O BALANÇO É O ESPECTÁCULO – Quatro conversas com François Berreur

François Berreur nasceu em 1959. Durante um estágio de práticas teatrais, em Besançon, conheceu Mireille Herbstmeyer e Jean-Luc Lagarce, com quem fundou o Thêatre de la Roulotte. Como actor, trabalha ainda no Centre Dramatique National de Besançon e no cinema. No Thêatre de la Roulotte, foi tendo outras funções, na produção e nas montagens técnicas. Sob a direcção de Jean-Luc Lagarce, participou em Vagues Souvenirs de l´Année de La Peste (1983), Histoire d´Amour (Repérages) (1983), Hollywood (1985), De Saxe-Roman (1985), Music-Hall (1989), Histoire d´Amour (Derniers Chapitres) (1991) – textos de Jean-Luc Lagarce, assim como de espectáculos a partir de Kafka, John Ford, Feydeau e Ionesco. Fundou, em 1992, com Jean-Luc Lagarce, a editora Les Solitaires Intempestifs. Em 1998, estreou-se na encenação com a adaptação da narrativa Le Voyage A La Haye de Jean-Luc Lagarce com o actor Hervé Pierre no único papel. Nos últimos anos tem-se dedicado exclusivamente à encenação e ao trabalho de editor. Uma conversa com François Berreur foi publicada na Revista Artistas Unidos nº 13. Depois disso, Berreur esteve em Lisboa onde dirigiu Music-Hall de Jean-Luc Lagarce com estreia na Sala de Ensaio do CCB onde permaneceu de 8 a 17 de Julho de 2005. A 3 de Setembro de 2005 o espectáculo foi apresentado no Teatro Municipal da Guarda e tudo indica que conseguiremos voltar a apresentá-lo em Lisboa em 2006.

MUSIC-HALL de Jean-Luc Lagarce, Tradução Alexandra Moreira da Silva (realizada no âmbito do Atelier Européen de Traduction), Encenação François Berreur assistido por Andreia Bento, Olinda Gil e Sérgio Grilo, Com Américo Silva, António Simão e Pedro Carraca, Cenografia José Manuel Reis, Figurinos Rita Lopes Alves, Luz Bérnard Guyollet, Coreografia Vítor Linhares, Maquilhagem Eva Silva Graça, Músicas Rui Rebelo e Ricardo Freitas. Uma produção Tá Safo, Artistas Unidos e CCB integrada no Festival de Almada de 2005, com o apoio do Instituto Franco Português e da AFAA / Conseil Régional de Franche-Comté.

Quatro conversas com François Berreur

CONVERSA 1
Parece que o Jean-Luc esteve aqui convosco um mês
30 de Abril 2005

Music- Hall já estava nos planos da Tá Safo e dos Artistas Unidos quando, em Janeiro de 2005, à mesa do restaurante Ver De Perto, na Rua da Costa do Castelo, e depois de ter assistido a uma representação de Tão Sóo Fim do Mundo, François Berreur manifestou interesse em ser ele a fazer a encenação e nos propôs a sua visão. Dissémos logo que sim e, a 12 de Fevereiro de 2005, Berreur voltou por três dias para analisar a peça com o Américo Silva (que já tínha pensado fazer o papel de A Rapariga), escolher os dois outros actores e começar a fazer a abordagem do texto. Foi nesta altura também que se constituiu a equipa. E se começou a rever a tradução.
Um segundo período preparatório decorreu entre 18 e 30 de Abril. Foram sobretudo reuniões com as equipas técnicas – músicos, figurinista e aderecista, maquilhadora e coreógrafo – para definir os objectivos de trabalho. E começaram as discussões com os actores para se lançarem as bases do espectáculo. A tradução ficou fixa neste período.
Esta primeira conversa faz o balanço desses dias passados numa sala de ensaios montada num dos barracões do Casão Militar, à Feira da Ladra, que o Exército nos tem cedido.

Andreia Bento . Que objectivos tinhas para estas duas semanas preparatórias?

François Berreur . Queria estruturar a peça. Relativamente aos actores, saberem de que trata a peça, qual é a história. E, como a peça não tem história, construir uma história do espectáculo. Depois, organizar o trabalho sobre a dança e o canto porque o Primeiro Boy é um bailarino e o Segundo cantor.

AB . Tiveste surpresas?

FB . Como não estava à espera de nada, só tive surpresas. A ideia era trabalhar com os actores. Não conheço suficientemente bem Portugal, mas a ideia era trabalhar sobre os sentidos da peça relacionando-os com Portugal ou com a condição do teatro em Portugal, ou com a condição do artista em Portugal. O interesse dos textos de teatro e deste é que Music-Hall é escrito pelo Jean-Luc Lagarce numa situação muito específica (a sua), ligada à sua vida, à sua situação de artista, de homem de teatro. O que é sempre surpreendente é como é que esta peça ecoa aqui. É isso que me interessa fazer: uma peça com vocês, com pessoas daqui. E não fazer uma peça como a que faríamos em França, por exemplo. Além do mais, julgo que esta peça se presta a isso porque há nela toda uma noção musical e, depois, há a língua. Aqui em Lisboa, o espectáculo será necessariamente diferente, os ritmos não são os mesmos, a história não é a mesma.

Pedro Carraca . Porque é que encenaste esta peça em diferentes lugares?

FB . Foram os acasos da vida. É a terceira vez que a enceno. A primeira foi porque tinha feito Le Voyage à la Haye (que conta a história de um encenador); a ideia foi fazer como que um sonho de teatro e, por isso, era o mesmo actor que fazia o papel, mas aparecia vestido de rapariga desde o início. Depois, havia a transformação de um dos boys que era, de facto, uma rapariga. Era uma espécie de sonho durante uma digressão. A segunda vez, fi-la no Peru. Fui lá fazer uma conferência e houve uma leitura com três actores. Uma das actrizes gostou muito do texto. A leitura resultou muito bem e decidimos que valia a pena encenar a peça. Demorou três anos a produzir mas fizemo-la.
Aqui, vim ver o Tão Só o Fim do Mundo e o Jorge Silva Melo tinha a ideia de se fazer a peça com o Américo, com vocês. Disse-lhe como a tinha encenado em França com o Hervé Pierre. O actor estava sempre vestido de rapariga e, no fim do espectáculo, dizia um pequeno texto de Le Bain. Era como se ele estivesse num camarim e ia-se despindo. Era curto, durava dois minutos, e eu pensei que era pena porque ficava muito bem. Se refizesse a encenação, esta ideia do camarim teria que aparecer antes: era preciso que ele se vestisse; e isso talvez fosse bastante coerente com a peça. Quando vim cá, contei isso ao Jorge. Parecia-me uma ideia muito melhor, até porque o Jorge me disse que seria o Américo a fazer o papel. E ele disse-me: anda encená-la aqui. Não é um projecto, não é uma proposta: é a vida. Se não tivessem encenado o Tão Só o Fim do Mundo, nunca teria vindo fazer o Music-Hall.

Olinda Gil . Encenaste o Music-Hall em francês, em espanhol e agora em português. Tu conheces muito bem o texto, e uma coisa a que eu assisti nos ensaios, era que às vezes dizias aos actores: “não percebo”.

FB . O que há de apaixonante em trabalhar numa língua que não se percebe bem (ou de que não se percebe nada) é justamente o facto de se estar mais atento ao que se passa no palco. Isto é, para além do sentido, o que se joga entre as personagens (para mim, a essência do teatro) é mais importante do que aquilo que dizem. Se perceberes bem o texto, deixas-te levar pelo sentido das palavras. Mas quando não tens o sentido das palavras, ficas mais atento ao trabalho do corpo, à relação entre os actores. Quando digo “não percebo” é porque é verdade: ouço um magma de palavras de que não percebo o sentido, mas é no palco que não se passa nada. E no fundo, quando há uma verdadeira intenção de um actor em relação a outro – e apesar de tudo, conheço bastante bem os sentidos do texto – aí percebo bem as relações entre as personagens. Quando digo “não percebo nada” é porque os actores estão a falar mas não estão a dizer nada – para além do texto, claro.
É isso que é interessante, ir além do sentido das palavras. Porque o que se faz com as palavras (como o estou a fazer agora) é tentar dizer alguma coisa aos outros. Passa-se isto com o teatro em geral, mas com Lagarce ainda mais, porque nos textos dele não há informações extraordinárias. Não são textos teóricos, as personagens não exprimem pensamentos complexos – exprimem pensamentos complexos mas em frases muito simples, porque tentam dizer alguma coisa. Há sempre uma tentativa de dizer alguma coisa ao outro, uma coisa muito importante. Há uma verdadeira tentativa de comunicação e quando isso acontece, mesmo que eu não a perceba, vejo que essa tentativa existe.

AB . Que dificuldades pode haver durante os ensaios?

FB . Não sei, não se pode saber isso. Até agora já trabalhámos bastante, não pensei que fizéssemos tanto. No ponto em que estamos, já temos muitas coisas e, no fundo, não temos nada. Mesmo se conservássemos tudo o que fizemos ao nível das marcações, isso não é nada em relação ao que tem de acontecer em palco, ao nível das intenções.
O interesse deste trabalho prévio é permitir fazer face a um certo número de problemas técnicos que poderiam dificultar as coisas. Hoje, por exemplo, vimos que não era possível trabalhar porque não sabiam o texto nem a dança. Só depois é que se espera que possamos fazer algo mais do que dizer o texto e dançar. Isto de dizer o texto e de dançar ao mesmo tempo… É preciso tempo para integrar as coisas, mesmo sendo os passos simples. Ainda não chegámos lá, mas se, há dez dias, nos dissessem “agora vamos em digressão”, não teria sido possível.
Quanto às dificuldades, não sei responder. Talvez alguém fique de mau humor, ou não perceba nada. O princípio é que, no fundo, não sei para onde isto vai. Tenho uma ideia geral para o espectáculo, mas que se definiu aqui. Proponho uma espécie de grelha, linhas gerais, uma estrutura, e é tudo. A partir daí, são os três actores que fazem a peça: o Pedro Carraca pode cantar de diferentes maneiras. E, se ele não conseguir cantar de diferentes maneiras, faz-se outra coisa. O António Simão dança. É em função da maneira como ele conseguir dançar que se farão umas coisas e não outras. O mesmo se passa com o Américo.
Por exemplo, a hipótese de ele nunca fazer de rapariga não me tinha ocorrido com muita clareza. Mas o que é interessante é que quanto menos ele faz de rapariga, mais ela lá está. Depois, ao nível do trabalho, é preciso que ele saiba quando é que passa essa feminilidade. O António e o Pedro terão também de sentir esse lado feminino. Saber quando é que há coisas que se dirigem ao Américo, mas criando-se ao mesmo tempo uma relação com uma mulher. Não há nenhum discurso sobre a homossexualidade ou de transformismo. Nada disso. Depois as pessoas vêem aquilo que quiserem. Para mim, a questão da sexualidade não é importante. No teatro de Lagarce, há sexualidade – há peças heterossexuais, outras homossexuais – mas a questão não é essa, o problema é o do desejo, do amor. Cada um de nós deve ver a peça com o que sente – voltamos sempre ao mesmo: à intimidade nas peças de Lagarce. Trata-se do que as pessoas sentem e de como isso toca a sua intimidade. Não tem nada a ver com a visão da sexualidade de Lagarce; estamo-nos completamente nas tintas. E acho que é uma peça que pode tocar as pessoas de cá.
Quando Lagarce escreveu a peça, tínhamos uma companhia, estávamos a começar e não tinha acontecido nada deste tipo de coisas que estão no Music-Hall, ou só muito pouco. Li um texto muito interessante em que ele dizia que tinha posto na peça – como se se tratasse de um pesadelo – tudo o que não funciona numa peça. São coisas que nunca trabalhei mas que gostaria que lá estivessem: dar a ver um pesadelo onde nada funciona, nunca. Não é uma peça realista. Conta a chegada de actores em digressão que vão representar nessa noite. É essa a história da peça, mas ao mesmo tempo, não é nada disto que está em causa. Trata-se de uma peça onde só há o que não funciona: nada funciona, nunca. E no último instante, quando a coisa funciona mais ou menos, não está lá ninguém para assistir; não vão representar. É uma permanente escalada até ao final. Mas aquilo de que a peça fala é da resistência: face à adversidade, face à vida, os recursos humanos são inesgotáveis. E acaba assim: “faço batota até aos limites da batotice”. Mas quando parece que estamos prestes a atingir esses limites, eles deslocam-se sempre para mais longe.

PC . Entre a França, o Peru e Portugal, que diferenças há na maneira de abordar o texto?

FB . É difícil de dizer porque como tenho mais experiência sobre a peça, construí uma relação mais simples com ela. É uma peça que não compreendo, é muito misteriosa. Diria que, entre a primeira vez que a trabalhei e agora, essas diferentes experiências me ajudam a estruturá-la. Já consigo ver melhor os desafios que se colocam às personagens. A encenação que fiz no Peru parece-me mais interessante que a do festival de Avignon. E penso que a daqui será ainda mais interessante, é mais rica e simples. Não se podem comparar, eu próprio não tenho as mesmas relações com os actores para responder aos desafios da peça, àquilo que ela é. O paradoxo é que tenho a impressão que dou mais liberdade aos actores da terceira encenação do que aos da primeira, as minhas propostas são mais abertas. As duas encenações mais parecidas são talvez as do Peru e esta, apesar me sentir agora mais livre e de não partirem do mesmo pressuposto.
Em relação aos actores, a diferença diz respeito sobretudo à técnica. Os do Peru tinham menos técnica, vocês parecem ter uma boa técnica. E esta é uma peça muito técnica, em especial o papel da Rapariga. O dos rapazes também o é, mas é menos evidente. Há também momentos em que se vê que se está a falar de uma coisa, se imita outra e, de seguida, se faz o comentário sobre o que se acabou de fazer. Ou seja, há vários níveis de representação, é técnica.
Mas o canto e a dança também estão ligados ao jogo dos actores. No Peru, por exemplo, o actor que fazia o Primeiro Boy e que era muito mais velho, dançava tudo, de imediato; tinha uma tradição de dança muito forte. Houve uma série de coisas que se basearam no facto de ele fazer tudo naturalmente. Aqui sei que forço mais, sou mais voluntarista em relação a esse lado da dança, porque fisicamente é mais difícil. Também no Peru em função das músicas, o actor propunha coisas diferentes, e o espectáculo faz-se dessa contribuição e da peça em si. Trata-se de um encontro entre os actores (vocês os três) e a peça. Ontem, por exemplo, estivemos a experimentar o final: se tu, Pedro, não cantasses como cantas, nem valia a pena tentar.
É porque és tu que o final é como é. Todas as variações que trazes, é porque tu és tu. Em relação à dança, a maneira de dançar interessa-me pouco. Trabalho com o que existe, com o que me é proposto. Depois, pode apurar-se: a qualidade intrínseca do actor não está desconectada do trabalho. Pode aprender-se o que não se sabe, é esse o princípio do teatro: poder-se representar inclusive o que não se sabe, trabalhando. Por um lado há o aspecto técnico (o lado da representação dos actores) e por outro temos aquilo que as pessoas são. Por exemplo, o facto de o Pedro ser mais pequeno que o António, acaba por ter significado. No fundo, não têm idades muito diferentes…

PC . Eu sou mais velho.

FB . És mais velho que ele? Na peça pareces mais novo, pareces mais novo porque és mais pequeno. Portanto há em ti um lado de criança. Ao aspecto teatral junta-se a personalidade. Este texto está muito ligado à personalidade de cada um. O desafio é humano. O trabalho que temos a fazer durante Junho será esse: transformar o espectáculo em qualquer coisa profundamente humana.

OG . É uma peça que poderás voltar a encenar?

FB . Tenho um projecto para a encenar com a Mireille Herbstmeyer. Quando eu trabalhava com o Jean-Luc na companhia, o grupo era constituído por mim, pelo Jean-Luc e pela Mireille. Nessa altura, disse-lhe que a encenaria com ela, daí a dez anos, aos sessenta anos. Há imensas coisas na peça que estão ligadas à minha vida; e agora que estou em Portugal descobri também na peça imensas coisas ligadas a este país. Já o pressentia, mas depois destes quinze dias, tenho a impressão de que foi uma peça escrita para os Artistas Unidos. Uma peça que conta a história dos Artistas Unidos e a do Jorge, de certo modo. A história de não termos sítio, de ensaiarmos, de fazermos outras coisas ao mesmo tempo… É inacreditável. Parece que a peça foi escrita por encomenda, ainda para mais dada a situação actual: vocês não terem um teatro no próximo ano, etc. É incrível! Agora vão ter de ir em digressão… Ou o facto de nunca terem feito tantas digressãos como este ano, como dizia o Jorge. Parece que o Jean-Luc esteve aqui convosco um mês e escreveu a peça para vocês.

OG . Já encenaste esta peça três vezes e continua a haver uma frescura…

PC . Por um lado tu conheces a peça muito bem, mas por outro vê-se que estás a descobri-la connosco. Isso dá-nos prazer e torna possível outro entendimento entre nós. É uma segurança e ao mesmo tempo uma liberdade.

FB . Nesta encenação há cenas que são feitas ao contrário daquilo que eu tinha feito das outras vezes. Isso é bom. O final, por exemplo, foi sempre muito diferente das três vezes.
Sobre a canção: respeitamos as palavras da canção, porque estão escritas assim, porque as consideramos parte do texto. Uma coisa importante é que não sabemos exactamente o que a Rapariga faz, mas faz um número de music-hall com uma canção que apesar de tudo não pertence bem ao music-hall. É uma canção de amor. Tenho vontade de trabalhar isso: eles dizem na canção o que não dizem noutro lado. Nunca dizem: “Ne dis pas que tu m’adores, / Embrasse-moi de temps en temps” como diz a Joséphine Baker na canção. É preciso que, quando os Boys dizem isto um ao outro, se apercebam do que estão a dizer, é preciso que o sentido da canção passe enquanto texto. Eles dizem todo o texto da canção, e é interessante pegar no primeiro grau do que se diz na canção.
A peça faz-se a três. É uma das dificuldades – os Boys têm menos texto, mas têm o mesmo tempo de cena, e ao mesmo nível. Não há um papel principal e dois papéis por trás, ou seja, a peça está escrita assim, mas o espectáculo não. É paradoxal, mas muitas vezes a Rapariga está mais avançada que os Boys, decora primeiro o texto… É desencorajante, não? É alucinante. Mas a verdade é que das outras duas vezes foi assim, havia bocados que eles nunca sabiam. É infernal, porque assim não avançamos. Vamos ver agora se à terceira acontece o mesmo, se é um dado objectivo…

AB . Qual é a primeira impressão que tens dos actores portugueses?

FB . São espectaculares! [risos]

AB . Volto a fazer-te a pergunta no fim dos trabalhos a ver se manténs essa opinião…

FB. A questão não é essa. O espectáculo vai ser o que tivermos feito em conjunto. Não tenho a pretensão de dizer: “fiz isto, mas eles não estavam à altura”. Se houver alguma coisa que não esteja bem trabalhada, tenho tanta responsabilidade como os actores. Não é a eles que cabe chegarem a algum lado, o caminho é feito em conjunto, em direcção a qualquer coisa que não sabemos o que é. O que resta é o prazer que tivemos – ou não – em trabalhar juntos, em suportarmo-nos. Em relação à tua pergunta, não tenho opinião, nem me cabe tê-la, fazer um juízo. Isso seria terrível.
Agora o que é que as pessoas vão perceber, isso preocupa-me. É preciso que isto conte qualquer coisa… O que me agrada é que seja divertido. Depois o público também tem que partilhar esse lado lúdico, mas o que está em jogo continua a ser o que não funciona. Os Artistas Unidos têm muitas dificuldades, o que não os impede de continuarem a fazer teatro. A lista dos vossos problemas é longa, mas isso não impede que esta noite haja espectáculo. É essa a questão do teatro. E se estivessem no Teatro Nacional era a mesma coisa: faziam uma outra lista, mas equivalente. As coisas em teatro, por definição, nunca funcionam.
Na peça fala-se de um lado anedótico do teatro, mas do ponto de vista metafísico, ela diz-nos que sabemos que não há ninguém. É um pouco como a ideia de não haver Deus. Não há nada, nós vivemos, morremos e não há nada – mas isso não nos impede de viver. Julgo que é uma peça que tem a ver com o À Espera de Godot: espera-se público, espera-se alguma coisa, embora se saiba que não há nada. E isso não nos impede de viver. Ou seja, a peça vai para além do teatro. Para as pessoas que vivem no teatro, a peça tem uma dimensão particular; mas mesmo as que não sabem nada de teatro, elas compreendem a peça, a peça há-de tocá-los, falar-lhes das suas dificuldades por não terem dinheiro para fazer o que gostavam de fazer, etc. É o que espero que se passe com os espectadores.

Seguiram-se 30 dias de trabalho, sem o encenador. Estavam programadas muitas digressões de espectáculos como A Festa de Spiro Scimone e Se o Mundo nãoFosse Assim de José Maria Vieira Mendes, que afastavam de Lisboa os actores Américo Silva e Pedro Carraca. Mas este mês de Maio serviu para a aprendizagem do texto, para tornar orgânico o trabalho coreográfico feito sob a orientação do Vítor Linhares (e tornar o António Simão num bailarino!), para arranjar os adereços e as propostas de figurinos e para fazer de raiz o vestido da Rapariga. Para transformarmos o Américo numa mulher foi necessário (é claro…) criar algumas curvas suplementares. Para isso seguimos o modelo criado na produção francesa para o actor Hervé Pierre. Mas optámos por uma Rapariga com com curvas ainda mais acentuadas.

CONVERSA 2
É o modo de ser de cada um que constrói a peça
11 de Junho de 2005

François Berreur regressou a 1 de Junho para o grande período de trabalho seguido até à estreia. Uma primeira parte continuou a decorrer entre o Casão Militar e o Teatro Taborda. Os ensaios ainda eram frequentemente interrompidos pelas digressões de A Festa e Se o Mundo não Fosse Assim e pela preparação de Conferência de Imprensa e Outras Aldrabices (onde participavam os três actores de Music-Hall) que estreou a 16 de Junho no Teatro Nacional.
O encenador quis sempre trabalhar com a presença dos três actores, porque defendia que o espectáculo e as personagens seriam construídos pelos três e pelas relações estabelecidas entre eles.
Esta conversa foi registada a meio da primeira parte deste período de trabalho. Até à chegada ao CCB o objectivo era desenvolver a ideia do espectáculo: trabalho dos actores e movimentação em cena, trabalho dos figurinos e adereços, trabalho sobre as músicas, trabalho sobre a maquilhagem, trabalho sobre a dança. Quando chegássemos ao CCB tudo deveria estar pronto, excepto a luz, que só seria criada na sala de apresentação do espectáculo. Objectivo que não conseguimos atingir, tendo alguns destes trabalhos ainda continuado no CCB.

António Simão . Como é que te sentes agora depois das duas semanas de Abril? Corresponde ao que estavas à espera?

FB . Não esperava muita coisa, portanto… É preciso trabalhar todos os dias, estamos numa fase intermédia, está a correr bem. E vocês, o que é que acham?

AS . Eu concordo, temos de trabalhar todos os dias. Quando há folgas de dois dias ou mais sente-se a diferença. Mas estou muito confiante porque tu dizes tudo. Pouco a pouco, os actores vão ficando mais seguros. É uma questão de treino, de fixar o que tu dizes, de saber os momentos todos. É cansativo, estamos sempre a parar, e eu não estava habituado a trabalhar desta maneira. Por acaso já tinha visto encenadores assim a interromper sempre, e quando sou eu a dirigir também é o que me apetece mais fazer, mas tenho medo, para não chatear os actores. Mas funciona, dá muita segurança.

FB . Mesmo quando ensaio em francês, eu exprimo-me mal. Claro que sei dizer as coisas, mas não há palavras para dizer, é essa a dificuldade. Acho que é mais difícil para vocês do que para mim. A dificuldade de comunicação é cansativa, mas não é um problema.

AS . Se fosse outra peça que nunca tivesses feito, também farias um trabalho prévio tão grande sobre o texto? Ou estarias mais à espera do que os actores iam fazer, e dirias menos coisas nos ensaios?

FB . Não acho que fale muito… O facto de já ter montado esta peça é melhor para mim porque a conheço, mas depois o interesse da peça – e do teatro – é que, ao serem vocês a representá-la, a peça é inventada de novo. Não há uma maneira única de a montar, nem uma maneira certa de a representar. O que é interessante é que nós, que estamos na sala, compreendemos coisas que vocês no palco não compreendem. O público é inteligente, vê tudo o que se tece. E é porque estão vocês os três juntos que isso dá relações humanas particulares. Para mim, é esse o trabalho: quais são essas relações particulares entre vocês. E o modo de ser de cada um de vocês é que constrói a peça, não é o texto.
Por exemplo, quando o Américo diz: “estou perdida”: eu insisti muito nisto, e se calhar até nem tenho razão. Se ele estiver realmente perdido no palco, o público sente-o, e isso quer dizer qualquer coisa. Primeiro ele está perdido, e depois o texto diz isso mesmo. Portanto trata-se mais de encontrar situações que provoquem uma necessidade de falar. E não é uma abstracção: é o haver uma determinada realidade no palco que faz com que se fale.
Quando na peça tu dizes, sobre o lugar onde estás: “não é fundamental”. Aquilo de que o público se tem de aperceber é que qualquer coisa de fundamental nesta peça, que existe no fundo de cada um uma ideia pessoal e forte: do teatro, da vida, do amor, do que se quiser. Como é que essa força existe em cada um.
O facto de eu parar muitas vezes é também para que vocês continuem a ser surpreendidos pelo texto. Para que o texto vos venha salvar: o texto pode dizer qualquer coisa que nós não conseguimos exprimir. O texto não exprime exactamente o que queremos dizer, é isso que é importante. Temos coisas a dizer, mas não conseguimos dizê-las.
Para voltarmos à questão do fundamental: o Segundo Boy diz “Sempre estive aqui e não é fundamental, / é-me indiferente, / não é que me esteja nas tintas, completamente, não / mas não é fundamental, à direita ou à esquerda.” Há coisas mais importantes do que isso.
Mas tu dizes: “Eu estou do lado direito da Rapariga […]. Como é que isto aconteceu?” É a intensidade desta pergunta. O importante é: porque é que estou na terra?, porque é que estou aqui? Não sei, como é que isto aconteceu, ah, foi assim e assado. É a energia desta questão interior que faz com o que o exterior chegue até nós. É o que torna a peça interessante.
Por exemplo, para mim, a pergunta seria: porque é que estou em Portugal? É uma verdadeira pergunta. Como é que isso aconteceu? Quem é que encontrei? Posso ainda ir mais longe e perguntar: porque é que trabalhei com o Jean-Luc Lagarce durante 15 anos? Porque o encontrei, porque estava num determinado lugar, mas essa não é a razão fundamental. Se eu contasse porquê, a energia que eu pusesse a contar é que diria um pouco porque é que trabalhei 15 anos com ele.
Da mesma maneira, esta pequena cena sobre se é à direita ou à esquerda, que estivemos a trabalhar esta tarde, é muito interessante por não parecer nada de especial. Ele diz que está neste lugar, pergunta-se porque é que está ali. Mais tarde percebemos que ele se vai embora. Quer dizer, ele está à espera de ficar, de ter um verdadeiro lugar. E sabemos também que, esta cena conta o falhanço da associação entre as três personagens, apesar de estarem juntas. A peça nunca diz porquê, não dá a resposta. Mas o público pode compreendê-la.

AS . O tempo que temos de ensaios é suficiente?

FB . Por agora é complicado, porque trabalhamos um dia, paramos dois, e perde-se muita coisa do que tínhamos feito. Mas também sei que vamos recuperar isso e ter mais tempo depois, não há problema. Acho que temos tempo para levar a cabo. Por agora, interrompo muitas vezes, e sinto que não é a melhor maneira de vos deixar representar. Mas ao mesmo tempo, essa interrupção permite que a representação funcione noutras cenas, o método é o mesmo. Para ti, Américo, a tua aproximação à peça é muito diferente da que fizeste no Tão Só o Fim do Mundo, em relação ao texto?

Américo Silva . Há parecenças, por ser o mesmo autor. Mas as rupturas que tem, na construção das frases e na mudança de assunto, são mais pronunciadas no Music-Hall do que no Tão Só o Fim do Mundo. Este texto é mais difícil de decorar. E dá-me a impressão que com o Music-Hall, um encenador pode pegar numa situação qualquer e pôr-lhe este texto, brincar com isso. Com a outra peça não me parece muito fácil fazer isso.

FB . O Tão Só o Fim do Mundo também permite muitas possibilidades. Para voltar ao trabalho que fizemos, queria dizer que não conheço o suficiente a vossa maneira de funcionar, mas o que é difícil e o que interessa é nunca ir para o resultado da representação, mesmo quando o encontrámos. É preciso, de cada vez, voltar a fazer o caminho de como dissemos uma coisa. Nunca se pode ir directamente ao efeito, isso nunca funciona. Pode ser que funcione, mas não é interessante. O que é fantástico e dá imenso gozo a representar é que quando há qualquer coisa que não acontece com uma frase, ela vai acontecer com a frase seguinte. Para encenar, não se pode ter uma maneira de dizer o texto. De cada vez são as pausas que dão a energia que faz dizer o texto.

Am.S . Isso também estava no Tão Só o Fim do Mundo, uma forma de dizer o texto em que a personagem está naquele momento a dizer aquelas palavras, mas não sabe o que vai dizer a seguir, nem daí a cinco minutos. É nisso que o Lagarce é bom, é por isso que tem tanta piada ouvir o texto.

FB . E isso obriga, ao nível da representação, a refazer o caminho da criação. Não chegar lá directamente, senão não há nada lá dentro.

AS . É um pouco o princípio das peças realistas…

FB . Não sei, esta peça não é de todo realista. O interesse é esse. Não é realista; só é verdadeira no palco de teatro, na representação. A realidade da peça não existe. É por isso que podemos fazer uma série de coisas não são naturais, mas que funcionam muito bem como coisas naturalistas no palco – como a cena que fizemos hoje, em que te sentas no banco e ele fala contigo, isso de olhares e te inclinares, porque vocês são assim.

Am.S . Mas no Tão Só o Fim do Mundo não é assim…

FB . É, porque as pessoas não falam assim na vida real, se falassem pareciam malucas. Isso não está muito trabalhado na encenação, mas no Tão Só o Fim do Mundo há muitos níveis de leitura, de interpelação do público, acontecimentos que se cruzam…

Am.S As duas peças funcionam de modo diferente, a estrutura é diferente. Aqui as pessoas que vão ver o espectáculo não sabem que é um número, depois vão percebendo.

FB . Sim, a estrutura do Music-Hall… Eu falava disso a propósito da tradução: é pena que em português se diga “ensaio”, porque em francês é “répétition”. A Rapariga tem razão quando diz que “repetem”. A peça tem várias camadas, e o que se faz na peça é repetir sempre a mesma coisa, mas nunca da mesma maneira. E com a encenação eu tentei acentuar esse aspecto de repetição: é sempre o mesmo momento que é repetido. A própria peça, é isso que ela conta. Tão Só o Fim do Mundo conta outra coisa. No Music-Hall o que se conta é: o que é que fazemos aqui, na vida. E é sempre a mesma coisa: comemos, levantamo-nos, de uma certa maneira. Um espectáculo é sempre o mesmo, e nunca é o mesmo.

Am.S . Esta peça foi escrita para ser representada por uma mulher. A partir do momento em que se fazem variações (com um homem, aqui com um homem que vai fazer um papel de mulher no fim, etc.) isso dá outras coisas à peça… Essa ideia já estava presente no Lagarce?

FB . Não sei, quando o Lagarce a encenou, terá pensado talvez num homem. O que até é lógico em teatro, porque é bastante recente serem mulheres a fazer os papéis de mulheres. Na tradição japonesa, ou no teatro de Shakespeare não havia mulheres. Parece inacreditável hoje em dia, mas não havia mulheres. Isso é interessante pelo lado do ritual: a distância que isso cria, um homem que faz o papel de uma mulher, o trabalho do falso. O papel aqui não é o papel de uma rapariga, é o papel da Rapariga.

AS . Porque é que dizes que a peça não é realista?

FB . Fala de uma coisa verdadeira, mas não é real, o modo como as pessoas são e vivem, tudo aquilo do banco… Não se trata de uma história de actores que existam. Se existirem são malucos, temos de os internar. A peça é um pesadelo, não é uma sessão de ensaios. Se eu começasse uma sessão de ensaios, não dizia: “se não houver porta, fazemos assim”, etc. A realidade não é assim. Aqui temos tudo o que não funciona no teatro.

AS . Isso do pesadelo, é uma boa ideia.

Am.S. Mas para esta personagem é realista.

FB . Eu usava antes a palavra “verdadeiro”. No início da peça, em relação à história da porta (que o palco pode não ter): acho que o último caso é o horror absoluto. Ao fim de cinco minutos tem que se estar no horror absoluto. E o que é que se passa depois do horror absoluto? A peça acaba dizendo: “faço batota até aos limites da batotice, / e são muito longínquos esses limites, / e nunca os esgoto”. Ou seja, quanto mais se faz batota, o que é incrível é que podemos ir sempre mais longe do que o cúmulo da batotice.
Mas ao mesmo tempo, nessa batota, eles dizem a verdade. Quando no CCB tu falares nos gozões, na majorete, em Freixo de Espada-à-Cinta, Trás-os-Montes, as pessoas de Lisboa vão rir, e pensar que vocês estão nos confins da província. Mas aqui também é verdade. E depois a história do banco, do documento que prove a resistência ao fogo, do vestido, tudo isso é verdadeiro.

CONVERSA 3
Sinto que ainda não temos o espectáculo
1 de Julho de 2005

Ainda trabalhámos mais duas semanas no Teatro Taborda. A 27 de Junho, entrámos na Sala de Ensaios do CCB e começámos a montagem de cenário e a criação da luz. Surpresa para o que estávamos habituados nos Artistas Unidos, a luz seria feita pelo Bérnard Guyollet e não pelo nosso Pedro Domingos. E, habituados ao processo rápido de trabalho do Pedro, estranhámos um método de criação mais prolongado no tempo de ensaios, ao longo de uma semana. Foi nesta fase do trabalho que começámos a fazer ensaios corridos às noites, ficando as tardes reservadas para aperfeiçoamento de pormenores técnicos ou de representação.
A 8 de Julho teríamos a prova final com a estreia e a reacção do público. Esta conversa aconteceu após a montagem técnica, faltando ainda a última semana de trabalho. Foi uma enorme diferença para os actores chegarem ao CCB onde encontraram o seu espaço (em oposição aos espaços alternativos onde fomos ensaiando). Foi também uma enorme diferença de ambiência entrar num palco com todos os meios técnicos e com o apoio e disponibilidade da equipa do CCB.

OG . François, depois de uma semana no CCB: montagem, primeiros ensaios, ensaios corridos, quais são as tuas impressões?

FB . Está a avançar, é normal: chegamos, pomos as coisas no lugar. Talvez hoje ou amanhã façamos um ensaio corrido correcto. Temos que nos adaptar à sala, que é mais pequena do que aquela onde ensaiámos. Coisas normais: ver os acessórios, a luz definitiva, etc. É um sítio agradável, apesar de haver coisas um pouco estranhas no método de trabalho, por exemplo as pessoas que fazem a música não vêm assistir aos ensaios…

Sérgio Grilo . A ideia do espectáculo é prévia à execução ou vai acontecendo durante a concepção?

FB . O que está previsto é a construção, a ideia geral. É bastante simples. Por exemplo, em relação à luz há uma ideia geral, de acordo com os vários actos: primeiro é de manhã quando eles chegam, de dia, depois é o fim da tarde, há a luz do dia que desaparece, depois fica de noite e então é o espectáculo. E quando os actores fazem o espectáculo, pomos ao mesmo tempo uma luz de espectáculo. O mesmo princípio vale para os actores. Há uma estrutura, e depois tento trabalhar com as propostas dos actores, o modo de as coisas evoluírem constrói-se com eles.

OG . Essa ideia geral manteve-se ao longo dos ensaios, ou houve alguma coisa que tenhas mudado?

FB . Radicalmente não mudou nada, porque apesar de tudo trata-se da peça. O que tentamos é mostrar o que a peça conta.

OG . Esta estadia em Portugal, a trabalhar nestas condições, trouxe ao de cima aspectos da peça que ainda não tivesses descoberto?

FB . O interesse é esse. A peça tem já um ponto de partida muito particular: o facto de os actores se vestirem completamente em cena, o facto de a rapariga ser um rapaz… E depois há aspectos da peça que me parece interessante explorar, mas ainda é cedo para saber se ficarão claros ou não para as pessoas. Todas as questões de que já falámos – o que é que estamos aqui a fazer, como é que somos, etc. Depois é uma coisa que nasce mais da sensibilidade do público, do discurso intelectual. A diferença hoje em dia existe. Não sei o que o público vai perceber ou sentir. Como se diz na peça, não há nada a perceber, não há história. São três pessoas que vivem uma tarde – ou toda uma vida.
A fase em que nós estamos é comum a toda a criação, à noite, quando vou para casa penso que nada funciona, mas ao mesmo tempo as coisas evoluem. O que sinto é que ainda não temos o espectáculo, que não está acabado. É o processo de criação.
O que é interessante é que a estrutura está no sítio, e temos até sexta-feira – uma semana – para fazermos ensaios corridos. Nesta semana, vai ser a diferença entre as coisas estarem no sítio e um texto muito claro na sua dramaturgia, que seja audível, os actores têm que ir bem, etc. Na próxima semana, o interessante será ir mais longe, aprofundar – não no sentido intelectual, complicado, mas aprofundar a sensibilidade, a leveza, a liberdade. Mais do que profundidade, trata-se de uma espessura: da peça, do texto, dos actores.

CONVERSA 4
Fazer ouvir uma escrita naquilo que ela tem de universal
11 de Julho de 2005

A 8 de Julho, às 21h00, na Sala de Ensaio do Centro Cultural de Belém, estreámos Music-Hall. Foi uma estreia nervosa por parte dos actores, mas a reacção dos espectadores ultrapassou as expectativas. O espectáculo emocionou quem o viu (não só na estreia,) de uma forma que foi bem descrita pelo Engenheiro Vítor Luciano, marido da actriz Glicínia Quartin – ‘Não se trata só do teatro e dos actores, mas das dificuldades, das esperanças, das desilusões e da procura de sobrevivência de todos os seres humanos, em todas as profissões’.
Esta última conversa foi registada 4 dias após a estreia: o balanço do espectáculo e deste processo de trabalho nem sempre fácil… tanto pelas condições logísticas, como pela dificuldade de entendimento numa língua diferente. Mas que deu um enorme prazer a todos os que estiveram envolvidos. Pormenor curioso: as aulas de português que o François começou a ter todos os dias de manhã a partir do dia 3 de Junho, o seu esforço por aprender a nossa língua e as suas tentativas em comunicar em português (por vezes, cómicas pelo sotaque – ‘uma espécie de peça’ tornada em ‘uma espéxi de pexa’; por vezes demoradas – quando comentava um ensaio em português era mais complicado e demorado o nosso entendimento do que ele queria dizer). E agora trocamos emails em que ele escreve em português com os erros equivalentes aos que nós damos em francês.

PC . Qual é então o balanço deste trabalho para ti?

FB .. O balanço é o espectáculo.

PC . Há dois balanços: um do espectáculo e outro de todo o trabalho para o espectáculo.

FB . Mas as coisas acabam por estar ligadas… Parece-me que o espectáculo só estava lá à terceira representação. Mas é assim, vamos ver se esta noite ainda lá está. Se estiver, está tudo bem, se não estiver, não sei. Ontem à noite fiquei contente, achei que esteve mais de acordo com o nosso trabalho, com o que eu tentei fazer convosco. No fundo é a ideia de que só o palco pode dar conta de um discurso mais complexo ou de uma coisa mais palpável. O espectáculo de ontem fazia sentido na relação com as vidas que estavam em palco, que se vêem e se sentem. O trabalho estava lá, em relação ao que fizemos juntos.
Fora isso, sobre o trabalho em si, o balanço é que correu bem. Apesar das dificuldades inerentes ao funcionamento dos Artistas Unidos: uma dificuldade de concentração nos projectos ou o cansaço do fim da temporada. Mas foi é bastante positivo.
Para mim não há grande diferença entre fazer um espectáculo aqui ou em França, isto quando se vêem as coisas em palco. Claro que há a língua, mas como vocês falam um pouco francês e como eu conheço melhor o texto é mais fácil. Para vocês é mais cansativo. Mas ao mesmo tempo acho que esta dificuldade de comunicação é interessante, acaba por obrigar a comunicar com uma linguagem teatral.

PC . É preciso falar de todas as coisas, para ter a certeza que nada se perde.

FB . Sim e não… É o que vamos ver esta noite. Porque no fim de contas o que é interessante é aquilo que não se consegue explicar. Podemos fazer todos os discursos que quisermos, mas o interesse é chegar a coisas inexplicáveis. Para mim é esse o interesse do teatro, e da escrita de Lagarce em particular.
O que me parece bem é que ontem à noite pela primeira vez ouvi a língua portuguesa naquilo que ela transmite, por oposição ao texto escrito. A ideia de terminar com um arranjo musical de fado agradava-me porque toda a peça contava isso, essa energia vital que coexiste com as piores dificuldades. Isso dá à peça uma dimensão universal muito mais interessante do que seria se nos ativéssemos só aos problemas dos actores, três pessoas que querem fazer teatro. Se o espectáculo de ontem for o espectáculo de todas as noites parece-me bem. Estou muito contente. O que me agrada mesmo é que fazemos ouvir uma escrita naquilo que ela tem de universal. As pessoas com quem falei, que tinham visto a estreia e viram ontem à noite, foram manifestamente tocadas pelo que se conta: tocadas por uma coisa íntima, não por uma mensagem colectiva sobre a dificuldade de fazer teatro.

PC . Falaste com pessoas do público depois do espectáculo?

FB . Senti que foram tocadas por qualquer coisa do texto, daquilo que percebem, daquilo de que se apercebem. Mais do que tocadas pela performance de um texto, dos actores ou de um encenador.

PC . Qual foi para ti a maior dificuldade em fazer este texto?

FB Foi a sobrecarga de trabalho dos actores, a falta de disponibilidade. Não conheço muito bem o que vocês fazem, mas não estavam manifestamente sempre disponíveis. E depois penso também que têm certos hábitos de trabalho que eu não conheço, mas que não são bem aqueles que eu desejaria, ou que me parecem lógicos. Mas não sei a que nível é que isso se passa, nem as exigências nem o percurso dos encenadores com que vocês trabalham… O que parece estranho é que demasiadas vezes vocês representam um pouco à defesa. Em vez de ensaiarem o caminho da criação, pegam em ritmos, numa maneira de representar ou de dizer. E é uma maneira de representar que é boa, mas no fim de contas o que se faz é reproduzir uma maneira de representar. O que houve de interessante ontem à noite é que de cada vez temos de refazer o caminho da criação.

PC . Senão perde-se o sentido primeiro das coisas.

FB . No fundo não se perde o sentido primeiro; não é tão fino, tão vivo, tão respirado, tão surpreendente, porque é sempre inventado de maneira diferente. Temos sempre a mesma coisa, mas de modo diferente.
Vocês têm tendência a repetir o resultado, e não a refazer o caminho para chegar ao resultado. Acho que isto resume bem os maiores defeitos de vocês os três, embora sejam diferentes.
Porque assim chegamos a um teatralidade contra a qual eu lutei muito, uma teatralidade estagnada. É preciso que se encontre de cada vez uma humanidade: que cada noite seja forçosamente igual, mas um pouco diferente.
De resto não tenho problemas por exemplo na encenação, vocês são muito rigorosos nas marcações, nas intenções. Mas na maneira de representar – e era com isso que eu não fiquei contente na estreia – sente-se a velocidade ou a força, mas estava um pouco parado tudo.
Acho que houve dificuldades com a sala. No Taborda ensaiava-se de uma certa forma, que precisa de um certo volume de voz. Acho que vocês confundem um pouco potência vocal, sonora e rítmica com energia. Pode-se pôr muita energia e falar baixinho, muito calmamente. Trata-se de conservar essa energia, que é necessária. Foi isso o mais difícil de acompanhar na vossa maneira de trabalhar, mais isso talvez seja por causa do meu preciosismo.

PC . Não acho que seja um problema só do Taborda, porque nós trabalhámos muito num sítio mais pequeno, n’A Capital. Mas sendo os ensaios no Taborda, habituámo-nos. Tens razão quando dizes que começamos a repetir o ensaio e não o sentido. Foi assim que a voz que vem do Taborda fica.

FB . É mais um problema de procedimento do que de potência.

PC . Mas para nós, apesar da dificuldade da língua, que é normal, e da dificuldade do método, porque estamos habituados a fazer as coisas mais corridas: trabalhamos em blocos e ao fim de cada bloco falamos com o encenador…

FB . Enquanto eu interrompo muito…

PC . Acho que ao mesmo tempo é bom, porque nos obriga a fazer de outra maneira. Não podemos ficar no lugar confortável que já conhecemos.

FB . Eu acho que faço mais um trabalho sobre cada momento – apesar de depois ser preciso que esses momentos se liguem uns com os outros – do que um trabalho cena a cena, que depois se juntem. Mas em França também é assim.

PC . O que é que vais fazer agora?

FB Volto para França, vou tratar das edições dos Solitaires Intempestifs, aprender português… Mas não tenho encenações novas este ano, só reposições. Por exemplo o Monsieur Armand, dito Garrincha. No Outono, vou preparar no uma série de coisas, à volta de Lagarce para 2007; começar a ensaiar e começamos a representar a partir de 2006. E tenho de arranjar tempo para vir ver a reposição deste espectáculo, se houver.

Notas de Andreia Bento

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