O AMOR DE FEDRA de Sarah Kane

O Amor de Fedra

O AMOR DE FEDRA (Phaedra´s Love) de Sarah Kane
Tradução Pedro Marques Com Miguel Borges, Teresa Sobral, Carla Galvão, Paulo Moura Lopes, António Filipe, Vítor Correia Pedro Marques, Sérgio Grilo, Hugo Samora e Sérgio Gomes Cenografia José Manuel Reis Figurinos Rita Lopes Alves  Luz Pedro Domingos Som Paulo Curado Montagem Luís Dias Encenação Jorge Silva Melo assistido por Paulo Moura Lopes e António Filipe
Uma co-produção Artistas Unidos / A&M / CCB

Estreia Sala de Ensaio do CCB, 10 de Março de 2004
Teatro Taborda, 25 de Março de 2004

O texto está publicado no volume TEATRO COMPLETO de Sarah Kane (Ed. Campo das Letras).

Hipólito vive fechado no quarto, vê televisão e deleita-se com os seus brinquedos caros. Está doente. Os outros não existem. É com o suicídio de Fedra que o príncipe percebe que não tem lugar no mundo: “Se tivesse havido mais momentos como este.” O AMOR DE FEDRA é uma recriação moderna e convulsiva do mito: e uma estranha peça de câmara…

FEDRA És difícil. Temperamental, cínico, amargo, gordo, decadente, mimado. Passas o dia na cama, vês televisão à noite, arrastas-te pela casa com o sono nos olhos e não tens um pensamento para ninguém. Sofres. Eu adoro-te.
HIPÓLITO Não é muito lógico.
FEDRA O amor não é lógico.
Sarah Kane, O AMOR DE FEDRA

Sobre a peça
Um ano e alguns meses depois de RUÍNAS (BLASTED), Sarah Kane escreve uma peça baseada no mito grego do amor de Fedra pelo seu enteado Hipólito: PHAEDRA’S LOVE, que estreia em Maio de 1996 no Gate Theatre com encenação da própria Sarah Kane.
“O Gate Theatre encomendou-me uma peça baseada num clássico e a minha primeira escolha foi WOYZECK, mas eles iam a fazer uma temporada inteira dedicada às peças de Büchner, por isso WOYZECK ficou de fora. Depois decidi rescrever BAAL de Brecht. Mas o Gate pensou em todos os problemas de direitos que poderíamos vir a ter; e nós não queríamos passar por isso. Finalmente, foi o Gate que se lembrou de fazer um clássico Romano ou Grego, e eu pensei, “Oh, eu sempre odiei essas peças todas. Acontece tudo fora de cena, qual é o interesse? Mas decidi ler uma e ver o que é que sucedia. Escolhi Séneca porque a Caryl Churchill escreveu uma versão de uma das peças dele (TIESTES), de que eu gostei muito. Li FEDRA e, surpreendentemente, interessou-me.”
O crítico do Telegraph Charles Spencer escreveu por ocasião da estreia: “Eurípides, Séneca e Racine contaram a história, nas versões deles as acções foram mantidas fora do palco. (…) Para esta peça não precisamos de um crítico de teatro: precisamos de um psiquiatra.” É claro que para um crítico de teatro seria difícil assistir a uma versão tão explícita do mito clássico, mas isso será também admitir que os críticos não conseguem ver nenhuma evolução nas convenções teatrais desde os gregos até aos nossos dias. Mas não será na história que Sarah Kane revelará as suas diferenças, porque ela ficará na mesma, um amor “incestuoso” entre uma madrasta e um filho, mas sim na construção das personagens. Hipólito não é um puritano misógino como em Séneca, nem será castigado por Afrodite como na peça de Eurípides. Em O AMOR DE FEDRA, Hipólito é um príncipe à imagem de Elvis Presley, levando uma vida de deboche, imóvel em frente à televisão, comendo rebuçados, hambúrgueres e manteiga de amendoim. A vida de Hipólito é apenas uma sucessão de eventos sem importância, ele passa o tempo à espera que alguma coisa aconteça de real. O passado é doloroso. Hipólito torna-se desta maneira numa personagem à semelhança de Ian em RUÍNAS (BLASTED), um homem que espera a morte e vê na morte o único acto realmente verdadeiro. Sarah Kane diz:
fedra_c“Hipólito, na versão original, é profundamente não atraente. Embora seja bonito, casto e puritano e odeie a humanidade. Para mim puritanismo não tem a ver com um estilo de vida, é uma atitude. Em vez de perseguir aquilo que normalmente é visto como pureza, o meu Hipólito persegue a honestidade, tanto física como moral – mesmo quando isso quer dizer que ele tem de se destruir a si próprio e a todos. A pureza do seu ódio para consigo próprio torna-o muito mais atraente como personagem do que o original virgem. (…) Eu sinto sempre simpatia por Hipólito, porque ele é sempre completa e absolutamente directo com toda a gente seja qual for o resultado para ele ou para os outros. Nunca nos poderemos equivocar com ele. Para mim, Hipólito é um ideal. E acho que essa é uma das coisas que eu tento fazer – ser completa e absolutamente compreendida. Se eu fosse como ele ficaria muito satisfeita comigo própria.”
Mas a peça não é sobre Hipólito, embora se ancore nele, a peça fala do desejo da rainha Fedra pelo seu enteado e sobre o desmantelamento de uma casa real perversa. Ao contrário das outras versões, Fedra não sente nenhuma repulsa pelo sentimento que possui, ela simplesmente não consegue resistir à “flecha que lhe arde no flanco”: “Acho que me vou estilhaçar. Quero-o tanto.” O seu amor é o centro da escrita. A peça começa com uma cena em que Hipólito se masturba sem uma centelha de prazer enquanto vê filmes e come hambúrgueres. O cenário obsessivo está montado. De seguida vemos a rainha a falar com o médico, genuinamente fedra_dpreocupada com o estilo de vida que Hipólito leva. Uma cena clássica em que nos é revelado o carácter do herói por terceiros. Em si, uma cena de tragédia. A frieza com que os dois falam de Hipólito revela uma incompreensão profunda pelo estado do príncipe. Na terceira cena Fedra revela o seu amor à filha. Nesta cena começa a cadeia de acontecimentos que a levam a revelar o mesmo a Hipólito e a consumar um acto de subserviência sexual que será depois entendido como violação. Fedra faz sexo oral a Hipólito e acusá-lo-á de violação. Com essa acção Fedra precipita a queda da família. Hipólito recebe essa notícia com uma estranha alegria. “Até que enfim vida.” Uma espécie de autodestruição que infecta também Baal. Ele é um herói e um mártir da verdade. Hipólito é preso e recebe a visita de um padre que lhe pede para negar a violação de que é acusado. A ambiguidade e lealdade moral do padre, a sua hipocrisia, só o tornam mais determinado para aceitar de bom grado o seu destino trágico: “Eu sei o que sou. E sempre serei. Mas tu. Tu pecas a saber que vais confessar. Depois és perdoado. E depois recomeças tudo outra vez. Como é que te atreves a troçar de um Deus tão poderoso? A não ser que realmente não acredites.” Hipólito não tem um estilo de vida, ele busca a verdade, o padre diz-lhe: “Se a verdade é o teu objectivo, morrerás.” O final sangrento pretende mesmo ser uma experiência desagradável. Na encenação de Sarah Kane do Gate Theatre, os actores das cenas finais saíam do meio do público para esventrar Hipólito. A cena era o mais realista possível. Os bocados de carne eram cuspidos para cima do público. No estertor da morte Hipólito tem o seu momento de lucidez: “Se tivesse havido mais momentos como este.” A sua última verdade.
Pedro Marques