IN/VISIBILIDADE de Ana Vieira

In/visibilidade

IN/VISIBILIDADE de Ana Vieira
No Palácio Marques de Pombal, de 17 de Março a 18 de Abril de 2009
Em colaboração com a Galeria Porta 33 e com o apoio da Egeac e da Galeria Graça Brandão, os Artistas Unidos apresentam em Lisboa a exposição IN/VISIBILIDADES que abriu no Funchal em Julho passado.

Sobre In/visibilidade
Uma mulher está de costas para nós e de frente para um espaço em branco. Ela segura na mão um espelho oval, na superfície do qual se sucedem imagens de ruas, automóveis, corpos e rostos de gente anónima que caminha no frenesim dos passeios. O corpo dela está num intervalo: entre o que se passa nas suas costas — talvez memória, talvez guia para um percurso — e o espaço vazio com que se depara. Embora filmadas no Funchal, numa das residências [da Porta 33] destinadas à preparação da exposição que abre com o filme assim descrito, as imagens no espelho oval apresentam figuras do quotidiano de muitos de nós. Vem-me à memória a crítica de Platão à arte como imitação dos fenómenos do mundo (este sendo já uma reflexão de um plano ideal), e esta citação retirada de um livro sobre a transfiguração do banal pela experiência artística: “[…] um espelho na mão […] e tu rapidamente produzirás um sol, com aquilo que existe no céu, rapidamente produzirás uma terra, a ti mesmo, assim como o resto: animais, objectos fabricados, plantas, e tudo aquilo acerca do qual falávamos há instantes.” Enganadora esta arte da reflexão que não nos permite conhecer nem produzir nada que não esteja já produzido ou que nos transcenda! Talvez por isso ela nos ajude a perceber este lugar aqui, onde estamos agora.

Que o mundo seja feito por reflexão, “à imagem de” , é uma concepção que está presente na nossa estrutura cultural desde tempos dos quais já não temos memória. Os espelhos, enquanto dispositivos com uma função formativa, são objectos através dos quais tomamos consciência da imagem pela qual estruturamos tanto o espaço físico e comportamental que nos envolve, como a forma na qual se apresenta o nosso corpo. Para além de nos mostrarem, eles incitam também a um comportamento activo através do qual procuramos conhecer e, simultaneamente, construir essa mesma imagem. Como instrumentos de aproximação, permitem-nos ultrapassar os limites físicos dos nossos olhos e ver aquilo a que de outra maneira não teríamos acesso: uma cena que se desenrola num ângulo escondido de uma sala, a forma que o penteado tomou na nossa nuca, ou os corpos celestes que com os espelhos ficam ao alcance da nossa observação. Esta obsessão da visão, marca também de um desejo de encontrar uma representação que abrace tudo, é constituinte de uma prática da representação ocidental que perpassa pelos domínios artísticos, políticos e científicos.  Mas momentos há em que, por acaso, ou por ser levado ao extremo, o mesmo espelho que apontámos para longe e para fora, rodopia, e vira-se para o que, estando mais próximo, não podemos ver sem auxílio: nós mesmos. Esta reviravolta do espelho da psiché tem raízes mitológicas e constrói o nosso universo ficcional e psíquico. Há o Narciso que se apaixona pela sua imagem pensando ser outro quem via, afogando-se assim nas águas dos seus próprios enganos; ou o passageiro do comboio freudiano que à noite é tomado por um susto de terror, ao ver um estranho que o olha do outro lado do vidro e que o acompanha na sua viagem. Em ambos, e mesmo que a princípio disso não tenha consciência, o observador torna-se estranho a ele próprio e transforma-se no objecto de observação. Nesta dupla situação, tomando consciência do que vê, toma consciência dele próprio.

Será aqui que eu situo os espelhos de Ana Vieira. Eles permitem ver o que não temos acesso (como nas instalações de “Casa Desabitada”) e evocam a construção da imagem do corpo e da identidade (como no “Toucador” de 1973). Não nos dando tudo a ver, colocam também o espectador numa situação lúdica e exploratória, implicando aquele que vê no processo de construção da imagem final, gerada através da experiência. Para além dos limites interior-exterior sempre questionados na obra de Ana Vieira, aqui, e de um modo manifesto na peça “Vigias”, os limites e a separação clara entre espectador e objecto experimentado ficam assim esbatidos.

Depois da visão ser levada aos extremos pela técnica e perante a profusão de imagens que nos são oferecidas, que lugar produtivo pode ter o olhar de um espectador sobre uma imagem? Ana Vieira esboça uma resposta possível: ver ainda mais, com lupas e com lanternas, procurando, aumentando o que está escrito em letras pequenas e desta vez, transformando a visão de uma imagem em leitura. Percebendo o exercício da visão como um exercício de literacia de modo a não ficarmos simplesmente invadidos pelas imagens. Com um carácter simultaneamente evocativo e presente, as palavras escritas nas salas desta exposição impele-nos a “ver através das palavras” e das imagens, a fazer a travessia dos objectos e dos espaços do nosso quotidiano. Deste modo, o traço que divide o invisível do visível, não é um traço de separação mas de transmissão. Como quando a visível “Chave da casa”, abre para a memória invisível, particular e histórica da casa de cada um de nós.
Liliana Coutinho
Paris, Julho 2008

(1)Danto, Arthur, La Transfiguration du Banal – Une Philosophie de l’Art, Poétique, Seuil, Paris, 1989, p.40. (tradução da autora)

(2)termo que pode servir para designar a actividade psíquica, o nome francês de uma mesa de maquilhagem com espelho e uma mortal feita deusa, por quem Eros se picou a si próprio numa das suas setas.