PAIXÃO SEGUNDO JOÃO de Antonio Tarantino
Tradução Tereza Bento Com Miguel Borges e Américo Silva Cenografia e figurinos Rita Lopes Alves Assistente de cenografia Daniel Fernandes Luz Pedro Domingos Encenação Jorge Silva Melo assistido por João Miguel Rodrigues
Uma produção ArtistasUnidos/Tá Safo/alkantara
Estreia Convento das Mónicas, 3 de Junho de 2006
Este espectáculo foi reposto em Lisboa, no Convento das Mónicas, a partir de 18 de Outubro de 2006.
A sessão de 22 de Outubro contou com a presença do autor.
O texto está publicado nos Livrinhos de Teatro 11
A tradução teve o apoio de AET e do Ministerio degli Affari Esteri de Itália.
Duas personagens, um doente mental e o seu enfermeiro, em monólogos nas várias estações que marcam um dia de hospital psiquiátrico. São as etapas de um calvário percorrido por um louco que acredita ser ELE, enquanto o seu acompanhante expõe os delírios num ambiente de prepotências diárias nas quais ele também participa.
Eu-Ele, mentiroso e mitómano, vive no seu imaginário a epopeia do próprio teatro oblíquo em conflito com a acção, as filas de espera, a consulta médica, os serviços da segurança social, o vencimento da pensão, a rebaldaria do Bar do Desporto, o sexo consumado em solidão, a abertura da época do futebol com o Brescia na 1.ª divisão (e finalmente poder ver os grandes e até a Juve da Turim natal).
É um meteoro. Não sabemos se é doido ou não, consciente ou alienado, violento ou pacífico, homem ou animal. Na sua luta com a sociedade experimenta a extraordinária e incrível iluminação, através de uma perda de identidade ou uma escolha obscura ou louca, fazendo-se passar pela figura mais alta da cultura e da religião cristã. É o máximo da espiritualidade e o máximo do realismo. “No mundo o mal existe e a desventura também”, são palavras de João no momento da separação; é a recusa do mistério. Os dois elementos coincidem na personagem: a sociedade encarrega-se de os curar ou anular.
Mesmo na espera, Eu-Ele corre para um dos seus destinos: crucificação, fármacos ou electrochoques. Ao passo que João prosseguirá o seu caminho, deixar-se-á tentar mas escapará à linguagem da loucura recuperando o domínio de si próprio. O que não implica qualquer traição ao seu trabalho-missão.
Como diz Tarantino: é um contraponto de linguagens, um contacto e envolvimento de destinos-palavra.
Nem o amor ao próximo modifica a nossa condição humana, que é a solidão, a morte e o isolamento. João procura aliviar o sofrimento do doente ao ponto de ir com ele dar uma voltinha de carro ou de o deixar apanhar uma bebedeira. Mas ao fim e ao cabo, como bom evangelista, limita-se a aflorar a sua paixão para no-la decifrar remetendo o seu sentido oculto ao nosso implacável quotidiano.
Para a Paixão segundo João
de Antonio Tarantino
Segundo Leibniz: existem VERDADES DE RAZÃO e VERDADES DE FACTO. As primeiras são necessárias mas nada dizem da realidade: exprimem o universo das possibilidades. As segundas são contingentes e circunscrevem, na imensidade dos possíveis, o que é ordenado segundo realidades.
Uma ordem real nunca é necessária e o seu contrário será sempre conceptualmente possível.
Há tensão entre o Ser que está na Palavra – que um esquizofrénico Eu-Ele dir-se-ia misteriosamente alcançar – e o simples estar numa ordem falada, real e logicamente conclusiva: a ordem do enfermeiro João.
O Eu-Ele está talvez na Graça; João participa, e é sua testemunha, na modesta medida que a sua lógica o consente. Interrogação metafísica e pergunta epistemológica, em contacto, fazem brotar uma centelha.
Mesmo no indiscutível domínio do Inautêntico, manifestado pela tempestuosa, precária, imprópria utilização de ferramentas logico-fonológicas, a palavra-disvalor pode sempre, mesmo nas arriscadas passagens no limite de uma iteração insignificante, libertar mensagens não formalizadas: mensagens implícitas nas quais se inscreve toda a purificação possível, toda a poesia, hoje.
Turim, Março-Abril de 1993.