NÃO SE BRINCA COM O AMOR de Alfred de Musset Tradução de Ana Campos Com Catarina Wallenstein, Elmano Sancho, Vânia Rodrigues, Américo Silva, António Simão, João Meireles, Pedro Carraca, Alexandra Viveiros, Joana Barros, Diogo Cão e Tiago Nogueira Cenário e figurinos Rita Lopes Alves Luz Pedro Domingos Assistência Andreia Bento e Joana Barros Encenação Jorge Silva Melo
Em co-produção com o Teatro Viriato
No Teatro Viriato (Viseu) a 16 e 17 de Setembro de 2011
No Teatro Municipal de Almada, de 22 de Setembro a 2 de Outubro de 2011
Na Oficina Municipal de Teatro (Coimbra), a 6 e 7 de Outubro de 2011
No Centro Cultural Vila Flor (Guimarães), a 14 de Outubro de 2011
No Teatro da Politécnica, de 19 Outubro a 19 de Novembro de 2011
No Centro Cultural e de Congressos das Caldas Rainha, a 25 e 26 Novembro de 2011
No Teatro Municipal da Guarda, a 27 Janeiro de 2012
No Centro Cultural do Cartaxo, a 28 de Janeiro de 2012
27 de Março (Dia Mundial do Teatro), transmissão na Antena Dois (Teatro Sem Fios)
1834. Musset tem vinte e quatro anos. Depois de uma febre tifóide de origem nervosa, depois das peripécias da aventura amorosa com George Sand, regressado de Veneza, irá publicar, três obras fundamentais; duas peças de teatro: Não se brinca com o amor e Lorenzaccio; e A Confissão de um filho do século, provavelmente inspirada em Santo Agostinho, ou, quem sabe, em Rousseau. Três obras primordiais que marcam uma busca inquieta de si-mesmo e dos outros: o que se passa com as nossas paixões, com os nossos sentimentos, com o amor, com a liberdade, com a verdade e com a mentira? Como é que chegámos a este ponto? Paradoxalmente, é no momento em que Musset se volta mais para si mesmo, para tentar reencontrar-se, e no meio da desordem dolorosa dos seus pensamentos que descobre uma realidade mais vasta, como se o seu horizonte, a sua paisagem mental se alargasse. Há aí como que o culminar da sua obra e da sua vida. Certas tendências dos seus escritos anteriores cristalizam-se até estabelecerem como que um efeito de ressonância entre o autor e a sua obra. Como o tema do adeus, que aqui regressa como um leitmotiv, uma sensação de que o autor não consegue libertar-se e sobre a qual fará mil variações: adeus à vida passada, à adolescência, à mulher amada, adeus ao amor, a si-mesmo, adeus.
MUSSET
Naquele ano [de 1833], para seu bem e para seu mal, Musset conhece uma verdadeira mulher, embora um pouco excessivamente mulher de letras: George Sand. Em certa medida, ela reunia as qualidades contraditórias que ele exigia de uma mulher, e do amor. É escusado repetir aqui a história dessa relação tão célebre, tão exposta. Genial e sensual, apaixonada e maternal, pura e impura, experiente e ingénua (mas com quanto fingimento!), George Sand podia durante algum tempo representar para Musset a reconciliação entre o sonho e a vida, entre ele e ele mesmo. Podia ao mesmo tempo arrancá-lo ao seu mundo interior e revelá-lo, restituí-lo a si. Não era George Sand, como mulher, o que Alfred de Musset era, como homem: a «expressão» dessa época, com as suas contradições? Ao mesmo tempo, análoga, profundamente, e diferente. E em certos aspectos mais viril que o seu amante…
Alfred de Musset escreveu On ne badine pas avec l’amour pouco antes de Lorenzaccio, depois do seu regresso de Itália, da sua doença, da sua primeira ruptura com George Sand.
Renunciava ao grande público? Esperava ser reconhecido como autor dramático pelo público restrito dos salões? Todavia, On ne badine pas avec l’amour não tem nada de pequena peça simples e fácil. Musset transforma o género. Transporta para ele o seu sentido do grande teatro, e a sua experiência. O «provérbio» torna-se uma comédia, misturada com uma tragédia amorosa sem que as duas se confundam, e que termina com três mortes: a de uma rapariga, a de dois corações.
Ninon, Ninette ou Déidamia eram «verdadeiras raparigas», que só existiam pelas suas ingenuidades, esboços um tanto pálidos. Camille, em On ne badine pas avec l’amour, é uma rapariga verdadeira, como a pode encontrar o noivo ou o sedutor possível. Teve uma educação religiosa que a deformou. Cultivaram-lhe o orgulho; ensinaram-lhe a ter medo dos homens, a ver impureza em todo o desejo amoroso. Perdican quer pegar-lhe na mão. «Não gosto de toques» exclama Camille. Linguagem clerical. Mas falaram-lhe do amor tal como ele é. Julga-se informada e até certo ponto está. O casamento e o amor tentam-na; precisamente, só vê neles uma «tentação». O sentido do ideal e o sentido do absoluto servem-lhe para recusar a vida que se lhe oferece.
Perdican, o seu primo, belo, jovem, apaixonado, espirituoso, deverá casar-se com ela. Ela recusa-o; mas – contradição! – queria também que ele a amasse, e partir deixando-o desesperado. Só quer deixar a vida depois de ter experimentado o seu poder.
Magoado, mais apaixonado por Camille do que a si mesmo confessa, Perdican procura uma distracção, uma vingança e outro amor. Faz a corte, diante de Camille, à linda Rosette, uma rapariga da aldeia. Encarna assim – diante de nós – um papel. Também ele usa uma máscara, e toma uma atitude meia verdadeira, meia fingida. Porque as declarações que faz a Rosette não são inteiramente falsas; ela agrada-lhe, é bonita, foram criados juntos; há recordações comuns que os enternecem. No entanto, Perdican aproxima-se de Rosette por despeito; e para ele ela não é senão um meio para se vingar e humilhar Camille.
Perdican e Camille perdem-se na batalha subtil entre os seus orgulhos feridos; esta seria apenas uma comédia um pouco amarga, se estes carrascos inconscientes (e carrascos de si mesmos!) não sacrificassem aos seus complicados jogos uma vítima: a doce, a inocente, a sincera e simples Rosette, a que não joga. A sua morte separa para sempre Perdican e Camille. Ela restitui ao amor a grandeza trágica: a autenticidade.
As personagens formam uma constelação móvel e organizada. Três grotescas, o Mestre Blazius e a Senhora Pluche, o preceptor e a preceptora, semelhantes (devotos, intriguistas) e diferentes (um, bêbado e pedante; a outra, seca e hipócrita); e, em destaque, acima deste par burlesco, na sua glória patriarcal e feudal igualmente burlesca, o Barão. Ao fundo, personagem episódica, ridícula também – em Musset, os padres são todos odiosos ou ridículos, e isso nunca foi perdoado ao seu teatro – o pároco da aldeia: o Mestre Bridaine.
Três apaixonados: Perdican, Camille, Rosette, esta dominando os outros dois, mais simples, mais verdadeira.
As relações entre estas personagens estabelecem-se de forma a arrancar a cada uma a sua máscara e o seu segredo, a obrigá-la a mostrar o seu verdadeiro rosto. A peça começa diante de nós por uma situação nova. Terminados os estudos, Perdican regressa à aldeia de que seu pai, o Barão, é o senhor (estamos no século XVIII, ou seja em plena «restauração» dos feudais, pormenor histórico importante). Camille fez na véspera dezoito anos; acaba de sair do convento e aspira a voltar para lá. Os dois primos reencontram-se; e há entre eles, como entre Perdican e Rosette, recordações e pontos comuns suficientes para que possam comunicar, portanto defrontar-se. Os três jovens são-nos apresentados, mas não como personalidades preexistentes, ou condições sociais, bem definidas. Eles começam a viver diante de nós. Assim, a situação em nada é exterior às «personagens» e às suas relações, à «intriga». Tudo se explica racionalmente, se justifica, se expõe em toda a transparência e lucidez. Mesmo e sobretudo as confusões do coração, ou as partes confusas do coração!
Para Camille, o seu primo Perdican é o mundo real, os homens como eles são, a vida que viu de longe com medo, e que a tenta, e de que quer fugir lutando contra si mesma. Para Perdican, a sua prima é também o mundo real, o casamento, a família, o fim da sua vida artificial de «jovem», o fim dos amores fáceis; para ele, a princípio um tanto cínico, é a possibilidade do amor verdadeiro. Finalmente, para os dois, cuja «individualidade» foi cultivada, deformada, tornada contraditória, Rosette representa a natureza.
Todas as contradições interiores ou exteriores vêm pois manifestar-se na tragédia amorosa. Aí se resumem, se simplificam, e aparecem dramaticamente, no plano da mais elevada consciência. A análise das relações entre o individual e o social em Musset, longe de nos confinar ao psicológico, ao moral, ou ao social – isoladamente – desvenda-nos pelo contrário a elaboração da obra. Como previsto. A partir do conteúdo, mostra a «tematização» e introduz-nos na forma e na técnica teatral específicas de Musset.
LEFÈVRE, Henri, Musset, Paris: L’Arche, 1970.