Madalena Victorino, coreógrafa, encenou Dias Felizes, peça que conta a história de uma imobilidade progressiva. Levou o texto para um “território estrangeiro”, o da dança, mas sem deixar de, rente ao texto, obedecer à tirania das didascálias. A conversa que se segue traça o retrato da experiência e inclui as intervenções de Isabel Muñoz Cardoso, a Winnie deste espectáculo que, na tradução de Jaime Salazar Sampaio, repetiu dia após dia as palavras que Glicínia Quartin, em 1968 e numa encenação de Artur Ramos, foi a primeira a dizer em português.
Como é que surge a ideia de encenar uma peça de teatro?
Madalena Victorino – Foi um convite do Jorge Silva Melo para trabalhar os Dias Felizes. Primeiro pensei que era uma ideia disparatada, que o Jorge não estava a ver bem quem eu era artisticamente. Mas ele disse-me que não: tendo em conta os meus trabalhos anteriores que ele tinha visto, o texto tratava um assunto que me dizia respeito e que eu seria capaz de olhar para o texto de uma forma interessante. Li o texto e achei que ele tinha razão. A história desta mulher é a história de todas as mulheres e portanto também a minha. É um texto muito difícil e ao mesmo tempo também muito fácil. Tinha nele contido tudo aquilo que eu deveria fazer. A forma que encontrei para me ligar ao texto foi simplesmente obedecer-lhe, entrar dentro dele e segui-lo: lê-lo e interpretá-lo da forma mais fiel que encontrasse. O respeito e o pudor que tenho em relação a Samuel Beckett traduziram-se numa estratégia de fidelidade e de escuta.
Não é contraditório dar a uma coreógrafa uma peça onde as personagens não se mexem?
MV – De uma forma primeira, sim. Mas a minha história como coreógrafa passa por um fascínio pelo movimento interior do corpo. Ou seja, a luz do corpo, que é o corpo que dança, veio sempre de uma zona escura, um território inacessível, que é o nosso interior – os músculos, os órgãos, o pensamento, o mistério do espírito, a sensibilidade – coisas que não sabemos medir e qualificar mas que sempre tive desejo de contactar. Nos meus trabalhos anteriores nunca se viu uma dança aberta e explícita. Por isso há muitos críticos que dizem que eu não chego sequer a ser uma coreógrafa: não trato a coreografia como um conjunto de passos ou de voltas ou de saltos, mas como uma espécie de terra de manifestações físicas que têm por origem uma dinâmica interna, como se de uma caixa negra se tratasse. Não sabes que ela existe, só te apoderas do seu conhecimento quando há uma tragédia, uma catástrofe, uma coisa explosiva, um acontecimento. Para mim o espectáculo era o acidente da minha própria vida: poder mostrar às pessoas os meus erros, as minhas dúvidas, os meus espantos, os meus encantamentos. Por isso talvez fizesse sentido eu agarrar neste texto.
Como se chega a partir de um texto a esse interior?
MV – Não no início, mas do meio para o fim, fiz com a Isabel um trabalho de índole expressionista, onde o que acabei de dizer se equacionou. Começámos pelos tais trajectos de fidelidade ao texto (a memorização e a sua oralidade) e depois pela colagem a esta oralidade de todas as indicações que o Beckett preconiza para cada frase, cada pausa, viragem de cabeça, sorriso. Este primeiro trabalho foi moroso, não só porque o texto é longo, difícil e está todo às costas de uma actriz, mas também porque havia um peso enorme das indicações cénicas que eram muito estritas, cerradas e num ritmo muito apertado e que eu, por opção, queria seguir com acuidade. Uma vez conseguido isso, ao fim de dois meses de trabalho, começou a aparecer como evidente a necessidade de iluminar aquilo. Era como se tivesse sido um exercício de duas técnicas que se colavam num mesmo corpo; depois de feita esta aglomeração havia que a preencher de significados, de luz, de intrigas…
…entre o itálico e o não itálico.
MV – Sim. Era isso que ia dar interesse ao texto.
E não estás a fugir à fidelidade?
MV – Talvez.
A terra da dança é o ar
Como espectadores, vemos dois Willies, a Winnie está suspensa, há uma pá…
MV – Mas isso veio depois. Esta é a estratégia que eu tenho para inteligentemente falar da minha relação com Beckett. É tudo verdade o que eu estou a dizer. Mas também é tudo mentira. Aquilo que fiz (não sei se depois, se antes) foi encontrar um ponto de apoio a que me pudesse agarrar. Como não sou genial, sou uma mulher como todas as outras, uma mulher da dança como todas as outras que têm de se agarrar a estruturas sólidas de pensamento e de manipulação dos materiais para poderem avançar e não desistir. A minha estratégia foi a da fidelidade – ler e cumprir. Mas paralelamente a isso (antes, durante e depois), incluí-me a mim própria nessa leitura fiel. Incluir-me a mim própria foi saber que sou de facto uma coreógrafa e que, por conseguinte, a terra onde a Winnie se enterra é a terra da dança. E a terra da dança é o ar. E o ar é transparente. E, por isso, as pernas vêem-se, a culpa não é minha. Isto não é para alterar nada ao Beckett, é consequência natural da terra que eu escolhi.
Isabel Muñoz Cardoso – Posso só dizer uma coisa? Irrita-me quando as pessoas me dizem que o espectáculo não é fiel porque a Winnie está suspensa. O Beckett diz que ela está enterrada, presa até à cintura. Apesar de as pernas se verem, alguma vez a Winnie deixa de estar presa? Em todas as outras versões desta peça que eu vi, em cassetes de vídeo, as actrizes mexem-se muito mais que eu. Porque estão apoiadas, e eu não estou. Mexem-se com muito mais à vontade. Eu estou muito mais presa do que elas, apesar de se verem as minhas pernas. Eu nem me lembro das minha pernas. Encontro-me com elas no espectáculo apenas quando elas me aparecem à frente.
MV – Surpreendes-te com elas. Mas se fores comparar as didascálias e a interpretação, esta é de um rigor enorme. Por isso a Isabel se sente tão presa.
IMC – Deu-nos muito trabalho.
MV – Para além da ideia de a terra da dança ser o ar (e por isso o corpo dela respira daquela maneira durante o segundo acto, ou seja, a terra são areias movediças que se movem perante uma vida que afinal o corpo dela tem, pressuposto que lanço logo ao princípio), há também um outro elemento: não tratar o movimento de uma forma exclusivamente realista. Puxo, rompo os movimentos para o universo da dança, para o traçado coreográfico. Faço tudo o que lá está e aplico posteriormente uma leitura coreográfica que é a minha. É aí que o trabalho pode ser “original”. As pessoas depois podem não gostar do estilo, da sensibilidade, da estética.
E no entanto há a resistência
Há os tais críticos que diziam que não eras coreógrafa. Mas assumes-te como coreógrafa. Depois de um hiato de 4 anos, a coreógrafa não coreógrafa vai encenar uma peça de teatro… O João Fiadeiro disse-nos que após a primeira semana de ensaios de À Espera de Godot decidiu não coreografar e assumidamente “encenar”, ou seja, não misturar a dança com o teatro. Não é a tua escolha…
MV – Não. Eu sei muito pouco sobre teatro. Portanto agarrei-me àquilo que melhor sabia. Aliás tive sempre uma relação selvática com o texto.
IMC – Os encenadores nunca sabem o texto da peça, às vezes corrigem o que dizemos bem. E a Madalena também não sabia. Inventava o texto depois de o ter ouvido durante cinco meses.
MV – Não tenho uma memória auditiva do texto. Não sei o rigor das palavras. Sei os ritmos, os conteúdos, sei quando a Isabel está certa ou não, quando me surpreende. Fui encenadora porque fui capaz de dar vida a um texto. Senti uma grande responsabilidade e quase temor por estar a trabalhar num território estrangeiro. Pensei que sendo a Isabel uma actriz muito experiente, ela iria encontrar o seu caminho no texto e que eu intuiria se estava bem ou não. Quando tivesse dúvidas perguntava ao Jorge.
A vantagem de trabalhar naquele espaço d’a Capital é que com as características do espaço se pode imaginar uma história de como aquilo aconteceu: parece ser a história de uma queda.
MV – É a história de uma queda, esta peça. O meu trabalho coreográfico sempre teve uma forte impregnação nos espaços. Sempre gostei de trabalhar em espaços com histórias densas: fábricas, hospitais, florestas, museus antiquados ou decadentes… Tudo o que fiz no palco foi menos feliz. Senti-me muito confortável naquele espaço d’a Capital. Andei a passear pelo edifício e encontrei muito rapidamente o meu sítio. Depois, de facto, pensei que era a história de uma queda e também de uma ascensão. É uma mulher que vive uma tragédia de afundamento, de perda de qualidades, de densificação da sua condição e, no entanto, é elegantíssima, extraordinária, nunca se deixa ir abaixo, tem sentido de humor, ironiza e isso é uma ascensão permanente. Nesse sentido acho que esta história se prende muito com a história de todas as mulheres. E digo mulheres porque não sou homem. Ela conta a história de muita gente: o afundamento da vida, o envelhecimento, a perda de coisas, e no entanto há a resistência, de uma militância muito elegante. Por isso quis criar uma Winnie muito bela, mesmo correndo o risco do cliché da bailarina do séc. XIX (coisa de que eu à partida poderia ter medo, considerando a minha história artistico-política: sou uma pessoa da dança experimental, não tenho nada a ver com o ballet clássico).
Essa imagem ocorre no gesto repetido de quando ela vai buscar coisas ao saco.
MV – A alegria com que ela vai, o círculo…
IMC – A Madalena o que trouxe a esta peça foi a meiguice, a meiguice e a calma da dança, que o teatro não tem. Por isso vê a Winnie daquela maneira tão alegre, com uma alegria que quase nenhuma outra encenação encontrou no texto de Beckett. Sobretudo no II Acto, onde muitas das encenações chegam a roçar a histeria da tristeza. Não há uma Winnie que seja feliz. Nada disso. Por isso defendo a fidelidade da Madalena. Porque o texto de Beckett não fala em tragédia. Além disso, a Madalena trouxe uma noção do espaço que poucos encenadores têm. E começou pelo que vê à frente e só depois meteu as ideias. Ou seja, começou por mim. Todos os movimentos começaram por mim. A Madalena esticava qualquer coisa que eu fizesse.
É o tal trabalho expressionista…
MV – É a valorização do indivíduo e do seu desenho físico. Um exemplo paradigmático é a questão do limar das unhas: pedi-lhe para experimentar de várias maneiras e, com as mãos e os braços dela que são tão longos, acabou por ficar um desenho, um cruzamento estranhíssimo. Foi ela que encontrou.
A vida que se passa no seu corpo
E os dois Willies?
MV – Pois, aquilo não é gratuito: sou uma coreógrafa, agora vou pôr dois homens a dançar – não é bem isso. É também isso, mas não é só isso [risos]. A peça está construída em dois eixos: cima-baixo e trás-frente (a língua de areia, o Willie que desaparece: é por isso que ele surge muitas vezes fragmentado na sua própria imagem). Os dois Willies no II acto existem por uma questão de equilíbrio. Há outra razão: se por um lado eu queria que a Winnie falasse da vida que se passa no seu corpo (uma vida diminuta, que aparece primeiro só no pescoço, depois nos ombros e no peito, depois no joelho, no pé e na mão e que aparece mais intensa quando ela “rebenta”), por outro lado, para o final ter aquela força em que os dois se olham, era importante que ela fosse devolvida à sua condição original de mulher tapada. Um problema que eu resolvi (tive imensas dúvidas) com o desdobramento [O segundo Willie volta a tapar Winnie com uma pá]. O que aparece ali é um Willie carrasco por impotência, por ausência, por apatia, mas que também tem um lado activo. Por isso aquilo fazia sentido. Aquela pá que tapa a campa (é uma campa, uma lágrima de areia) era forte dramaturgicamente, passando-lhe pelo pescoço, etc. e ela sempre a continuar como se nada fosse, com aquela poeirada toda… Há um momento em que ela diz: “Tudo tem os seus limites.” Mas mesmo assim continua.
Tinha imaginado inicialmente o segundo Willie de costas, um trabalho sobre a coluna nua e sobre o tapar a Winnie com as mãos. Mas rapidamente tive de anular essa ideia, porque se tornava uma coisa demasiado próxima e íntima. E então tive de vestir o Willie e dar-lhe a pá (que era a pá que lá estava, não fui buscá-la a lado nenhum – a tal densidade dos lugares, era um objecto que fazia parte da preparação do cenário e passa a ser incorporado no espectáculo).
Há aí uma leitura feminista da peça, a culpa ser do Willie, ser ele quem enterra.
MV – É isso que o Beckett conta, não sei se é feminista, nunca pensei nisso. Eu dou ao Willie uma beleza natural muito grande, não o trato mal. Está muito bonito, muito forte, em todos os momentos da sua presença. Numa atitude feminista mais explícita, podia construir uma personagem menos afável, menos simpática.
Mas há ali uma relação de causa-efeito…
IMC – Acho que não é o Willie que enterra a Winnie, é o amor que ela tem por ele e ele não liga nenhuma. Não são os Willies que fazem mal às Winnies: não fazem nada.
MV – E por não fazerem nada fazem mal. Muitas vezes, para os homens e para as mulheres, a incapacidade de comunicar leva a zonas de apatia, de abandono, de desalento, de desistência. E isso poderá desculpabilizar aquele que se demite, mas ele é tão culpado como aquele que age, no sentido violento do termo, para agredir. A ausência é tão violenta como o tiro.
Também se pode ver o Willie como figuração do tempo, há a imagem da areia, da ampulheta…
MV – Também, sim. Têm tempos completamente diferentes, os dois. A Winnie tem uma ideia quase cronometrada do tempo, ela quer controlar muito bem aquilo que vai do nascer do dia ao pôr do sol para poder existir equilibradamente. O cronometrar da ordem com que manipula os seus objectos, dos seus próprios afectos nos diálogos com o Willie, é completamente oposto ao esbanjar do tempo do Willie, que repousa, está. A maneira como folheia o jornal… Tempos muito diferentes que se encontram naquele momento final.
Uma energia à qual eu pertenço
O teatro do Beckett é muito cruel para os actores. As indicações cénicas são quase grilhões.
MV – Concordo. É o que a Isabel diz.
Mesmo no Godot, a peça mais livre, é muito opressivo. Eles não se podem ir embora porque estão à espera do Godot; querem ir, o Beckett é que não deixa. A Winnie enterrada, a cada palavra uma indicação cénica, é outra prisão. Parece que está dentro de uma experiência de laboratório, com a campainha, com alguém a controlar de muito longe.
MV – Disseram-me várias vezes que ver este trabalho é uma experiência muito bela e muito dolorosa.
Aquilo que salva é a cortina do teatro, que neste espectáculo é tão importante.
MV – Foi uma ideia do Jorge, que quando viu o trabalho todo disse que tinha de ter uma cortina vermelha. Achei tão estranho: como é que vamos pôr uma cortina de teatro num hangar? Mas tinha razão.
São as palmas no fim que salvam os actores.
IMC – É verdade. Mas às vezes as pessoas ficam imenso tempo sem bater palmas, dizem que não conseguem.
MV – É engraçado que é uma coisa colectiva. Há dias em que arrancam, rebentam imediatamente, em pé, assobiam. Outras vezes estão calados que nem ratos.
Viste os espectáculos todos os dias?
MV – Vi, durante as primeiras cinco semanas. Nas últimas, só uma vez por semana.
Como é a experiência de ver todos os dias?
MV – É fabulosa. É que o espectáculo também é meu, também lá estou. Os rapazes dos Artistas Unidos devem pensar que não regulo bem. Mas a coisa não é: já fiz, separei-me. Não, estou lá dentro, apetecia-me estar com ela, e achei que foi muito importante estar presente aquele tempo todo. Não sabia estar noutro sítio, naquela hora. No primeiro dia em que não fui fiquei perturbadíssima. Mas depois achei que era um sinal de ruptura que eu tinha de fazer.
IMC – Não é costume ver um encenador a seguir à estreia todos os dias no espectáculo. Até isso é gratificante para mim. Quer dizer: quem me atura cinco meses a trabalhar seis a oito horas por dia, e no fim daquilo estrear (porque a Madalena até ficou contente com o trabalho), ver todos os dias sem poder ajudar ou corrigir como nos ensaios e mesmo assim estar, é uma força que me vem dali…
MV – Nem é uma coisa maternal. As pessoas que me conhecem sabem que eu tomo bem conta das coisas. Talvez tenha a ver com a dança: há uma energia à qual eu pertenço. Apesar de eu não estar ali a fazer nada, ela é uma continuidade de mim, de alguma forma. O trabalho da Isabel é muito difícil, exige uma concentração enorme, durante um tempo enorme, uma série de coisas em que tem de estar empenhada.
IMC – Depois há a cena da vaidade: quem é o melhor público deste espectáculo, quem é que o conhece melhor? Ter ali a Madalena todos os dias é um aval, uma garantia, um carimbão enorme.
MV – Quem não gosta que eu vá é o Américo. “Ganda nóia, tás cá outra vez!”. Não percebe. IMC – Até pode haver quem pense que é um bocado de medo da Madalena, alguma falta de confiança na minha falta de confiança. Deixa-os pensar.
Entrevista de José Maria Vieira Mendes e Francisco Frazão
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