OS ANIMAIS DOMÉSTICOS de Letizia Russo
Versão portuguesa de Letizia Russo, José Lima e Jorge Silva Melo
Com Américo Silva, Andreia Bento, António Filipe, António Simão, Carla Galvão, Daniel Martinho, Elsa Galvão, Gonçalo Waddington, Joana Bárcia, João Meireles, João Miguel Rodrigues, José Airosa, Pedro Carraca e Sylvie Rocha Cenografia e figurinos Rita Lopes Alves e João Calvário Luz Pedro Domingos Encenação Jorge Silva Melo assistido por João Miguel Rodrigues Produção Manuel João Aguas Produção executiva Sandro Benrós
Uma co-produção Teatro Nacional D. Maria II / Artistas Unidos
Projecto apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian
Estreia no TNDM II em 22 de Setembro 2005
Este espectáculo foi apresentado na Biennale de Wiesbaden (21 de Junho de 2006) tendo o actor Daniel Martinho sido substituído por Paulo Pinto.
O texto de Os Animais Domésticos está publicado no nº 10 dos Livrinhos de Teatro numa edição conjunta TNDMII/AU/Livros Cotovia.
Uns cegos, uma mãe que aguarda o regresso do seu filho, gente que passa, amantes encontrados e reencontrados, um filho que se liberta, a educação que prende, gente que espera e perde, as apostas de vida, cães vadios, a vida tumultuosa, o vai vem, miséria e honra. E a fúria dentro de cada um.
Quem manda em quem? Quais os modos de mandar, de prender, de afirmar a própria existência perante o outro?
Há por estas ruas uma violência que foi domesticada. Ou que reabre as suas fendas.
As feras voltam. E com elas as fúrias.
CÃO 2 – Que te importa um pontapé se depois te dão de comer.
CÃO 1 – Um pontapé dói.
CÃO 2 – E a fome não.
Letizia Russo. Os Animais Domésticos
A força da escrita desta jovem autora provém do desafio a que ela admiravelmente se lança: contar uma história com armas poéticas, metafóricas e simbólicas de grande força. Não há acções ou quase não há, mas situações de forte tensão dramática, tecidas por personagens um pouco fantasmáticas, como se estivessem absorvidas pela morte.
Caroline Michel
Túmulo de Cães é (…) um acto de existência, onde o escândalo da vida gasta, da inércia que não é ausência de movimento, mas sim um lento deslizar para um choque frontal com o destino, se torna um grito de desespero sem qualquer melodrama. Uma tragédia contemporânea.
Cristina Pezzoli
Letizia Russo cria um labirinto de palavras em verso livre que sulcam o quotidiano do presente para encontrarem a trama dos instantes prolongados de exaltação e a sua transformação numa necessidade delirante de matar o perpetrador arrependido, aderindo sempre às solicitações do sentimento, num texto inspirado que flui por ondas como uma composição musical.
Franco Quadri
(…) É a relação com a memória que se descobre viver no presente. E deste mundos interiores às vezes em contraste quando não em conflito, Letizia Russo revela-se já uma maestrina ao evocá-los e ao atravessá-los.
Gianfranco Capitta
As situações a que as personagens descem fazem-nos pensar num status belli, e por isso a um moderno estado de direito, uma sociedade ainda não desenvolvida ou então a uma sociedade gasta, com as liberdades pessoais constrangidas a uma economia de subsistência e sobrevivência. Esta laceração total que arrasta as personagens no espírito e na vida material condu-las a responder antes de tudo aos seus sentimentos elementares.
Tiziano Fratus
Um paraíso terrestre perdido: neste lugar, destruído por um terramoto, vegetam à espera de migrar, três casais muito singulares, ligados ao passado e à memória por parentes desaparecidos. Intervirá depois um desconhecido, director deles em todos os sentidos, que os fará redescobrir quem são, o que é a vida, a natureza, a esperança, a capacidade de entrar na realidade, graças a uma magia de descoberta interior que os surpreende e ao mesmo tempo capta o público pela total ausência de retórica, graças à profundidade de uma escrita atormentada por uma ânsia autêntica de comunicar e uma emoção contagiosa.
Franco Quadri
O MEU MODO DE ESCREVER
O meu modo de escrever um texto é o seguinte (…): normalmente, antes de começar, tenho uma sensação profunda, um pensamento fixo durante um período de tempo. Eu não o convoco, é ele que vem sozinho. Começo a ver as coisas e a interpretá-las com aquele modo de sentir, de ver, e começo a acumular rostos, frases, que depois rapidamente esqueço, secções de diálogos, personagens mas sobretudo personagens esfumadas. Quando este brainstorming não desejado termina, percebo que tenho urgência de dizer algo e começo a perguntar-me como a quero dizer. Começo a tentar esquecer aquilo que, na minha vida quotidiana, me inspirou esta sensação ou este pensamento. Não acredito nem por um segundo no autobiografismo, estou convencida que se deve saber inventar. Quando apaguei esses traços, começo o verdadeiro e próprio trabalho. Isto é, primeiro crio personagens que eu gostaria de fazer falar. E defino os seus limites na minha cabeça ou através de apontamentos. Devo dizer que as minhas personagens nunca nascem fechadas em si próprias, estão sempre relacionadas, em fuga, ou à procura de relações com outras personagens. As relações entre as pessoas, são um assunto que nunca me deixou e não sei quando deixará de me fascinar. Quando tenho mais ou menos em mente as personagens procuro, obviamente, perceber em que tipo de história as posso inserir. Procuro sempre tramas que tenham um sentido geral fechado nessas vidas particulares. Gosto de círculos que se fecham, gosto de fundações fortes, gosto de vidas que não sejam forçosamente ligadas, no seu quotidiano, a acontecimentos mais ou menos sociológicos, gosto quando são símbolos da História, quando olham à volta e sobretudo para dentro. (…) Se esta história aparece, não começo logo a escrever. Quero primeiro perceber como a posso dizer, por que lado começar, onde acabar, o que meter no meio, que tipo de narração (cronológica ou não) vou utilizar e por aí fora. Tenho sempre necessidade de agir em terrenos seguros, e por isso esmiuçar cada vez mais a história para que as passagens narrativas de cena para cena sejam claras e certas para mim.
Letizia Russo
O primeiro contacto com a escrita da Letizia Russo foi em Julho de 2002 quando lemos Asfissia, sua terceira peça, curiosamente uma obra que até hoje permanece inédita no palco. A sua escrita tensa e musculada, no limiar do dito/não dito, no limite do drama, interessou-nos. Não andávamos nós à procura disso quando fizemos Harold Pinter – Um Para o Caminho? Depois de Asfissia (2002) lemos Tomba di Cani (2001), a peça que a tinha revelado em Itália, Binario Morto (2003), Babele (2004) e Edeyen (2004). Encontrámos na sua obra uma urgência que nos era muito cara. Fosse nos meandros trágicos de Tomba di Cani ou nos aparentemente ingénuos diálogos de Binario Morto – a peça que escreveu para o programa Shell Connections – os mundos evocados necessitavam de respostas rápidas, pediam-nos isso. Tivemos a oportunidade de traduzir Binario Morto e Babele em Julho de 2004 quando nos dedicámos ao teatro italiano e nos debruçámos um pouco sobre a obra desta jovem autora. Daí até ao projecto OS ANIMAIS DOMÉSTICOS foi um pequeno passo. O segundo passo foi o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian para o trabalho de investigação. E depois, à nossa vontade de estrear uma peça inédita em Portugal correspondeu-nos ela agora com este texto…
Pedro Marques
O trabalho de investigação foi apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian e revela uma grande originalidade: uma jovem autora prestigiada em Itália e Inglaterra escreve directamente para uma companhia portuguesa e é estreada na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II na abertura da temporada 2005/6.
Um projecto de escrita com os Artistas Unidos
Encontrámos Letizia Russo em Londres, no âmbito da Internacional Residency do Royal Court Theatre onde também participou, como encenador, e com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, Pedro Marques. Também ao conversar com o crítico e editor Franco Quadri em Milão, o nome de Letizia Russo aparecia frequentemente como uma das certezas mais interessantes da nova dramaturgia italiana onde sobressaem nomes como Spiro Scimone, Davide Enia ou Fausto Paravidino.
Letizia Russo tem uma voz original. Fala de um mundo contemporâneo cujos evidentes referentes serão os ecos da guerra da Bósnia, mas fala depois de Beckett, sem querer voltar às formas dramáticas tradicionais, anglo-saxónicas nem sequer tentando destruí-las do interior. Há um barroco pós-pasoliniano na literatura teatral da jovem autora – que radica provavelmente num conhecimento profundo dos clássicos gregos e latinos, os que não receavam a metáfora, a violência, a tirada. E de certa maneira, as suas peças vêm do fundo dos tempos, de muito longe e com a frescura das descobertas.
E a ideia foi crescendo entre nós: porque não aumentar as relações, porque não encomendar a esta escritora – que, entretanto, lê, fala e entende português – uma peça para nós fazermos?
Letizia Russo gosta de encomendas, gosta de trabalhar para actores específicos. Creio que uma experiência deste género é fundamental na criação de uma dramaturgia que ultrapassa fronteiras, de uma nova dramaturgia finalmente europeia.
Com isto, visamos a estreia de um espectáculo em língua portuguesa escrito por uma jovem autora italiana. A isso podíamos chamar o quê?
Teatro.
Pois “Tudo é possível de ser teatro”, dizia Goldoni.
Jorge Silva Melo