Profano e Sagrado – José Tolentino Mendonça

Os dois textos de Antonio Tarantino, Stabat Mater e Paixão Segundo João, foram editados na Colecção Livrinhos de Teatro (são o nº11), numa edição bastante optimista de 800 exemplares! Mas tudo é relativo! Com os semanários de fim-de-semana foi distribuído gratuitamente (sic!) o catálogo da Fnac, “Guia de ideias de prendas”, e, sempre gratuitamente (sic!), podemo-nos abastecer dele nos entrepostos comerciais daquela marca de sucesso. Não se consegue, folheando o volume, apurar o índice da tiragem. Existirão, previsivelmente, 800 vezes 800 vezes…
Estes catálogos (outro bom exemplo é o do Ikea, que a promoção garante ter ultrapassado quantitativamente… a Bíblia!) são peças curiosas do nosso sistema de ênfases e mitos: põem sem pôr o nosso coração a nu. A selecção de livros, que ali se faz, reflecte, certamente, uma adequação competente e efusiva às expectativas da quadra. Talvez por isso não se indique o Livrinho de Teatro de Tarantino, nem qualquer outro escrito de Teatro. E a Religião, por exemplo, esteja cotada na secção… do romance histórico.
Recordo o que escreve Slavoj ˇZiˇzek, em A subjectividade por vir (Relógio d’Água, 2006): «Talvez a proibição que recai sobre a adesão apaixonada a uma crença explique por que motivo a “cultura” tende a tornar-se hoje uma categoria central no mundo e nas nossas vidas. A religião é permitida — não como forma substancial de vida, mas como modo de “cultura”». ˇZiˇzek aborda a recepção do filme de Mel Gibson, um objecto que não aprecia, mas que lhe serve para pensar «a Paixão na era da crença descafeinada». O caminho que ele aí aponta, contrariando o hedonismo espiritualista e evanescente, tão do apetite pós-moderno, é a redescoberta de «um materialismo consequente». Numa outra obra, em que enfrenta mais sistematicamente a situação do cristianismo contemporâneo (The fragile absolute or, Why is the Christian legacy worth fighting for?, 2001), tematiza esse “materialismo consequente” tomando a categoria da “desconexão”. O cristianismo nasceu como uma comunidade de excluídos, na linha dos grupos excêntricos, e a verdadeira desconexão cristã «não é uma atitude de contemplação interior, mas a de um trabalho activo de amor que conduz necessariamente à criação de uma comunidade alternativa».

Este preâmbulo serve para dizer o espanto por se escreverem e representarem Paixões (e Stabat Materes, e Vésperas!), e se falar do divino através do corpo, com as falas da purulenta, precária e impura dor do corpo, dessa materialidade fustigadamente límpida que somos em nós e com os outros, como nos ensina a Teologia de Paulo («O corpo não é composto de um só membro, mas de muitos» 1 Cor 12,14). Os tempos que correm assemelham-se a um dispositivo de proliferação de crenças, domesticadas por um subjectivismo portátil, indolores, individualistas, transversais, descontínuas, consensuais, inofensivas. Declinam-se regressos, o do sagrado, o dos anjos, o das origens cristãs, mas numa narrativa escorreita, sem sobressaltos, nem fracturas. O religioso enche a montra todo o ano. Fala-se da recuperação da alma, mas não do que se omite na articulação culturalmente correcta desse discurso. Na feira do Livro de Turim (vizinhanças de Antonio Tarantino, ó céus!), correndo o ano da graça de 2006, o grande acontecimento editorial era o redescoberto Evangelho gnóstico de Judas, e o fragmento eleito para a divulgação, este: «Levanta os olhos e observa as nuvens, a luz nas nuvens, e as estrelas em redor. A estrela que indica o caminho é a tua estrela». Quanto mais etérea a mensagem, maior o fascínio.

Ora, o Teatro de Stabat Mater e Paixão Segundo João recusa precisamente o fascínio. É escrito numa língua de trapos, sem invenção nem cultura; língua reles, maníaca, ordinária e ofensiva; língua profana, clandestina, cuspida, não falada; língua incivil. O próprio espaço de representação, nesta leitura de Jorge Silva Melo, prolonga, contraria, prolonga, num jogo de intensa inteligência do texto, esta dissolução de estatuto da língua. Do mesmo modo as personagens: uma gente esconsa, precipitada, sem beira nem eira. O alienado que habita há anos numa instituição psiquiátrica e o enfermeiro que o acompanha; uma “Maria, Meri, Marí” que no final há-de dizer: «não sou lá como a nossa senhora/ a ficar à espera da ressurreição», porque foi isso que ela foi, num arrazoado sem fim, diante dos nossos olhos.
A proposta de Tarantino/Silva Melo é olharmos o na-carne, o in-umano como tópico maior do mistério. Secularizam, fazem raso das hermenêuticas de sacralização que a carne gerou, é verdade. Mas antes de existir como interpretação, o sagrado existe como resíduo, latência, e é isso que lhes interessa. O Sagrado mais eloquente é este habitar a carne e não ter palavras, justificações, procedimentos retóricos. Apenas a condição de ser. Haverá materialismo mais radical? Teologia mais radical? O sagrado não se solta de uma inquirição segunda, de um prólogo inefável ou de um saber. Neste teatro de Tarantino/ Silva Melo ninguém sabe: nem quando, nem onde, nem o quê E espera-se que o espectador saia a saber menos. É, de novo, de palavras de São Paulo que estamos próximos: «foi-me dado um espinho na carne, um anjo de Satanás, para me ferir… A esse respeito, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Mas Ele respondeu-me: “Basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se na fraqueza”» (2 Cor 12, 7-9). Este é um teatro que se constrói do lado da fraqueza para dar a ver o que é, o que pode ser, o que não pode não ser a graça.

Um dado importante é reconhecer que estas duas peças usam o Texto cristão, a Tradição e a iconografia religiosas como sub-texto da sua construção. Usam, quer dizer, manipulam. Não há, porém, verdadeira leitura ou releitura que não solicite esse exercício de desconstrução e recomposição. No caso de Tarantino/Silva Melo pretende-se uma espécie de contaminação. Veja-se como na Paixão Segundo João se mantém com o evangelho cristão homónimo uma relação que não é apenas semântica, mas até sintáctica: o jogo recorrente “Ele sou eu/ sou eu Ele”, por exemplo, ou a situação narrativa das personagens Pedro e João. Veja-se, na encenação de Stabat Mater, a colocação lateral da personagem, deixando durante todo o monólogo o centro vazio (o centro que é o invisível altar, onde o sacrifício do filho acontece; o centro que é o sepulcro vazio).
Este processo de sobreposições múltiplas constrói o mesmo efeito que encontramos, por exemplo, tão sabiamente elaborado em certos passos da dramaturgia vicentina: a dessacralização é uma aclaração do mistério. O profano torna-se epifania do sagrado. E o humano, lugar por excelência do divino. Também aqui os dispositivos hermenêuticos correntes se alteram. Mas serve outra coisa o Teatro?

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