MECENAS MECENAS
Textos de Almeida Faria, José Maria Vieira Mendes, Miguel Castro Caldas, Jacinto Lucas Pires e Jorge Silva Melo. Com Andreia Bento, António Filipe, António Simão, Elsa Galvão, Joana Pupo, João Miguel Rodrigues, Jorge Silva Melo, Luis Godinho, Miguel Damião, Paulo Moura Lopes, Paulo Pinto, Sofia Correia e Sylvie Rocha. Colaboração especial José Pedro Serra Coordenação Jorge Silva Melo assistido por Ana Teresa Santos, Ana Lázaro e com a colaboração de Rita Lopes Alves e Pedro Domingos. Uma produção Há4, Artistas Unidos e Fundação Gulbenkian
Na Fundação Gulbenkian a 3 de Junho de 2007
Não, não há banquetes, nem bailes, nem paradas, nem champanhe a rodos, não, não são precisas toilettes nem maquilhagens, nem são precisos louvores, laudas, encomendas, não há cheques, nem sequer gorjetas, “os diamantes são para os subúrbios”, declarou Lee Miller, a musa do Sangue do Poeta de Cocteau, modelo de Man Ray e de Picasso, fotógrafa da Libertação e dos Campos de Concentração, Lady Penrose no fim da vida e inventora de receitas culinárias, “diamonds are for suburbs”.
São peças de teatro, são teatralizações, actores, actores e palavras. E escritores, gente bem vinda ao teatro.
Os tempos cruzam-se, há fantasmas, século XVII e a Corte do Rei Sol, Hollywood, as termas de Esterhazy, o fim do século XVIII, e as trombetas da liberdade a tocarem, mas também pode haver mulheres nuas, amores desencontrados, sutiãs e seduções – e fala-se de dinheiro, dinheiro, dinheiro e mais dinheiro. Andam uns à procura dele, outros a só quererem o amor, o poder, o louvor.
São divertimentos, uns em honra, outros troçando, saudando, imaginando as sempiternas relações desse casal para sempre dançando, o mecenas e o artista, condenados a suspeitarem um do outro, a amarem-se com ódio e admiração, unidos, desunidos na procura da vitória, vitória sempre contra a morte, pela beleza.
Imaginada beleza, criada beleza, coleccionada, possuída, fechada em cofres. São paródias, divertimentos, brincadeiras, frivolidades.
Sabendo, com Max Ophüls, que a “frivolidade só é frívola para aqueles que não são frívolos”.
VANITAS – um mistério de Almeida Faria
Na frialdade da noite, o soalho range no palacete da Avenue de Iéna, 51. E o narrador irá subir ao 3º andar onde encontra um “cavalheiro calvo de rosto redondo que o bigode e as grandes sobrancelhas sombreavam” (já estamos a ver quem é, não?). E Almeida Faria deixa falar o cavalheiro do 3ª andar, contar a vida, as noites, meditar (“Acontece que, para mim, as naturezas-mortas são naturezas-vivas.”), contar negócios, tragédias (a Arménia), protecções especiais (Saint-John Perse), artimanhas, obsessões (coleccionar). E dirá: “ …venerei dois únicos deuses, a arte e a natureza, a natureza tem uma face repelente: a bestialidade, a morte, o mau cheiro, que a arte supera mesmo quando trata do terror ou retrata a fealdade” A narrativa de Almeida Faria é um vórtice: vamos por ali adentro, num maelstrom delicadíssimo, hesitando, pé ante pé pelas escadas, 27 degraus bem contados, e quartos vazios, subimos andares, as certezas mudam a cada degrau.
Duas páginas – um inédito de José Maria Vieira Mendes
Duas festas. A primeira em Agosto de 1661, a segunda em Maio de 1664. Na primeira inaugura-se o palácio e jardins de Vaux-le-Vicomte, propriedade de Fouquet, superintendente das finanças do Rei Luís XIV, homem rico, mecenas responsável pela alimentação de uns quantos poetas e pintores do século XVII. Na segunda, inaugura-se o renovado palácio e jardins de Versailles, o novo local de residência do Rei e sua corte com maior pompa e mais gastos, porque o Rei-Sol não se pode deixar ficar para trás. O anfitrião da primeira festa foi aliás entretanto preso, acusado de apropriação indevida de fundos públicos por um monarca ciumento que se considerou ameaçado pelo excesso de riqueza do seu ministro. Portanto, para Versailles, o dobro dos convidados, uma semana inteira de festividades, mais comida, maiores jardins, etc.
Para ambas as festas são encomendadas peças completas a um tal de Escritor. Só que este, incapaz de satisfazer os mecenas, fica-se sempre pelo prólogo. Tem passado tempos difíceis: complicações domésticas, insónias, filhos doentes, o trabalho que se atrasa e chega o dia da estreia e aparece incompleto. Resta-lhe pouco tempo para encontrar a solução. Mas pode ser que a História, essa já escrita, se encarregue de o salvar.
LEVANTAR A MESA – um inédito de Miguel Castro Caldas
O levantamento de Haydn contra o mecenas corresponde ao levantamento dos músicos das cadeiras da orquestra durante a sinfonia dos Adeuses. Mas da orquestra os músicos vão para cozinha, como os criados que também vêm de levantar as mesas dos salões. Mas também é pela cozinha que o ladrão entra nas casas; é na cozinha que está a porta das traseiras por onde sai Balzac determinado a dominar a produção total da sua obra, sem intermediários; é na cozinha que Diaghilev e o seu Ballet Russe se refugia do provincianismo português; enfim, é na cozinha que Matisse pinta a sua Mesa de casa de jantar. E é no meio dos restos das refeições que os mecenas andam, sem saberem bem quando é que os restos são matéria-prima ou arte acabada.
O SUTIÃ DE JANE RUSSELL – um inédito de Jacinto Lucas Pires
Peça radiofónica em um acto tomando como assunto-pretexto a relação de mecenato especialíssimo entre a actriz Jane Russell e o milionário Howard Hughes. (Os actores como “objectos artísticos” e de desejo.)
Quatro vozes (e vários sons) numa sala de cinema. O Narrador, a Mulher, o Rapaz, o Coro. A Mulher senta-se junto do Rapaz no escuro. O Narrador fala do que acontece na sala, no ecrã, no mundo. É uma pequena sala onde passam cópias de 35mm restauradas. O filme desta semana é “The Outlaw”, protagonizado pela escandalosa Russell e com Hughes no dúbio papel de produtor/realizador. O Coro canta notícias de jornal, negando ou amplificando o que vai sucedendo.
A Mulher é bastante “experiente”. Sabe coisas engraçadas sobre o filme que aprendeu com os vários cinéfilos com quem esteve em sessões anteriores. Tenta seduzir o Rapaz. Este é tímido e terrivelmente bem-educado e, embora interessado naquela mulher fatal que parece saída do cinema, tenta defender-se o melhor que pode. O Narrador intromete-se e mistura tudo, atravessando tempos e espaços. As personagens da Mulher e do Rapaz vêem-se obrigadas a negociar com ele para conseguirem o que querem. O Coro garante que a história se passa num Portugal presente.
Quando a Mulher consegue (finalmente) seduzir o Rapaz, percebe-se que é uma “artista profissional” que, para a “performance” devida, exige uns belos de uns honorários. (Então não se compra a beleza/a arte/o amor?)
FALA DA CRIADA DOS NOAILLES QUE NO FIM DE CONTAS VAMOS DESCOBRIR CHAMAR-SE TAMBÉM SÉVERINE NUMA NOITE DO INVERNO de 1975, EM HYÈRES – uma paródia inconsequente de Jorge Silva Melo
Uma eterna criada evoca as ricas horas dos mecenas, os bailes loucos, a arte livre, o amor livre, o financiamento de L`Age D´Or de Luis Buñuel, tudo na altura em que se anuncia a vinda do realizador espanhol ao palacete de Hyères onde ainda vive o Conde de Noailles: estamos a meio dos anos 70 e os anos loucos já se foram, com as jóias da família. Muito livremente inspirado em O Meu Último Suspiro de Buñuel – e nas botinas de Diário de Uma Criada de Quarto, é claro.
E os interlúdios – pois não há festa sem cantigas nem cantiga sem canção nem canção sem versos
E durante toda a sessão haverá cançonetas sem música, com versos de pé quebrado, rimas tortas, piadas velhas, e por aí fora, etc. Etc.
Pois, como escreveu Tristan Tzara na sua opereta Mouchoir de Nuages que, em 1924, lhe encomendou o Conde e mais do que milionário Etienne de Beaumont,
“com esta chave pode abrir-se tudo, pois a chave é um ovo; o ovo é de Colombo, Colombo descobriu a América, a América tem plantações de dólares, os dólares dão o tom, o tom é o som de um violino, e o violino é um violino de Ingres.”
Meu caro Watson, é ou não é? Elementar, claro.
Mecenas não é o mesmo que coleccionador (mas pode ser), nem o mesmo que galerista (mas…), nem sinónimo de benemérito, esbanjador, banqueiro, filantropo, nem é o mesmo que curador, crítico, monomaníaco, traficante, aventureiro, hedonista, infractor, deslizador de impostos, esteta, financiador, parceiro, impulsionador, conde, marquês ou cavaliere, nem sempre é masoquista nem sádico, nem sempre é má pessoa, até pode não ser esperto, às vezes é linda a esposa, elegante e até modelo ou mesmo Miss Europa, mas, às vezes, às vezes… e os artistas, aqueles cujas unhas nem a pedra-pomes lava, unhas de tinta e sebentas notas, aqueles cuja alma, sempre cúpida, anda perdida, nem sempre serão pelintras, mal-educados, servis, mercenários, nem sempre são parvos, muitas vezes até são forretas, arruinados, invejosos, traficantes também, roubadores. E até os há ricos e pedantes, convencidos, há de tudo, perfumados ou com temível odor corporal.
Mas, às vezes, às vezes… todos estes termos convivem nos sumptuosos jantares onde uns pedem e outros talvez forneçam dinheiro, dinheiro, dinheiro.
E se os jantares já não forem como, invejosos, os imaginamos, ostras seguindo-se a ostras, em palacetes de Paris ou sobranceando o Canal Grande em Veneza?