JON FOSSE – Sobre mim como dramaturgo

I
Sou um dramaturgo, mas para dizer a verdade, nunca o quis ser. Pelo contrário, eu não gostava de teatro e disse-o em várias ocasiões, por exemplo em entrevistas, que, de facto, na verdade eu odiava teatro, o teatro norueguês, pelo menos. Talvez tenha sido por isso que os directores artísticos me pediram para escrever para teatro, coisa que recusei fazer durante anos.
Eu fui, e sou, em primeiro e em último lugar, um escritor. Publiquei quase trinta livros, principalmente romances, mas também compilações de poemas e ensaios, e livros para crianças. Tenho ganho a vida como escritor livre. Mas há cinco anos atrás, tal como pode acontecer a alguém que não é pago de maneira regular, eu tinha muito pouco dinheiro e, mais uma vez, pediram-me uma peça de teatro, e, como precisava de dinheiro, disse que sim. Então, pela primeira vez, sentei-me a tentar escrever uma peça de teatro; antes de me sentar, decidi que ia escrever uma peça com poucas personagens, num único sítio, num único espaço temporal e que essa espécie de história que eu ia escrever seria tão intensa que as pessoas que a vissem durante uma hora teriam uma experiência intensa que, de alguma maneira, mudaria a sua visão da vida.
Não vou dizer mais nada em relação a estas aspirações, mas pelo menos as limitações que eu punha à minha escrita serviam-me bastante bem. Eu tenho, por natureza, sido sempre uma espécie de minimalista, e para mim o teatro é em si próprio uma espécie de arte minimalista, com muitos elementos estruturais que podem ser minimais: um espaço limitado, num tempo limitado, e por aí adiante. Para minha grande surpresa, quando me sentei pela primeira vez a escrever uma peça, descobri que gostava muito de escrever rubricas e diálogos que iam significar só aquilo, ou talvez, ainda mais do que diziam, ou talvez até o contrário do que diziam, sem ter de ser irónico. E quando escrevi a minha primeira peça, senti que tinha escrito um bom texto, mas não estava muito seguro se funcionaria no palco. As pessoas do teatro disseram-me que iria funcionar e, graças a Deus, a minha maneira de escrever funcionou de facto no palco. Às vezes, tenho a certeza, funciona tão bem que a qualidade da minha escrita aumenta, no mínimo, para o dobro. Claro, às vezes não funciona, mas, em todo o caso, aprendi que é possível as minhas peças funcionarem bem num palco. Ver a minha peça a funcionar no palco, pela primeira vez, foi uma experiência incrível; foi quase mágico ver as minhas palavras ganharem uma espécie de asas humanas, ver outras pessoas participarem na minha arte, e eu na deles. Também foi profundamente reconfortante, como ser humano; fez-me ter menos medo e ser menos neurótico e, de certa maneira, mais social.
Como devem compreender, já não odeio o teatro e até agora escrevi nove peças, oito delas foram encenadas por bons teatros noruegueses. A mais recente será produzida num futuro próximo. As minhas peças também já foram traduzidas para muitas línguas e produzidas em países diferentes, por exemplo, em Estocolmo, Budapeste, Copenhaga, Londres e Paris. Desde que comecei a escrever para o teatro não escrevi mais nenhum tipo de ficção, por isso pode parecer que o homem que odiava teatro, pelo menos por enquanto, começou a olhar para ele como um escritor que fundamentalmente escreve peças.

II
Agora vou tentar falar daquilo que me fascina mais ao escrever para o teatro.
Na Hungria, disseram-me, muitas vezes dizem que quando uma noite no teatro é boa, um anjo passa pelo palco, uma vez, duas vezes, várias vezes. E, para mim, esse momento é a essência do teatro: o teatro é o momento em que um anjo passa pelo palco. O que é que acontece nesses momentos? Claro que não sei, ninguém sabe, porque ou acontece ou não; numa noite acontece num dado momento da peça, noutra noite num outro momento.
Para mim, estes momentos intensos e cristalinos, apesar de inexplicáveis, são momentos de compreensão; são momentos em que as pessoas que estão presentes, os actores, o público, experimentam juntos algo que os faz compreender alguma coisa que até aí nunca tinham compreendido, pelo menos não como até aí o tinham compreendido. Mas esta compreensão não é unicamente intelectual; é uma espécie de compreensão emocional que, como eu disse, é principalmente inexplicável, pelo menos intelectualmente. Provavelmente não pode ser explicado, só pode ser mostrado, e compreendido através de emoções. Quando escrevo para o teatro, tento escrever peças que possam criar estes momentos intensos e cristalinos, muitas vezes são momentos de profunda angústia, mas também são momentos que, pela sua humanidade simplória, provocam o riso. Acho que se uma peça que eu escrevi é boa, as pessoas que a vêem, ou pelo menos algumas delas, deviam rir e chorar; por isso na minha opinião as minhas peças são tragicomédias típicas. Para mim é como se tivesse escrito peças muito “estreitas”, muito fechadas, na sua história, na sua atmosfera, no seu regionalismo, mas que paradoxalmente também são peças muito abertas, peças tão básicas que conseguem criar momentos em que as suas dinâmicas fechadas se abrem e rebentam, entre lágrimas, ou risos.
Quando escrevo uma peça, reduzo e concentro, e esta concentração redutiva possíbilita as súbitas explosões de uma espécie de sabedoria intensa indizível, ao mesmo tempo triste e engraçada. Para mim, o verdadeiro drama está aí, não na acção em si, o drama está na enorme tensão e intensidade entre pessoas que estão muito longe umas das outras e ao mesmo tempo profundamente juntas, não só socialmente, como também na compreensão que partilham. Estes momentos, esta presença incrível, está muito pouco, se é que está de todo, ligada aos temas principais do nosso tempo, aqueles passam nos meios de comunicação. O bom teatro pode ser sobre quase qualquer coisa; o importante não é o assunto sobre o que é, mas como o é; é uma questão de sensibilidade, musicalidade e pensamento, e não uma discussão sobre assuntos correntes. E acho que é por isso que os clássicos mantêm uma posição tão forte no teatro, uma posição mais forte que têm no mundo dos romances. Mas então porquê escrever para o teatro? Talvez porque todas as épocas produzem uma nova forma, ou uma variante dominante, de sensibilidade, uma nova forma de musicalidade e pensamento. Uma peça contemporânea, uma boa peça, deve de certa maneira mostrar uma sensibilidade, musicalidade e pensamento até aí nunca antes vistos, deve trazer para o mundo algo que até aí, de uma maneira estranha sempre lá estivera, mas ninguém tinha visto, por outras palavras, uma boa peça deve ter a sua própria voz, como se costuma dizer.
A arte, teatro e escrita teatral incluídos (se é arte, e não apenas mero entretenimento ou educação ou discussão política) deve por isso dizer aquilo que tem a dizer apenas pela sua forma; e falo da forma num sentido muito vasto, isto é, mais uma atitude do que um conceito. O que para os outros é conteúdo, para o artista é forma, como disse Nietzche. Ao dizer isto estou quase a falar como um teórico, que não sou. Sou um homem prático, e um escritor prático. E esta é outra razão pela qual gosto tanto de escrever para o teatro. O teatro é muito concreto, não se pode fazer batota como dramaturgo, tem de ser dizer as coisas certas, não nos podemos esconder atrás de uma qualquer abstracção, seja ela qual for, ideológica ou política. E como homem de mais alta abstracção, Friedrich Hegel, escreveu uma vez: Die Wahrheit ist immer Konkret. Por outras palavras, o teatro é a mais humana, e para mim, a mais intensa de todas as formas artísticas.

Upublisert , 1997, retomado em Ensaios Gnósticos
Tradução do inglês por Pedro Marques.

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