Jardins de Bagdad de Barbara Lessing
No Teatro Taborda 24 de Junho a 30 de Julho de 2005
parênteses nestes jardins da babilónia
Leio o jornal de hoje, dia em que a guerra do futebol (mais uma vez) e também a guerra dos sobreiros são destaques. Na memória, os jardins de bagdad (suspensos, como os outros terão sido?), há dias vistos pelo chão e pelas paredes de uma casa de campo onde há quem viva todos os dias. Por isso, dou por mim a ler o jornal de outra maneira. (E não é para isso que serve fabricar objectos inúteis que se expõem?)
Nesse mesmo jornal: anúncio pago do produto anti-envelhecimento (vendido nas farmácias) que ganhou o prémio “les victoires de la beauté” (traduzo, que o francês é de guerras mais antigas: as vitórias da beleza); lembrança à largura da página (com fotografia): na Índia celebram-se milhares de casamentos por ano entre crianças (em nome da tradição e do dinheiro); notícia (com fotografia também): um homem de 72 anos inscreve-se (entre centenas) na corrida à presidência do Irão porque quer ser irmão dos americanos ensinando-lhes (e ao seu presidente) a poesia iraniana que eles não sabem. (E não é de tudo isto que estes jardins de bagdad também falam?)
Dia: um qualquer, rápido, igual a todos os outros. Maio – mês de rosas, aparições de fátima, e também de trabalhadores. 2005 – quando a tal guerra, que nunca se chamará “grande” (como a que houve antes de eu ter nascido e teve armistício, e bem comemorado), terá acabado há tempos, sem armistício nem nada, esta. (E não será este o dia-mês-ano dos jardins de bagdad, terra que um dia teve um museu onde foram parar restos da sétima maravilha do mundo, guardados agora em cofres particulares duma parcela do mundo?)
É difícil amestrar a língua e libertar a cabeça (sentimental, ocidental) para reter os nomes próprios, pessoas e lugares de que as colunas impressas do mundo deste dia (e dos outros) se fazem: Baquba, Beiji, Abu Mussab al-Zarqawi, Iskandariyah, Qaim, Karabilah, Houssayba, Ibrahim al-Jaafari, Ibrahim al-Jaafari, Tajiquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Lutfulla Chamssutdinov, Korasuv, Abu Ghraib, Khodorkovski, Adel Abdel-Mahdi, Gush Katif. Nomes da guerra principal e das guerras secundárias. Bush sempre é mais fácil de fixar e articular. Palavra mais pequena não há (e maior haverá? – com tanta coisa dentro), exibida em frases, escondida em factos, nome do jardineiro-chefe destes jardins suspensos.
Leio no jornal deste dia (ou dias próximos e iguais) coisas fáceis e naturais: “ o exército norte-americano deu hoje por concluída a operação militar desencadeada há uma semana no Oeste do Iraque, anunciando ter abatido 125 combatentes e neutralizado importantes refúgios de grupos terroristas”; “trinta e quatro corpos de homens, mortos a tiro, decapitados ou estrangulados, foram descobertos nas últimas 24 horas no Iraque, 13 dos quais na capital”; “13 corpos foram encontrados esta manhã numa lixeira junto a Sadr City, um subúrbio xiita pobre, a leste da capital”; “14 corpos de aldeãos sunitas, sequestrados no bairro de Sadr City”; “onze corpos numa zona agrícola perto de Iskandariyah”; “a morte de 400 pessoas em resultado de 70 atentados registados nas duas últimas semanas”. Há muito tempo já que esta guerra acabou, recordo, e que a liberdade-democracia dum quatro-de-julho teria triunfado por lá. O tempo suficiente para terem crescido plantas e flores nos jardins de Bagdad.
O que não deve ser nada fácil é, no meio disto, entrar com teimosia, como a Barbara Lessing faz (e não esconde), nas lojas dos 300 (actualizo: dos um-e-setenta, aquelas dos sensatos, sorumbáticos, calados e tão neutrais chineses que chegam às paradisíacas europas), e entrar nelas com a guerra persistente a apertar o coração e uma montagem (vinda ou por vir) na cabeça. E assim descobrir em prateleiras e caixotes o que faz falta para o contrário daquilo para que foi feito: brinquedos com que se fabricam crianças que vivam normalmente – as meninas naturalmente ensinadas, entre barbies arianas de segunda, a serem boazinhas e boazonas delicadas; os meninos ensinados, entre pistolas com pouco peso, pouco preço (estraga e deita fora, logo se compra outra, não faz mal) e camuflados pintados, a serem os naturais e bravos soldados das guerras que não há; as decorações para casas da gente vulgaríssima, tanta sem trabalho já, que nas pétalas fingidas e duradouras encontra um cêntimo de felicidade, a possível neste mundo, que outro haverá. E, depois, já fora da loja, destruir os modelos de tantas vidas, perfeições que coabitam com as guerras todas – nas economias, nas finanças, nos gostos e nos gestos de cada qual.
Guerra no coração. E quem diz guerra diz morte. Melhor dizendo: mortes. Quase todas anónimas – corpos. E, em certas regiões mais desenvolvidas, coroas funerárias, claro, que limpam com fitas às riscas, quer o mal quer a consciência de quem talvez a tenha ou alguma vez a tenha tido. (Olhem sem fechar os olhos para as paredes onde se suspendem os jardins de bagdad!)
E o que também não deve ser nada fácil é arrumar no armário as tintas, as trinchas, os pincéis, as telas, as madeiras – tradição aprendida e trabalhada – e passar a dizer os impérios com os produtos que eles deitam cá para fora para nós, pacíficos, os consumirmos. E reduzir (reduzir?) o fabrico à montagem (ó gente inventora do corta-e-cola!, ó Eisentein!) e produzir assim aquilo que as galerias não comportam (e as casas de cada um?). Jardins de bagdad.
E ainda por cima conseguir alojar a ironia, em cada pequeno grito, colorido e animado por sons mecânicos de guerra e iluminações intermitentes de natal, urgentes recados de revolta, daqueles sem os quais as pessoas comuns se foram habituando a viver. Ai, a resistência do plástico quase eterno! Quantos milhões de anos-luz leva a decompor-se na lixeiras onde os corpos se desfazem em poucas horas? Quando desaparecerão as pernas esbeltas, os tules translúcidos dos balés e do musicóis, as botas pretas e cardadas, as louras cabeleiras, os canhões das armas (cirúrgicas), as facas de mato amarelas? Quando desaparecerão os jardins de bagdad? Acrescento: Quem os quererá desmontar?
Não é fácil, mas foi feito. E bem feito. (E é bem feito!)
(Os horrores das guerras já não se podem pintar hoje nem desenhar. Goya começou a viver no século XVIII, o no século XIX os fuzilamentos ainda eram novidade. Motherwell morreu no fim do século XX e na, Guerra de Espanha, além dos maus, havia os bons. Não é verdade?)
Eduarda Dionísio
Maio 2005