Apontamentos sobre o processo de fazer a versão portuguesa d’ A Fábrica de Nada
Miguel Castro Caldas
O Michaël Stoker é que conhece bem A Fábrica de Nada. Viu-a quando era pequeno e gostou muito. Marcou-o. De tal maneira que a seguir foi entrevistar a autora, a Judith Herzberg. Ficou amigo dela. Nos dias que correm ele já cresceu e passa muito por Lisboa porque está a fazer um mestrado sobre o Fernando Pessoa. O Jorge Silva Melo convidou-o para fazer a versão portuguesa e ele não aceitou. “Não sei português o suficiente”, terá ele dito num português impecável. Talvez as falhas do português pudessem ter sido o melhor da sua versão portuguesa d’ A Fábrica de Nada.
Fiquei então eu de fazer esse trabalho. O David Bracke traduziu. Eu fiquei com a tarefa de tornar o texto cantante, ou pelo menos cantável, na nossa língua. O Rui Rebelo foi fazendo a música à medida que ia chegando o texto da Judith, primeiro mudado para português pelo David e depois passado pela refinaria por mim. Quando o Rui tinha música cantada ainda era preciso ajustar sobras e defeitos.
Há um depoimento da Judith Herzberg no nº 10 desta revista. A certa altura ela diz assim:
E quando vou aos ensaios e os actores não dizem exactamente o que eu escrevi fico furiosa, não é só a mensagem que eu escrevo, é exactamente a maneira como eu escrevi que me interessa. Trabalho longamente para conseguir as frases, no movimento, no som e no sentido de uma frase, o meu som tem de ser preciso, é como o som do pingue-pongue, quero ouvi-lo. Posso saber como se está a jogar pingue-pongue mesmo sem ver o jogo.
Caramba, é exactamente assim que eu penso e fui eu que desmanchei isto tudo. É como quem sem querer deitou uma coisa muito complicada ao chão e agora tenta montar tudo de novo antes que alguém veja. Será que a Judith ouviu o pingue-pongue quando veio cá ver a versão portuguesa? Tarefa ingrata, esta.
Entro num ensaio de música e vejo o Rui Rebelo à conversa com o Paulo Curado, saxofone ao pescoço. Dizem assim: Onde está a música? Fazer música é fazer nada. Eis a diferença entre o nada-fazer e o fazer-nada. Aqueles operários recusaram-se a ficar sem trabalho, recusaram-se a nada fazer. O contrário do Bartleby, o escrivão, do Herman Melville, que fosse o que fosse preferia não o fazer. Aqueles operários preferem fazer nada, que é alguma coisa. Lembrei-me que em sânscrito o som nada significa som.
E então o que é não fazer nada? É juntar o nada-fazer ao fazer-nada? Não-fazer-nada. E esta é a outra questão da tradução desta peça. Nós, os falantes de português duplicamos a negativa, de tal maneira que a frase diz o contrário que queremos dizer. “Eu não faço nada” é dizer que “faço nada”. Levar a frase à letra é “eu faço algo”. Mas se nesta peça se leva à letra fazer nada em vez de cinzeiros, também se levará à letra a dupla negativa portuguesa. “Não vês nada, então vês o quê? Nada. Então vês nada” (cena 22). A conclusão é: “afinal roubar nada é roubar”(cena 23).
Roubar nada é por exemplo os administradores das fábricas dizerem que as fábricas são suas. Isto é roubar nada, o que ainda assim é roubar. Lembro-me da cena em que o administrador, depois de fechar a fábrica, fica sem saber o que dizer, sente-se envergonhado, “como se estivesse a conduzir um carro que não é meu sem autorização e tivesse um acidente muito grave que envolvesse muita gente”(cena 5). O carro aqui é a fábrica e o Michaël Stoker a propósito disto escreveu:
A palavra “zomaar” em Holandês, não só tem o sentido de “sem razão”, mas também “sem autorização”. […] Fechar uma fábrica é como causar um acidente com um carro conduzido sem autorização. (…] Isso implica de facto que um director da fábrica nunca tem autorização verdadeira de conduzir uma fábrica. Vemos isso também na cena da eleição do porta-voz (a pessoa que quer ser porta-voz não deve ser eleita).
Reunião: quando se começou a falar disto falava-se na fábrica do. Eu perguntei:
– Em neerlandês nada é masculino ou feminino?
– É neutro, disse o Michaël Stoker.
– E em português porque é que é masculino e não feminino? Isto era eu a cismar. O nado e a nada. Nada com artigo definido fica muito solene, quase que obriga a caixa alta do n, O Nada. Este nada da Judith não é nada solene. A Judith nem sequer tem e-mail (isto contou-me o Jorge Silva Melo). Escreve cartas palpáveis e escreve no envelope já fechado quando se lembra que faltava dizer qualquer coisa. E assim o remetente, quando recebe a carta pelas mãos do carteiro, começa a lê-la pelo fim. E depois há a poesia da Judith Herzberg, poemas como este, por exemplo, que traduzi livremente, a partir da tradução inglesa:
Nós e as Nossas Plantas
Nós e a nossas plantas somos as únicas
coincidências
nesta casa. O resto é tudo feito
para ser como é, se não por nós, então
por alguém que por um momento pensou
deve ser rectangular, ou de algodão.
Acerca disto não se pode fazer nada.
Se não houvesse tantas opções
podíamos lamber-nos uns aos outros naturalmente
como lambemos um envelope, as solas
sem cara dos pés e limarmos à gato
a pelugem do peito. Às vezes
surpreendo a tua cara a sorrir para alguém
através de densas teias de aranha de costas de cadeira
e orelhas e mãos segurando óculos.
Nesta coincidência em que me tornei a fazer a versão portuguesa d’ A Fábrica de Nada a partir da tradução de David Bracke decidi que a palavra nada não tinha de ser obrigatoriamente masculina, uma vez que na cabeça da Judith Herzberg é neutra. Tornar a palavra nada feminina. Mas nem sempre. Variar. O que é que acontece na nossa cabeça quando ouvimos dizer: a nada? Um exemplo: “Existem nadas redondas e planas e grandes”(cena 12).
Chego cinco minutos atrasado ao ensaio, no casão militar, atrás da feira da ladra. A porta da sala onde se ensaia está fechada. Que estranho, costuma estar aberta. Será que hoje não há ensaio? Começo a deambular pelo casão, salas enormes, janelas enormes, e nisto, numa sala das salas enormes, lá ao fundo, a um cantinho, três artistas unidos sentados a uma mesa. Pergunto daqui onde estou se sabem se hoje há ensaio. Fazem uns gestos, dizem umas coisas, mas eu não oiço bem e não percebo nada. No meio dos gestos havia um encolher de ombros. Voltei à porta fechada. Bati à porta. Nada. De repente, começa a música lá dentro, a maravilhosa abertura que o Rui esgalhou, imagino o Jorge Silva Melo a imbuir-se no dia. Os actores todos sentados nas cadeiras. Em que é que pensarão?
– Estou aqui?
– Estou aqui mas não estou aqui?
– Pingue-pongue?
–Tique taque tique teimoso?
Ninguém abre a porta. Vou-me embora triste. Começo a conceber quadros negros. Não me quiseram deixar entrar porque cheguei atrasado. Ou porque ontem disse alguma asneira. Ou fiz. O “tique taque tique teimoso” (cena 18) foi o Rui que inventou. Em vez de relógio teimoso.
Reunião: e o título? Fica a fábrica do? A fábrica da? Se calhar o melhor ainda é a fábrica de nada, não há indicação de género. O Jorge Silva Melo sugeriu a fábrica de nadas, porque nunca se produz no singular numa fábrica. Mas assim perde-se uma coisa: em “fábrica de nada”, parece que o nada está a qualificar a fábrica. É uma fábrica de nada, uma fabricazinha. Não achei despropositada esta sugestão. Mas se calhar, o Jorge é que tinha razão: fábrica de cinzeiros, fábrica de nadas. Ficou fábrica de nada.
Afinal a porta do ensaio tinha-se fechado com a corrente de ar. E a sala é tão grande que ninguém ouvia as minhas pancadas. “Para a próxima dá murros, pontapés, até que te abram a porta”, diz-me o João Meireles, “os nossos ensaios são sempre abertos, mas mesmo que não fossem, seriam-no sempre para ti”. Fiquei mais amigo ainda do que era do João Meireles.
Depois encontrei outro uso para o masculino: o nado. Aconteceu quando fui ver ao cancioneiro tradicional como é que se fazem quadras, como é que se rima, e encontrei uma maravilhosa, daquelas em que aparece o rouxinol a rimar com sol:
fui-me deitar à ribeira
para ver nadar (1) o sol.
Ai Jesus! Que venho doido
do cantar do rouxinol.
- nadar de nado, nascido?
Esta nota (1) é do Leite de Vasconcelos, a cismar: ver nadar o sol? O que é isto? Será nadar de nado? Fantástico. Isto é transformar o adjectivo nado em substantivo nado. Ele está a ver o nascer do sol. E realmente, ver o nascer do sol permite ver o seu reflexo na ribeira, a “nadar”. Esta quadra popular inventou um novo sentido para o verbo nadar.
Nadar: mover-se sobre a água; nascer.
E aqui no texto esta descoberta veio mesmo a calhar. O robot não sabia nadar e atiram-no ao rio: “não nado, não nado estou morto”(cena 25).
Outra extrapolação para nadar é o texto permitir inventar um novo verbo para traduzir a acção de não fazer nada em absoluto. Nadar.
O senhor quer portanto daqui para a frente até à reforma dedicar-se ao fazer-Nada a tempo inteiro, ao Nadar absoluto. Então não está aqui no sítio certo porque não nos dedicamos propositadamente a um nadar que ninguém fez ainda. Um nadar mais perfeito que perfeito. Aqui não se preguiça nem se faz greve!(cena 15)
Nadar: mover-se sobre a água; nascer; fazer nada em absoluto.
Em suma, para a versão portuguesa de A Fábrica de Nada posso dizer que não fiz nada, pelo contrário, fiz algo, mas não muito.
{backbutton}