MAGGIO 43 de Davide Enia
com Davide Enia músicas em cena Giulio Barocchieri
Apoio Egeac e Instituto Italiano de Cultura
Espectáculo em língua italiana com legendagem
Teatro Taborda 12, 13 e 14 de Maio de 2005
O que quer dizer a noite se chega sempre o grito da sirene de alarme dos bombardeamentos nocturnos? O que quer dizer que já não aguento comer pão negro e por isso tento pescar as enguias? O que quer dizer a gente passar rente aos muros para não se deixar ver pela milícia fascista? O que quer dizer procurar a amukina no mercado ilegal? O que quer dizer que preciso de 1800 liras para os remédios e não sei onde as arranjar? O que quer dizer ver a carnificina de Palermo no dia 9 de Maio de 1943 e andar dentro dela, e já não há casas e já não há estradas e já não se consegue ver nada e tudo é só pó e fumo por todo o lado e o que se vê nem sequer se consegue reconhecer?
Este novo trabalho nasceu de uma série de entrevistas a pessoas que viveram esses dias de Maio de 1943 e saíram miraculosamente ilesas. Da narração delas e dos fragmentos de memória começa a elaboração dramatúrgica, que descompõe e entrelaça e reelabora estes testemunhos, para enfim os recompor numa única história. Eram tempos sombrios, em que era preciso a gente industriar-se para sobreviver. Eram tempos atrozes, em que a morte caía inesperada do céu, ou até da terra: os mercados ilegais que davam cabo das pessoas pelos preços subidos a níveis inimagináveis. Eram tempos doentios e mentirosos, tempos cínicos e batoteiros. São parecidos com os nossos.
… A evacuação, o pão negro, a milícia fascista, as bicicletas, o obscurecimento, Gino Bartali, a Petrolmax, o mercado ilegal, Ferruccio Tavaglini, a senha de alimentação, os bombardeamentos anglo-americanos, o dia 9 de maio, mil e quinhentos mortos em menos de vinte minutos, a cidade de Palermo esventrada e deixada cair num banho de sangue e ruínas…
Alguns testemunhos:
… Porque praticamente já não havia estradas, havia pedaços de casa, traves de madeira, pedras… às vezes, das ruínas, saíam cá para fora pedaços de braços, pernas, cabeças… eu e o meu irmão, que éramos miúdos, chamávamo-los “flores de carne”, não sei porquê… talvez para não ter demasiado medo, talvez porque fôssemos miúdos, talvez para esquecer que a nossa mãe tinha desaparecido sepultada por um bombardeamento debaixo do muro de uma vedação mesmo à nossa frente…
Mimmo C. (1936)
Nós sabíamos quando é que chegava a hora pelo ruído… ficávamos aterrorizados… que medo… ouvíamos um ruído surdo… TUTUTUUUU… baixinho… assim, como se não se quisessem deixar ouvir… TUTUTU… aviões que não se queriam deixar ouvir… que queriam ficar silenciosos mas que também queriam matar… e esse ruído que… que… eu ainda tenho dentro dos ouvidos…
Provvidenza S. (1928)
Muitas vezes os senhores americanos deitavam bombas e deitavam-nas ao acaso, não olhavam de todo para onde é que as estavam a deitar, deitavam-nas e pronto: uma: metade de um objectivo militar, porque se tratava de uma padaria militar, e as outras nove: em cima das pessoas que andavam na rua metidas nas vidas delas, e eles deitavam-lhes as bombas em cima… (…) No dia 9 de Maio apresentaram-se no céu de Palermo 450 bombardeiros americanos, todos juntinhos como um esquadrão TATATATATATA: filhos de uma grandesíssima puta fodida em todos os buracos… Nem um único objectivo militar atingiram!
Os pneus estragados dos carros, em vez de os deitar fora, cortávamo-los em fitas… depois perfilávamos essas fitas de pneus de autocarros em forma de solas, e colávamo-las aos sapatos. Para as pontas dos sapatos e os saltos, fabricávamos umas fitinhas de metal para que nem os saltos nem as pontas se estragassem, protegidos por aquelas folhinhas de metal. Portanto não só tínhamos os pneus na sola, como também as folhas de metal, e o barulho que fazíamos a andar… parecíamos todos o Fred Astaire TATATA’ TATATA’… e pronto, um gajo que se aproximasse, conseguíamos ouví-lo de três mil e duzentos quilómetros… Era assim que nos tentávamos safar.
Umberto D. (1924)
maio ’43
O Gioacchino vai visitar a sepultura do seu irmão e conta-lhe tudo que entretanto aconteceu na família deles. E o que aconteceu foi a Segunda Guerra Mundial, o desembarque dos americanos, o bombardeamento de Palermo do “maio ’43”. Isto é a História, mas para o Gioacchino a História torna-se a história dele próprio, do tio Cesare, do Umbertino, todos a industriar-se para sobreviver, evacuar da cidade, combater a fome, ir para o mercado ilegal, sem deixar que as milícias fascistas os apanhassem, dormir até dentro de um carrinho. Neste espectáculo não há o ritmo cativante, a alegria palpitante de Itália – Brasil 3 a 2, o grande êxito de Enia, mas há a comoção, a memória, a emoção de coisas que todos nós vivemos ainda que indirectamente, pelos contos dos nossos avós e dos nossos pais. Trata-se de outro caso de teatro de narração com consciência civil. E Enia é mesmo bom.
(…) O feliz autor-actor de Itália – Brasil 3 a 2 com a sua maravilhosa qualidade de narrador de histórias confirma a vitalidade da recente vaga teatral siciliana. O assunto é mais uma vez histórico, e a capacidade de recuperar com leveza um momento, ainda que trágico, leva-nos até à Palermo de 1943, aos negócios quotidianos para sobreviver com esperteza entre mercados ilegais, jogos de cartas, fome e bombardeamentos: entre o riso e o choro, graças às suas caretas e à sua bela língua, Enia recria para nós um momento histórico de passagem (como aquele em que vivemos) e a passagem de idade dele próprio. Digam-me lá se não é um milagre.
Franco Quadri – 7 de Julho de 2003