O IRRESPEITO PELOS LIMITES É NECESSÁRIO DIMÍTRIS DIMITRIÁDIS ENTREVISTADO POR DÍMITRA KONDILÁKI

O TEATRO POÉTICO

És uma das poucas pessoas das letras que continua a escrever para o teatro, apesar de o mundo do teatro se interessar tanto pela tua prosa como pelos teus textos poéticos. Mas eu penso que toda a tua obra se orienta para o teatro, quer se trate de prosa, de poesia ou mesmo da escolha dos textos que traduziste, porque traduziste não só algumas das mais importantes obras do repertório – clássicos gregos, Shakespeare – mas também os maiores dramaturgos contemporâneos – Genet, Koltès, etc. Como é que te defines melhor? Qual é, de facto, a identidade que te define melhor, dramaturgo, escritor ou tradutor?
Creio que a identidade que me define melhor, em primeiro lugar, é a da própria escrita, que se encontra na origem de tudo. Claro que o teatro é um género à parte. Espanta-me que os meus textos em prosa e os meus poemas suscitem o interesse das pessoas do teatro, ou melhor, que essas pessoas encontrem nesses textos, que não são teatro, uma teatralidade. Mas não consigo explicar isso. Não creio que, quando escrevo prosa ou poesia, funcione como escritor de teatro. Acredito na diferença de géneros. Dou uma grande importância ao termo “drama”, a esse acto teatral que diz respeito à natureza humana por um lado, e ao destino humano, por outro, e mesmo aos dois, em simultâneo. Para mim o teatro não é só uma “representação”, porque a representação é a repetição de alguma coisa que já se produziu, mas, sobretudo, uma “apresentação”, no sentido em que no palco ou para o palco são criados, são inventados, dramas que não é necessário conhecer ou reconhecer a partir de acontecimentos reais. Neste sentido, o teatro atrai-me muito porque posso reservar para os meus heróis os piores destinos. Fala-se muitas vezes de acidente trágico, de catástrofe trágica, mas não são acontecimentos trágicos, são acontecimentos reais.

Como é que se deve definir, a partir destas tuas palavras, a noção de trágico e, sobretudo, a de dramático?
Noções que não são idênticas e nem sequer coincidentes.

É certo. Não coincidem de facto.
O dramático, eu situá­lo ia na intriga, na acção, na acção cénica, e o trágico na natureza da concepção, da visão do mundo de alguém, do seu ponto de vista sobre… evitemos os palavrões… o Homem, a vida, o mundo, etc. Ou seja, o trágico é a natureza humana, a realidade humana, e o drama é a sua dramatização… e aqui não estou a ser tautológico… A dramatização do trágico.

Conheces a famosa teoria da crise do drama que Peter Szondi situa em finais do século XIX, relacionando-a com a crise do livre arbítrio e da decisão? Vista deste modo, a crise do drama resultaria de uma problematização do indivíduo, enquanto ser global, unidimensional, capaz de tomar decisões, de determinar o destino ou de determinar se a si mesmo.
Concordo com essa formulação de uma teoria do género… com certeza… Isso deve-se, sem dúvida, a razões históricas e, antes de mais, às duas guerras mundiais e ao que daí resultou, este desmoronar dos valores. De facto, esta concepção do Homem como ser que se autodetermina, seja pela sua ideologia, seja pela sua acção social, já não é válida. Creio que hoje em dia não existe nada disso, para mim, pelo menos. Mas nesse sentido, é preciso que o trágico regresse. Não creio que após a Segunda Guerra Mundial tenhamos tido o fim do trágico ou da tragédia: pelo contrário, o trágico regressa e deve regressar mais cruamente, no sentido em que se deve manifestar também noutras formas. Formas teatrais, mas não as que já conhecemos, o drama clássico, por exemplo. Um teatro moderno que nos fale de hoje, porque o meu ponto de vista fundamental é o de que o teatro é uma arte de hoje, do presente, e é pelo presente que se pode efectuar a mise en forme do drama, do drama humano.

Sim, o território onde se exprime, por excelência, o recuo do drama é justamente a forma. Na sua Teoria do Drama Moderno, Peter Szondi fala do reforço do monólogo e também das dimensões épica e lírica. Pergunto-me se não existe aí, precisamente, uma contradição em relação à tua concepção da forma do drama. Porque, contrariamente ao que pareces defender, através do teu teatro, a crise do drama está precisamente aí, associada ao reforço do monólogo.
O que eu designo por “teatro poético” não corresponde a essa concepção. Para mim, o teatro poético, e eu disse-o no início, é a invenção de situações teatrais, eu cinjo a poesia ao discurso. Pelo contrário, nós temos um teatro que não é dramático. O teatro pode ser lírico ou elegíaco, pode mesmo ser oratório, mas então não se trata de “drama” como eu o entendo. Para mim, o teatro poético é um teatro que cria acontecimentos cénicos.

Nesse teatro, a história e a intriga desempenham, então, um grande papel.
Sim, mas cada ideia, ou seja, cada invenção ou cada história, não tem a sua forma definitiva. É necessário que se encontre, de cada vez, a forma que lhes corresponde. E é aí que as coisas se complicam bastante, porque uma coisa é partir de uma história que já existe, mesmo que ela não tenha servido para teatro, e retrabalhá­ la para o teatro, onde há, naturalmente, liberdades e constrangimentos, e outra é partir do zero.

MORRO COMO PAÍS

Penso que o texto que te consagrou nas letras em geral e também no teatro, porque muita gente do teatro gostou dele, foi Morro como País. Muito se disse e muito se conjecturou sobre a identidade desse país que morre. Cada um de nós pode reconhecer nesse texto questões como o sentido de pertença, a noção de Pátria, o modo como a pátria se alimenta da carne dos seus filhos. Mas, apesar de se poder ver as coisas de um modo o mais universal possível, eu penso que esse texto reflecte a tua relação particular com a Grécia, não a Grécia como fonte de luz, como pátria do Mar Egeu, do amor, como a viu Elytis, por exemplo, mas a Grécia como fonte de enganos e de desilusão. Poder se á ler Morro como País como um testemunho de desilusão face à Grécia?
Sim, mas desilusão, o que é que isso quer dizer? Desilusão em relação ao que se espera receber ou em relação ao que já se recebeu? Qual das duas? Eu penso que ambas são desilusões e que, no caso presente, ambas são válidas. Sabes, esse texto está escrito de tal modo que eu não posso encontrar o seu verdadeiro… destino. Por outras palavras, o que é que se encontra nesse texto que corresponde ao que está fora dele? É isso o mais importante. Houve um momento em que me pertenceu, em que alguma coisa aconteceu que talvez tivesse acontecido outras vezes, a outras pessoas, em que o absolutamente pessoal coincidiu com o absolutamente geral. Do lado pessoal, tratava-se, de facto, de mim, mas, do ponto de vista do geral, eu não sei se essa coisa existia no momento em que estava a escrever o texto. Quando o escrevi, tudo indicava que a Grécia estava no bom caminho, ou seja, o texto não correspondia a esse momento histórico concreto. Mas isso também significa outra coisa: a escrita, o escrito, não descreve. Escrever não é descrever. É aqui que reside a diferença: geralmente, os textos descrevem, a escrita revela. Algo que ainda não é consciente, visível, que está latente, mas em que ninguém reparou, algo que a realidade nos sonega, para nos impedir de a reconhecer. O que se passou, e que é quase exemplar, no sentido em que nos podemos servir disso como exemplo, é que, no momento em que estava a escrever esse texto, ele falava de uma realidade que não estava visível, que era portanto… do futuro! Mas de um futuro que para a escrita era o presente. De facto, creio que esse texto marca o fim de uma época histórica. Alguém, numa conferência recente que tinha precisamente como tema Morro como País, fixou como ponto de partida A Mulher de Zakinthos, de Solomos, e como ponto de chegada Morro como País. Estabeleceu, portanto, dois limites. Mas eu, o primeiro limite, colocá­lo ia bem antes.

E seria quando?
Os inícios da civilização helénica. Por outras palavras, Morro como País é realmente a morte de um país, de uma História, de uma civilização. Eis a razão por que o país desaparece e perde mesmo o seu nome.

Na tua opinião, onde é que se situa essa morte?
Essa morte é o que se designa por morte natural, a de certas coisas. As coisas morrem a dado momento, quando já não têm mais força para viver. E, precisamente, a realidade que vivemos é o não reconhecimento dessa realidade.

De alguma coisa que acabou…
E de um modo definitivo. Vivemos na ilusão da continuidade, na ilusão de que as coisas vão avançar, quando, na realidade, vivemos na luz que vem de uma estrela morta. É isso que a escrita revela: a estrela morta. Mas não creio que, no momento em que escrevo, eu seja um audacioso ou um visionário, ou alguém que olha as coisas do alto ou sequer que se distancia. Eu estava tão mergulhado na realidade, fazia de tal modo parte dessa realidade, que a escrita desse texto foi incrivelmente dolorosa.

E lendo o texto, sente-se isso…
Não era uma dor, mas as dores, como se diz em relação ao parto…

É essa a razão pela qual, em meu entender, os artistas que interpretam esse texto se apaixonam sempre por ele: é um texto intensamente físico. Dir-se-ia que é o próprio corpo que sofre… produzindo-o.
Sim, mas isso não é suficiente. Porque há outros textos, igualmente físicos e perturbadores. Aí há qualquer coisa que se passa: é o esboço de uma tragédia. É essa a razão pela qual esse texto desperta tanto interesse nas pessoas do teatro. Poderia constituir o material dramático.

É, portanto, em Morro como País que se deve reconhecer a matriz da tua produção dramática posterior?
É evidente! De facto, assim é. Com certeza.

Visto que nos apercebemos de que grande parte das tuas peças são consagradas, de certa maneira, à desconstrução de figuras centrais da mitologia neo helénica. A começar pela de Constantino Paleológo…
Em O Princípio da Vida.

… até à figura de Odisseu, no teu texto mais recente. Todos estes mitos são recuperados.
Sim, como o platonismo em A Borda do Nó. Com o mito da caverna.

O que é que te faz regressar a esses temas?
Regresso a esses temas porque o desmontar desses mitos, o observá­los por trás, é, precisamente, a imagem do fim. Por outras palavras, estes mitos e tudo o que eles representam não tem nenhuma validade, nenhuma duração, a não ser que sejam observados do ponto de vista da não convenção, ou seja, do ponto de vista que a maior parte das pessoas não tem, ou recusa reconhecer. Resultado: a imagem que nós temos é ela própria destruída… Ou seja, quando a imagem da tomada de Constantinopla é invertida, ou quando é invertido o próprio platonismo nesse mito em que o próprio Platão se transforma em assassino, quando vem para impedir o crime, assistimos ao momento extremo desta realidade… em que a coisa não pode ir mais longe e revela a sua outra face.

O que estás a dizer faz-me muito lembrar o papel de uma das personagens centrais de Ibsen, Gregers Werle, em O Pato Selvagem. É exactamente o que ele faz: tentar revelar a verdade a todo o custo.
Sim, só que essa peça preconiza a manutenção e a defesa da mentira vital.

Exactamente, é aí que reside a diferença.
Sim, aí reside a diferença. De facto… Eu acredito exactamente no contrário. Creio que as mentiras são mortais e não vitais, e que a conservação das mentiras vitais no que diz respeito aos povos, às nacionalidades, aos grupos étnicos, às colectividades, etc., é desastrosa. Não permite a libertação das forças criativas que, no entanto, existem, mas que permanecem ocultas, oprimidas pela própria existência desses estereótipos.

É o que dizes muito claramente no teu ensaio Nós e os Gregos, em que defendes a ideia de que a possibilidade do renascimento, da renovação, deve passar pela problematização, pelo questionar dos adquiridos. Parece-me que toda a tua obra teatral ilustra, de certo modo, esta ideia.
Sim. Eu substituiria a mentira vital pelo irrespeito vital… Do mesmo modo que se fala em tradução, quando se fala de uma relação audaciosa com o original, esta audácia é reveladora, enquanto que o respeito não permite, digamos assim, penetrar nos meandros e dédalos do texto. Este irrespeito é necessário, é verdadeiramente vital. É o que eu designei, num dos meus textos – a que dei esse título – por “Violação Vital”. É isso precisamente, o facto de não se aceitar os limites e de se aceitar, pelo contrário, a violação dos limites, que leva ao desmoronamento dos estereótipos, de todos os clichés, de todos os ersatz que circulam por aí, em abundância. É só isso que pode possibilitar a libertação de forças terríveis.

A RELAÇÃO COM A CENA

Poderá o teatro transformar a realidade?
Não, não, de modo nenhum. O teatro não o pode fazer. Considera-se, geralmente, que ele pode mudar a maneira de pensar das pessoas, modificar… direcções e levá­las a outro sítio, mas o teatro não se transforma em realidade, não o pode fazer. É um mundo paralelo e deve permanecer assim. Eu acredito na separação entre o público e o palco, não na sua união. O público deve estar em frente do espectáculo, permanecer espectador e não desempenhar um papel activo.

De entre as encenações das tuas peças, as que se realizaram até ao momento, na Grécia e no estrangeiro, podes dizer me se há alguma que te pareça mais bem conseguida?
Creio que as duas primeiras representações, O Princípio da Vida, com encenação de Stéfanos Lazarídis e A Vertigem dos Animais antes do Abate, encenada por Yannis Huvardás, atingiram o nível de plenitude… Ambas… enquanto versões possíveis destas peças.

Enquanto versões autónomas…
Autónomas, sim. O que quer dizer que as peças podem ser encenadas de modos totalmente diferentes. Mas o modo como foram encenadas, com a escolha desta estética e desta linha, creio que foi exemplar para mim. Tanto uma como outra.

Há também, é claro – e é preciso dizê­lo – as encenações de Morro como País… bem como de Oblívio, encenado por Terzópulos…
Sim, é verdade.

Que vão beber nos monólogos de Oblívio e também na antologia poética Catálogos…
Sim.

Em Catálogo 12, se bem me lembro.
As escolhas que o encenador fez foram muito pessoais e eu dei lhe total liberdade. Para que ele fizesse exactamente o que queria, era necessário que eu o deixasse livre. Se eu tivesse intervindo, ele não teria podido exprimir-se. Ora é muito importante para mim que um encenador realize o seu desejo quando escolhe uma peça…

Há dez anos afirmaste: “Há quem ache que é interessante encenar os meus textos em prosa, mas eu não estou totalmente convencido, não estou de acordo.” Hoje, passados tantos anos, quando Oblívio e Morro como País foram encenados várias vezes, na Grécia e no estrangeiro, mudaste de opinião?
Eu mudo sempre de opinião…

Risos.
… e volto sempre à opinião precedente. Não, eu vi uma muito boa representação de Morro como País, em Florença, há dois anos. Foi muito comovente. Havia, em alternância, três mulheres que falavam para um microfone, dizendo as três partes da obra, mas o monólogo final da mulher era dito por um homem, atrás dos espectadores, que não se via, só se ouvia. Ouvia-se este monólogo dito por uma voz masculina, na penumbra, com os espectadores que olhavam para trás, para verem de onde vinha essa voz e se esse homem se ia mostrar… Foi muito bonito.

O que é que essa encenação tinha, para tu a achares tão bem adaptada ao texto?
Ouve, não era tanto a encenação. O texto era encenado um pouco como um oratório. Os actores estavam em pé, em estrados, não faziam quase nada e, ao fundo, ao centro, havia um violoncelo e também projectores, se bem me lembro, contra a parede do fundo, mas à frente, no fim de uma plataforma que avançava em direcção aos espectadores, havia microfones, e era aí que essas mulheres estavam e diziam o texto de cor.

Elas não representavam o texto.
Não. Não representavam. Mas viviam o texto. Foi assombroso. Muito comovente. Tudo em italiano e eu via o público… tão comovido pelo texto que se diria que não era uma tradução. O choque era directo. O texto chegava lhes sem intermediário.

O que, provavelmente, teve importância terá sido o lado estético da encenação, ou seja, o facto de o texto ser dado como texto.
Sim, sim, é verdade. Porque todas as falhas, tudo o que houve de mais ou menos inacabado noutras encenações eram as intervenções no texto… que não o deixavam chegar ao espectador. Creio… pode parecer pretensioso, mas… quando o texto é transmitido e ouvido, não há necessidade de mais nada.

O texto nu.
Completamente nu, sim. Nada a não ser as palavras.

TRADUÇÕES – TRADUTORES

Se se admitir que o teu teatro ainda não encontrou verdadeiramente o seu público na Grécia, ou que encontrou um certo público, que te segue sempre… mas passa sempre pelos teus textos em prosa e pelas tuas traduções, porque muita gente, de facto, conhece te pelas tuas traduções…
Ou então acham que eu só sou tradutor…

Ou então acham que tu és só tradutor… Há pessoas que não gostam do teu teatro, mas não há ninguém, tanto quanto eu saiba, que não goste das tuas traduções…
Alguns prefeririam que eu fosse só tradutor, mais nada.

Alguns prefeririam que fosses só tradutor! Mas, pelo contrário, tu não só és inspirado pelos grandes textos que traduziste, mas inspiras tu próprio outros tradutores. E penso que se, até ao momento, ainda não foste suficientemente feliz no plano cénico, já o és no plano da tradução das tuas obras, visto que tens tradutores de alto nível em numerosos países.
Isso é uma dádiva dos céus… Diria eu… bem, é uma maneira de dizer, mas o que eu quero dizer é que é uma grande dádiva, de facto.

E que impressão é que isso te causa? Esta manhã, estivemos a trabalhar sobre traduções paralelas dos teus últimos monólogos.
Odisseu Ítaca.

Odisseu Ítaca. E cada tradutor apresentou o seu ponto de vista, a sua interpretação.
Na sua própria língua…

Na sua própria língua… Qual foi a tua impressão? Quanto à passagem de uma língua para outra?
É uma impressão muito estranha. Vê­se que o que se escreveu pode passar integralmente para outra língua. Verifiquei-o hoje. Nesta passagem, pode-se – se se escolher bem as palavras, se se souber escolher as palavras adequadas – não se perder nada e, assim, é possível reencontrar o texto na outra língua, tão forte como no original. Foi isso que me impressionou. Eu já o sabia, porque também eu, quando traduzo, faço a mesma coisa. Mas quando se trata de um texto que eu escrevi e ao escrevê­lo não estava a pensar em mais nada a não ser em escrevê­lo – não estava a pensar na sua transposição para outras línguas – é como se eu deixasse de existir, como se os tradutores se tornassem nos meus próprios clones.

Risos.
Há, portanto, uma transmissão, uma transferência de personalidade.

O que é que o trabalho do tradutor exige antes de mais, face ao original? O que deve ele fazer? O que é que ele deve procurar?
O sentido! É a primeira e a derradeira coisa. Tudo o resto vem depois. Posso dizer te que não é suficiente conhecer se uma língua para traduzir nessa língua. Ou dessa língua. Não é preciso saber se inglês para traduzir Shakespeare. Dou-te o meu próprio exemplo. Porque aí pode se trabalhar com o dicionário, ou seja, procurar o que as palavras querem dizer. Mas isso é também o que deve fazer o tradutor que sabe inglês na perfeição. O verdadeiro trabalho de tradução começa depois: quando este levantar do véu do sentido toma a forma verbal que o texto poético exige, se se trata de uma obra poética, uma tragédia de Shakespeare, digamos…

A LITERATURA À MEDIDA DO UNIVERSO

Em A Vertigem dos Animais antes do Abate, escreves: “As coisas ultrapassam as palavras. Eu tenho pena delas, coitadas, sempre ultrapassadas, sempre a correr para chegar a tempo. Mas em vão, a distância que as separa das coisas nunca diminui.” Se as coisas ultrapassam as palavras, porque é que continuas a recorrer às palavras?
Para fazer coisas com elas. A realidade e as coisas são mais numerosas e mais ricas do que as palavras. Porque as palavras têm sempre necessidade de serem mais numerosas, de nomear mais coisas ainda, de chegar a cobrir todas as coisas. Mas não podem. Há sempre algo que falta. Daí esta tentativa incessante, não só de usar as palavras que nós conhecemos, mas de criar palavras, porque o mecanismo de formação das palavras implica a produção de novas palavras.

Nesse sentido, por analogia com o que dizes, tenho a sensação de que as obras, a realidade tangível das obras enquanto realidades literárias acabadas, peças de teatro, poemas, traduções, conta menos para ti do que esta necessidade irreprimível de escrever mais e mais, de avançar mais e mais, como se te esforçasses por atingir uma identificação incessantemente adiada entre a vida e a literatura… E creio que A Humanoidade, o romance que tens estado a escrever nestes últimos anos – foram recentemente publicados dois volumes, nas Edições Kastaniotis, o primeiro e o sétimo serve precisamente de veículo…para esta identificação entre a vida e a literatura…
Aí passas a outra coisa, visto que introduzes o romance…

Sim, que cobre tudo. A tradução, inclusivamente.
Sim, de acordo. Mas o romance, e mais precisamente este projecto, esta empresa literária, esforça-se, não por substituir o mundo, mas por criar um mundo análogo ao mundo real, análogo no sentido das suas dimensões. Por outras palavras, se postularmos que a realidade, o mundo que nos rodeia, é infinito e inesgotável, o mesmo se passa com esta obra intitulada A Humanoidade: não tem fim. A concepção desta obra é tal que, pela sua própria natureza, não pode nunca acabar. É por isso que compreende um subtítulo – Um Infindável Milénio. Há aí duas noções contraditórias, “infindável” e “milénio”: por um lado, há “infindável” no sentido de “inacabado”, que é simultaneamente o imperfeito, mas também o inacabável… eu não sei se esta palavra existe, mas eu utilizo a. Mas, por outro lado, há “milénio”, o que implica que um dia as coisas acabarão, que terão um limite, como o termo “milenarismo” enuncia… Há, portanto, o que é imperfeito e o que não acaba nunca, ambos em simultâneo. Humanoidade é esta coisa, estes mil livros que alguém tem de escrever para completar a tarefa que se lhe atribuiu. Não se pode encontrar homem capaz de o fazer, porque o ser humano é limitado, é o contrário da Humanoidade, o que não tem fim. O homem tem limites temporais, a Humanoidade é o universo.

Não é, justamente, nisso que consiste a tentativa daquele a quem a obra é confiada? A superação, a contínua ultrapassagem dos limites? Creio que não há melhor metáfora de um escritor, para ele mesmo e para a sua obra.
Sim, talvez. Mas eu quero dizer que aqui a literatura atinge o nível de uma ambição absoluta, ou seja, da suprema finalidade: tornar-se equivalente ao universo, se bem que esta obra, para se concluir ou para tentar concluir-se, se dirija a toda a Humanidade, porque necessita de toda a Humanidade. É necessário que todos os seres humanos, sem fim, no futuro, escrevam livros sem fim, para preencherem a Humanoidade, que não pode concluir-se de outro modo e, mesmo assim, não poderá concluir-se. Temos aí o “inconcluível” por natureza, a vertigem do infinito.

É a convenção que está na origem da obra, aliás, não é verdade? Uma convenção necessária…
Sim, mas uma convenção infinita. Vinda de mim, o inexperiente, no sentido que eu sou alguém sem experiência de infinito (risos). Visto que sou limitado, daí esta ordem que deve ser cumprida e que eu, para a cumprir, limito a dez livros apenas, o que não é só o mínimo, mas o pouco que se pode fazer.

Contudo, uma tal tarefa, per se, é uma tarefa sobre humana.
Sim, porque estes dez livros, eles próprios, não conseguem concluir-se. Cada um deles contém um infinito, se bem que esta limitação, de facto, seja enganosa, é uma convenção, como dizias… Sim, sim, o todo encontra-se numa convenção, mas uma convenção em termos de infinito.

Uma tal convenção está, provavelmente, na origem desta nossa conversa também, no que ela representa de inacabado…
E talvez de infinito…

Como todas as nossas conversas. Visto que não deixamos de as retomar…
No mesmo ponto.

Avançando um pouco, de cada vez.
Um pouco, sim, muito pouco. Mas é suficiente para uma conversa.

Muito obrigada.
Eu é que agradeço, Dímitra.

Tradução de José António Costa Ideias

Conversa filmada para a edição em DVD de O.I.H um triptíco constituído pelos monólogos Odisseus, Itaca e Homero (publicada no número dos Livrinhos de Teatro), realisada e produzida pelo Ateliê Europeu da Tradução com o apoio da União Europeia. Esta edição abre uma colecção teatral dedicada a autores contemporâneos.

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