Milton Lopes – San Diego : Lisboa-Glasgow-Edimburgo

Milton Lopes
Milton Lopes participou no workshop orientado por David Greig e Marisa Zanotti sobre o texto San Diego, organizado pelos Artistas Unidos, com o apoio do British Council (Outubro de 2002, Galeria da Mitra). Integrou depois o elenco do espectáculo estreado em Agosto de 2003 no Festival Internacional de Edimburgo, encenado por Greig e Zanotti e co-produzido (com o apoio dos Artistas Unidos) pelo Tron Theatre de Glasgow — onde decorreram os ensaios e onde o espectáculo foi apresentado em Outubro.

Há um ano
O primeiro contacto com o texto foi em Outubro passado através do convite dos Artistas Unidos para fazer um workshop com o David Greig e a Marisa Zanotti. Foram três ou quatro dias em que se fizeram leituras encenadas da peça. Eu gostei imenso do texto, achei-o estranho. É difícil estar a falar com um ano de distância, mas lembro-me de que na altura fiquei muito curioso: estar a fazer um workshop com um escritor estrangeiro, o que não é comum acontecer em Portugal, e ainda por cima com o escritor a encenar… A única vez que tinha trabalhado com um escritor tinha sido com o Jacinto Lucas Pires e não era um texto dele, era o Variações sobre os patos,do Mamet, que ele tinha traduzido e feito a dramaturgia.
Achei a minha personagem, o Daniel, muito interessante, e por acaso nesse ano fiz várias personagens parecidas com ele: que ficam muito tempo em palco, e comunicam através dessa presença, mas não dizem muita coisa. Tive essa experiência com o Delfim e depois na Cornucópia, com o Tiestes: ficava para aí uma hora em cena sem dizer nada, mas tinha de estar a actuar, a representar. Mais difícil ainda era o facto de o Daniel ter frases muito curtas e espaçadas, falava uma vez, que eram quase constatações, do estilo: “eu não vou fazer isso, eu vou fazer isto”; “eu sou assim, eu sou assado”… E tornava-se muito complicado dar intenções a esse tipo de frases.

Ao chegar à Escócia
A passagem para o inglês complica sempre: não é a tua língua materna e eles têm uma certa musicalidade, certas regras de fonética que nós não temos — as nossas palavras terminam quase todas em vogais e as deles quase todas em consoantes, “…t”, “…p”.
Quando fui fazer o trabalho a Glasgow, percebi com várias conversas que tive com eles que o que eles gostaram em mim no workshop cá foi a tal presença, mais do que saber ou não inglês. Só quando cheguei a Glasgow é que eles respiraram fundo e disseram: “Ah, ele sabe falar inglês”. Mas isso não punha em causa o trabalho, porque era um actor estrangeiro a fazer de estrangeiro. E os ingleses têm muito a coisa do “type-casting”, apesar de tentarem fugir disso: o Greig e a Zanotti tentam fazer um teatro diferente mas existe essa cultura… Lembro-me da primeira leitura da peça em Glasgow: conseguia-se ver as personagens, eu nunca tinha visto uma primeira leitura tão exacta…

O tempo
Na área da representação e se calhar em tudo o resto a Grã-Bretanha é um país muito competitivo, não há tempo a perder. O que acontece é que todos os actores vão para Londres, bons ou maus, porque sabem que é a terra das oportunidades, que é aí que as companhias vão à procura de actores. E tens uma variedade incrível por onde escolher. Para esta peça ficaram para aí quatro meses a fazer castings, viram 30, 40 actores para um papel; e então é mais fácil dizer: “não, não, não, olha, é este exactamente.” E depois tens de trabalhar com uma rapidez incrível, apanhar tudo muito depressa.
Acho que o tempo foi o que eu estranhei mais. Pensei: vamos ter cinco semanas para ensaiar isto, portanto vou trazer o texto todo decorado, muito bem sabidinho. Mas quando cheguei lá ninguém tinha o texto decorado, chegas à última semana e vês actores que ainda estão à procura do texto… ainda por cima um texto como o San Diego, em que estás a dizer uma frase, depois outro actor fala e tu repetes a tua… Mete muito medo chegar assim à ultima semana, mas correu bem.
Pensava que íamos passar os dias inteiros a ensaiar, mas nas duas primeiras semanas só ensaiava uma, duas horas por dia. Claro que comecei a ter medo, a ficar muito ansioso, e na última semana foi horrível. No fundo foram só quatro semanas de ensaios, a última foi para ensaios técnicos: luz e música. Estás habituado aqui a ter dois meses de ensaios e de repente só ensaias quatro semanas e uma hora por dia. E eles dizem: “Ok, isto é suficiente”, mas tu só disseste o teu monólogo três vezes e pensas: “Não chega, quero mais tempo”.
Estive a falar com os outros actores e eles dizem que isto não é muito costume mas, como era um elenco muito grande e havia vários espaços de acção, tinham necessidade de trabalhar com pequenos grupos de actores de cada vez. Faziam escalas: das 10 às 11 da manhã temos este grupo, das 11.15h às 12 outro, e assim até às 21h. E depois iam vendo: quem precisava de ensaiar mais era chamado no outro dia. Acho que as minhas cenas corriam bem, porque eles já tinham trabalhado imenso com os outros actores, o Callum Cuthbertson e o Paul Hickey, que sabiam exactamente o que eles queriam: portanto nós ensaiávamos mesmo muito pouco.

A divisão do trabalho
Nós, portugueses, falamos muito mais alto, eles quase sussurram. E tentam ser o menos mal-educados possível. Estou a pensar nisso agora, mas se calhar não querem estar a chamar a atenção de um actor à frente dos outros, só querem dar-lhe uma indicação e ele poderia entender de outra maneira. Também pode ser por causa da natureza da peça, por se passar em sítios diferentes, podem pensar: “Se eu for dizer isto a este actor, os outros não querem saber, não tem nada a ver com eles” — apesar de nos pedirem para irmos ver os ensaios dos outros grupos. Mas deve principalmente ter a ver com o facto de, no teatro deles as relações profissionais não se misturarem: eu faço o meu trabalho, tu fazes o teu.
Era tudo muito compartimentado: o teu espaço é este, o meu é aquele. Isso notava-se com os músicos e com as luzes. Quando foram os ensaios técnicos, era o músico que dizia: “Quando chegar esta parte, vocês entram, quando ouvirem este som, tiram as t-shirts.” E os actores ficavam calados. Em casos em que não concordava com alguma das indicações, tinha a sensação de que não podia dizer, por mais bem-educado que fosse. Às vezes saía-me, perguntava se não podia tentar de outra maneira, e eles até gostavam, e às vezes funcionava. Mas tinha um bocado a sensação de que eles pensavam: “Pronto, vem de um país diferente…”.
Se eu falasse antes de o outro actor acabar a frase, no fim do ensaio sentia necessidade de lhe pedir desculpa. Ainda por cima tinha a ver com o stress, porque tinha de ser tudo perfeitinho. Aqui também acontece, mas não é assim tão grave, lá é um contexto diferente: o ensaio está marcado até às 7 e às 7 em ponto acaba, por isso tens a necessidade de fazer o mínimo de enganos possível.

A concepção do espectáculo
Na última semana, todos os actores diziam que precisavam de sentir o espectáculo como um todo, não fui só eu. Na segunda semana fizemos um ensaio corrido, na terceira começaram a chamar-nos a todos e aí conseguíamos ver o que se estava a passar nas outras cenas. Mas só conseguimos sentir o espectáculo como um todo mesmo numa ante-estreia que era para ser com público e acabou por não ser.
Acho que a ideia da mesa em U foi só para tirar fotografias para a imprensa, com as diferentes personagens a fazerem diferentes quadros. Mesmo que quisessem não podiam usar essa ideia: tinham o cenógrafo que apresentou a sua proposta e pronto. Lá está, mais uma vez, quando decidem tem de ficar: se experimentam duas ou três vezes e não gostam, entra outra proposta logo a seguir, se não funciona, tenta-se outra coisa, é sempre a acelerar, em catadupa. Não dá tempo para deixar as ideias assentar, é muito de reacção.
E os actores têm de estar sempre a atirar-se, foi uma coisa de que eu gostei muito: não têm medo de arriscar e isso sentiu-se logo na primeira leitura. Nós aqui, como temos mais tempo, somos muito mais cautelosos, temos o medo dos colegas que estão a assistir, se calhar do encenador que não vai gostar…

Contra o naturalismo?
Para mim era muito natural fazer aquele tipo de espectáculo: por exemplo no David Mamet fizemos o espectáculo dentro de uma caixa com 14 buracos, só para 14 espectadores, cada um com uma lanterna; apesar de ser um texto muito naturalista, tentámos fazer o mais diferente possível, criar propostas, brincar com as coisas. Lá não, é mais o naturalismo, o realismo, preocupam-se com coisas que me apetecia dizer: “Mas isso não tem importância nenhuma, o mais giro é recriar.”
O actor mais velho, por exemplo, preocupava-se mais com os adereços dele (para se habituar, saber como é que tirava o relógio, como é que punha a camisa com a maneira digna de um piloto) do que com a relação com os outros actores. E era uma das pessoas que dizia que não percebia o texto… Aliás, acho que muitos actores não percebiam realmente, procuravam significados (“o que é que ele quer dizer com isto?”). Gostavam de fazer aquilo, adoravam os diálogos, diziam que dava um óptimo filme, mas… Até a cicatriz do Daniel: os outros actores não percebiam porque é que era uma risca azul, diziam “não, mas o ácido não faz esse tipo de cicatriz, pede ao cenógrafo para comprar a substância x, que se costuma usar nos filmes”. O cenógrafo dizia que queria só um traço, eu falei-lhe desta questão e ele então resolveu fazer uma grande mancha azul.
Os críticos que não gostaram faziam comentários do estilo: “Como é que numa peça cujo pano de fundo é San Diego não há ninguém a falar com sotaque americano?” Mas o próprio David Greig dizia que iam aparecer críticas dessas, que as pessoas se iam interrogar por que é que o actor que fazia de filho do piloto era negro, sendo o piloto branco. Ele já estava pronto para esse tipo de coisas, tentou fugir do realismo britânico: a minha personagem tinha pais adoptivos e eram os dois homens, mas não havia nenhuma relação homossexual.

O cinema e a estrela
Eu lembro-me que logo na primeira leitura disseram que a peça daria um bom filme. Mas a relação com o cinema consegue ver-se em toda a Grã-Bretanha: tentam competir com o cinema, chamar o máximo de público possível, até os cartazes são parecidos, levas com frases de chapa na cabeça para ficares meio atordoado e pensares “tenho de ir ver isto”. Por acaso isso não aconteceu com o San Diego, que tinha um dos cartazes mais bonitos: uma estrada com deserto ao lado e um avião desenhado, a aterrar ou a levantar voo.
O actor que fazia de David Greig, o Billy Boyd, é um mito lá da Escócia, é ele e o Ewan McGregor, é mesmo o orgulho da nação. Metia um bocado de medo estar assim com uma estrela de cinema, temos a mania de que eles não são iguais, mas ele estava com uma postura muito interessante: “Ok, eu faço filmes, mas isto é o meu trabalho, o que gosto de fazer, e aproveitei as férias para voltar à cidade natal e fazer uma peça de teatro com os meus amigos.” Uma vez perguntei-lhe como é que o Senhor dos Anéis tinha mudado a vida dele e ele disse que conheceu muitos actores, aquela maluqueira toda de Hollywood, foi a montes de festas, deram-lhe montes de roupa… mas depois olha ao espelho e continua a ver-se a si próprio, e em Glasgow mais ainda, quando vais beber uma cerveja com os teus amigos és tu.
Havia muita gente que dizia que o David Greig podia estar a ser um bocadinho egocêntrico ao chamar uma estrela de cinema para fazer dele próprio, mas como já tinha trabalhado com ele, achou que era a pessoa certa para o papel. Ainda por cima ele arriscava muito, cada ensaio fazia de maneira diferente.
Para a carreira em Glasgow, no Tron Theatre, em Outubro, estavam a pensar em pôr o David Greig a interpretar-se a si próprio. Acho que ele gostaria, mas não sei se vai acontecer, ficou a proposta no ar. Havia o problema de não ser actor e um certo medo de ter o nome espalhado por todo o programa… Mas estava-se só a especular, até porque vão ter de substituir outro actor (o piloto, o Tony Guilfoyle, tem outro trabalho), e então vão fazer uma série de castings. [Billy Boyd acabou por ser substituído por Forbes Masson e Guilfoyle por Michael Fenner.]

Duas cidades
A vida em Glasgow era calma: acordar às 7 da manhã, ensaiar às 9, depois do ensaio íamos sempre beber todos uma “pint”, às 6 da tarde, lá mesmo no Tron… O Neil Murray, o director artístico do Tron, dizia ironicamente que era no bar que gastávamos o salário que eles nos pagavam, era uma maneira de reaver o dinheiro… E depois de cada ensaio havia sempre alguém que ficava no bar a conversar sobre o que tinha sido feito.
Ia muitas vezes ao cinema, ao teatro não, porque todos os grupos se estavam a preparar para o Fringe Festival (havia só um Shakespeare no jardim botânico).
Em Edimburgo não tive tempo para nada, a única coisa que consegui ver foi A Gaivota, numa encenação do Peter Stein, e mesmo assim foi uma grande luta, tive de ir para lá mais cedo, foi uma grande corrida.

A presença e a palavra
Fui ver o espectáculo dos alunos de uma escola. Estava lá uma portuguesa e uma grega, e uma coisa que reparei é que conseguias perfeitamente distingui-las dos outros: não só pelo sotaque mas pela presença em palco: sentes o corpo delas a vir contra ti, consegues vê-las a três dimensões. Enquanto que nos ingleses sentes mais da cabeça para cima: dão muita importância ao texto, é mais racional. Connosco é: se estou em palco, estou todo, não é só a voz, é tentar sentir a energia toda e devolvê-la. Os ingleses parece que têm o centro de energia na cabeça, na testa, nos olhos. Acho que foi por causa disso que se falava da minha presença em palco, diziam-me “tens uma presença fortíssima”, e eu não percebia porquê, mas quando fui ver esse espectáculo percebi que era uma coisa cultural. Não é melhor nem pior, vais ver A Gaivota e tens actores com a Fiona Shaw e eles estão a falar, a falar, e não consegues desligar daquilo, enquanto que com um actor português, francês ou italiano se calhar é mais fácil desligares e voltares a ligar. Eles põem mais energia no discurso, parece que a palavra ganha forma, que vês objectos a sair da boca deles, é uma coisa muito poética e muito bonita de se ver.

A construção da personagem
O David Greig contou-me uma história: quando era miúdo e vivia na Nigéria, atirou realmente ácido para a cara de um outro, e acho que esse sentimento de culpa esteve com ele vários anos, se calhar até ao momento em que ele escreveu a peça. É uma maneira de poder exorcizar isso, teve necessidade de pedir desculpa através da personagem do Daniel que percorre os sonhos dele (é quase um pesadelo, ele perdia-se e encontrava uma pessoa que o esfaqueava e matava ali mesmo).
Foi a única coisa de que falámos sobre a personagem, para além das relações com o Pirandello e as Seis personagens à procura de autor: a personagem também se queria ver livre dele para continuar a sua vida, ainda por cima o David Greig escreveu-lhe uma vida que não lembra ao diabo…
Acho que há três personagens que evoluem na peça: a minha (o Daniel), a Laura e o David doente. Mesmo o piloto, que se mantém durante o espectáculo todo e faz a sua própria viagem, é uma coisa muito mais plana, mais calma, enquanto estas três têm altos e baixos, estás sempre expectante.
Tentei construir a personagem através de músicas: antes de ir para a Escócia comprei vários cd’s de África para tentar perceber a tristeza e a força do Daniel, a sua capacidade de sobrevivência. Encontrei isso e de cada vez que actuava tentava lembrar-me dessa música. E tentava colocar o centro de energia no peito: a personagem heróica, que apanhou aviões e comboios, percorreu não sei quantos mil quilómetros e sobreviveu sem arranhões. Depois, com a ajuda dos outros actores, principalmente do Callum e do Paul Hickey, um par cómico, tentava fazer o contraponto, desde o princípio.

Depoimento recolhido por FF em 27 de Setembro de 2003

{backbutton}