita e com o modo como penso sobre ela. Julgo ter sido aliás esse um dos argumentos do Jorge quando me convidou: “vai fazer-te bem à escrita.”
Estar do lado do “inimigo” ajuda a entender o funcionamento dos outros olhos, das outras cabeças que andam por cima do texto. Alarga o espectro. Fez-me continuar a pensar sobre o que é encenar, representar, estar, o que é levantar um espectáculo, coisas que cada vez mais me ocupam. Isto visto com olhos de escritor.
E assim vou mudando a escrita. Em Onde Vamos Morar começou parte desta mudança. As próximas serão já na nova morada, espero.
Outubro de 2007

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