Quatro dramaturgos noruegueses… Therese Bjørneboe

Os dramaturgos Niels Fredrik Dahl, Finn Iunker, Maria Tryti Vennerød, Arne Lygre e Jesper Halle diferem grandemente nas suas abordagens ao teatro e à dramaturgia. Mas é precisamente esta diversidade que os torna um caso interessante e digno de nota no panorama do teatro contemporâneo norueguês.
Ser dramaturgo na Noruega no séc. XX tem sido estar na sombra de Henrik Ibsen. Não só devido ao seu génio, mas também à tradição, à estética e ao estilo de representação que tem sido acarinhado pelos principais teatros. Até aparecer Jon Fosse, tendo o seu sucesso internacional podido indicar que uma dramaturgia norueguesa também podia beneficiar do “lugar ao sol” de Ibsen…
“Como dramaturgo, não pertences bem ao mundo do teatro nem ao da literatura”, diz Jesper Halle, um dos dramaturgos noruegueses escolhidos pelos Artistas Unidos. As mudanças de atitude perante o teatro escrito estão intimamente ligadas à prática artística nos próprios teatros. Portanto, uma das coisas prometedoras para o teatro norueguês é os teatros institucionais estarem a ser desafiados para outros encontros e outras iniciativas. A influência das companhias não-institucionais e das produções estrangeiras fora de série está a começar a ganhar visibilidade e a reflectir-se numa atitude mais aberta acerca do que podem ser textos de teatro. Em Oslo, o Det Åpne Teatret tem oferecido a escritores a possibilidade de fazerem experiências com actores e de tentarem técnicas diferentes, e estão a ser tomadas iniciativas educativas.

Finn Iunker
Finn Iunker pode já ser um nome familiar para a audiência portuguesa, depois da produção de Peça Alter Nativa em 2004 (encenador: António Simão), uma peça originalmente representada por crianças na escola internacional em Amesterdão, em 1999.
Ifigénia foi pela primeira vez encenada por uma companhia flamenga, SkaGeN, em Antuérpia, em 2003. Mas a primeira versão da peça data de 1996. Em 2003, Finn Iunker fez uma versão nova em inglês, a qual depois foi produzida simultaneamente com Dealing with Helen (2003), outra peça de lunker baseada nas guerras troianas.
A escolha do material é bastante fora do comum para um dramaturgo norueguês. As tragédias gregas são apresentadas na Noruega com uma frequência irregular, para não dizer rara. Juntando o facto da enorme influência de Ibsen na escrita e olhando para o teatro norueguês como um todo, não é possível falar de uma continuidade de uma “negociação com os gregos”, nem sequer de um diálogo. Nem na interpretação, nem na encenação, nem — e aqui está o ponto fulcral inserido neste contexto — em termos de produção de peças baseadas ou adoptando material grego. Como na tradição alemã desde Goethe até Heiner Müller, ou na tradição anglo-americana desde Shakespeare, passando por Eugene O’Neill até Sarah Kane, só para falar de alguns. Não estou a sugerir que os dramaturgos noruegueses não estejam familiarizados com isto ou com estas tradições, mas dado o volume restrito de peças que são produzidas na Noruega, tem sido um território amplamente negligenciado.
Os interesses de Finn Iunker são principalmente literários, é ele mesmo que o diz. Mas quando um dos seus textos esteve em cena no Teatergarasjen em Bergen, num workshop e produzido por uma companhia estrangeira, ele apercebeu-se de que algo acontecera, e isto tornou-se o ponto de partida para o seu comprometimento com o teatro, juntamente com os seus estudos dos clássicos. Nas suas peças, Finn Iunker parece mudar de estratégias a toda a hora, quando se aventura num diálogo com diferentes modelos dramáticos, com dramaturgos clássicos e as correspondentes visões do mundo. Em Peça Alter Nativa foi o Lehrstuck brechtiano e em Ifigénia são os gregos ou, para ser mais exacta, Eurípides.
Ifigénia segue a história tal como é passada pela tradição, mas Iunker faz alguns pequenos e significativos acrescentos. Por exemplo, quando a escrita infindável de Agamémnon faz alusão ao topoi moderno da “escrita para o silêncio”, como um crítico alemão notou. Enquanto que, em Eurípides, a intenção de Agamémnon de escrever uma carta é tida como o seu desejo de evitar que a sua mulher e a sua filha Ifigénia cheguem a Áulis. Que falha, dado que a carta não alcança o seu objectivo. Mas podemos dizer que a ironia das adaptações de Iunker tem origem na ambiguidade do próprio texto de Eurípides. Aí, as personagens masculinas são representadas de uma forma a que se tem chamado o trabalho mais demolidor com os heróis gregos até ao Troilus e Cressida de Shakespeare. Tal como no tratamento das personagens, Finn Iunker joga com a linguagem e com uma linguagem moderna que se aproxima dos filmes americanos. Contrapondo deste modo ao laconismo euripidiano o laconismo moderno, Iunker parece também confirmar a continuidade de uma mentalidade partilhada, como na visão de Agamémnon: “Oh meus deuses que confusão!”.
Ifigénia de Finn Iunker constitui de facto uma boa leitura. E não podia ou devia ser de outra forma, já que a peça lida com pessoas aparentemente calmas e afáveis que, num momento de crise, são expostas na sua superficialidade e cobardia. A história de Ifigénia é também perturbadoramente relevante, já que a geografia da narração antiga corresponde bastante bem ao “eixo do mal” dos dias que correm. Mas embora a peça lide com assuntos políticos de grande relevância, passou muito tempo até que os teatros noruegueses tivessem vontade de a produzir. No Inverno passado Ifigénia foi encenada como peça de rádio, e estão anunciadas mais duas produções. Em vez de se enfatizar que Finn Iunker parece ser um escritor demasiado “formalista” para o teatro norueguês, e então considerado demasiado difícil, pós-moderno ou conceptual, as novas produções podem provar que é tempo de se dar atenção aos usos e aos desusos da linguagem como assunto urgente no palco.

Jesper Halle
A Mata de Jesper Halle estreou em Trondheim em 2004, e foi no mesmo ano escolhida para representar a Noruega na Bienal para Novas Peças Europeias em Wiesbaden, na Alemanha. Depois de uma série de produções, na Suécia, Dinamarca, Alemanha e de uma leitura nos EUA, A Mata é produzida em Portugal pelos Artistas Unidos/Chapitô, com uma versão dirigida por Franzisca Aarflot.
A Mata aborda um tema que tem um impacto trágico: o desaparecimento de uma criança, que tudo indica tratar-se de um crime. Mas a força da peça não é devida apenas ao facto de essas coisas acontecerem, mas ao facto de tantas vezes serem mal tratadas e exploradas pelos interesses da comunicação social.
O desafio teatral e literário que Jesper Halle assumiu foi o de escrever uma peça apenas com papéis de crianças, mas para actores adultos e para um público adulto.
Ele não começou com a ideia de que queria escrever acerca de algo “importante”… Queria antes expressar o sentimento de vulnerabilidade de que se lembrava de quando tinha quatro ou cinco anos. A acção passa-se no início dos anos sessenta, e o título A Mata refere-se a um bosque para onde vai brincar um grupo de miúdos entre os 4 e 12 anos de idade. Sabemos que eles foram avisados pelos pais para não irem lá, talvez porque o bosque é frequentado por bêbedos. Porém, como em Dante ou nas histórias de fadas norueguesas, a mata também é um símbolo arquetípico do maravilhamento. Na peça, grande parte do pano de fundo, das circunstâncias ou dos lugares e acções das crianças apenas nos são revelados através dos pontos de vista das crianças. Daí que as coisas sejam frequentemente aumentadas em relação às suas proporções “naturais”, ou pelo contrário, depreciadas ou subestimadas.
Jesper Halle trata o grupo de crianças como um mundo social em miniatura, onde Júlia Nilsen parece ser uma espécie de bode expiatório. Ela tem verrugas na mãos, mas também é mais dissimulada do que os outros. Tem acesso a doces que esconde nas matas, mas de um tipo diferente daqueles que podemos comprar numa loja. Também parece que foi alguém a dar-lhe a pulseira da qual ela se orgulha tanto, mas que se recusa a usar em casa. Como as crianças ouviram sem querer os pais dela a declararem que Júlia diz mentiras, tornam-se desconfiadas, mas por outro lado prestam-lhe uma estranha lealdade. Fazer pouco de Júlia Nilsen tem associado o contraponto de uma solidariedade dentro do grupo, dado que as crianças se sentem desafiadas a proteger os seus segredos. Nalgumas cenas, Jesper Halle põe as personagens a falarem connosco como adultas, e através desta disposição retrospectiva pode sugerir-se que está em jogo uma “memória selectiva”. As lacunas temporais entre as cenas criam um pano de fundo obscuro ou enevoado, tal como toda a informação que é deixada de fora, e que contrasta com a nitidez do primeiro plano da peça e das cenas individuais.
No fim da peça, outra rapariga do grupo aparece com uma pulseira idêntica à que Júlia Nilsen usava. Deste modo, Jesper Halle termina a peça com uma nota obscura, mas — já que a peça se recusa a dar respostas claras acerca do que acontece a Júlia Nilsen — A Mata não é um thriller nem uma peça didáctica, moral. Sendo nós vítimas do que é acidental ou do alcance limitado dos nossos conhecimentos e da nossa imaginação, trata-se de uma peça que nos pode fazer reinventar os medos e a confusão da nossa primeira infância, quase na forma de um ritual.

Niels Fredrik Dahl
O dramaturgo Niels Fredrik Dahl escreveu que o que o fascina no teatro é o facto de ser na arena artística que está mais próximo o perigo do eclipse ou do colapso, onde o caos ameaça ao dobrar da esquina, e onde o equilíbrio entre construção e destruição tem um resultado inesperado. Então, o aspecto realístico do teatro é ser tudo menos realista; é selvagem, ingovernável.
Embora Niels Fredrik Dahl tenha escrito várias peças para teatro e para rádio, considera-se “escritor” e não “dramaturgo”. Declaração que também se pode atribuir ao seu sucesso como novelista e poeta.
A sua peça Como um Trovão recebeu o First Fringe Award em Edimburgo, quando foi levada à cena em 2001 pela encenadora norueguesa Franzisca Aarflot, com um grupo de actores ingleses e escoceses. Tratou-se da segunda produção da peça, que foi originalmente desenvolvida em colaboração com um encenador e actores do Det Åpne Teatret em Oslo. Foram utilizados os métodos de improvisação do cineasta inglês Mike Leigh.
Como Niels Fredrik Dahl diz, isto deu-lhe uma enorme quantidade de material para as mãos, mas no fim ele teve que inventar a história. E depois, dado que ele próprio não é encenador, o processo no seu todo afastou-se do método de Mike Leigh.
Como um Trovão é sobre uma família, uma mãe e dois filhos, que se reúnem para celebrar o falecimento do pai, que depois se revela um mistério por resolver. Ele tinha-se ido embora sem deixar uma nota ou um sinal, exactamente no mesmo dia uns anos antes. Dahl utiliza uma técnica de retrospectiva que revela a influência de Ibsen, mas a produção de Edimburgo de Franzisca Aarflot seguiu mais as estruturas poéticas dos movimentos da peça no tempo do que qualquer “realismo psicológico” explicativo. A produção e os actores excelentes fizeram ainda justiça ao realismo dos diálogos crus e duros de Niels Fredrik Dahls. Tom, ovelha negra da família, mas também Gerhard, o irmão mais velho, usam as palavras como armas. E o diálogo está repleto de trocadilhos e humor negro, característica que provavelmente contribuiu para o enorme sucesso em Edimburgo.
Apesar das emoções das personagens serem trazidas à superfície de uma maneira pessoal e individualista, as suas paisagens interiores ou os seus sentimentos básicos não são tão diferentes como podem (ou podemos) fazer supor. Poderíamos afirmar que Como um Trovão é uma peça sobre representar, em que as pessoas assumem papéis imaginários de forma a estarem à altura das expectativas dos outros ou da sua própria auto-estima.
Niels Fredrik Dahl retrata o modelo de uma família típica, em que cada um carrega consigo a sua perda, incapaz de a partilhar com os outros, e acabando por já não querer libertar-se dela. É o que se vai tornando claro quando a mãe, Eva, nega de uma forma patética algumas verdades acerca da natureza do seu casamento. Através disso, ela impõe um duplo constrangimento aos seus filhos, que têm de escolher entre admitir a verdade ou prestarem lealdade à mãe.
Embora tenha sido recentemente encomendada uma peça a Niels Fredrik Dahl sobre Ibsen, que será apresentada no festival de Ibsen deste ano, em Oslo, ele sente-se pouco à vontade com o que reconhece como uma influência.

Maria Tryti Vennerød
Frank considera a vida agradável e satisfatória. O seu trabalho consiste em empilhar coisas em cima umas das outras, e quando o seu trabalho está terminado gosta de assistir ao telejornal. A sua felicidade é desafiada pela sua namorada Fora, que reage com mágoa e desespero à vida que ele leva, e discute sobre ir para África para ajudar os pobres e as crianças esfomeadas.
Com Frank, Maria Tryti Vennerød ganhou o primeiro prémio numa competição sueca e norueguesa para a melhor peça de 2005. A competição foi organizada para o centenário da dissolução pacífica da união dos dois países em 1905. Frank de Maria Tryti Vennrød aborda o tema da liberdade e da independência e pergunta o que poderá ser uma identidade contemporânea norueguesa. A Noruega é um dos países mais ricos do mundo, com recursos naturais abundantes, com orgulho nos seus valores igualitários e no seu papel gerador de paz no mundo. Ainda assim as pessoas vivem obcecadas por ganhar a lotaria nacional e exprimem preconceitos contra os imigrantes.
Em Frank, Maria Tryti Vennerød tem uma abordagem dialéctica e metafórica que deixa muito espaço à interpretação. Na personagem Frank é-nos apresentada uma pessoa para quem o resto do mundo parece tratar-se de uma questão de resumos a serem consumidos à hora do jantar. Mas numa tentativa de encontrar uma fuga para ela e para Frank, também Fora é enformada pelos filmes e pela TV. No entanto, onde ele exibe complacência, ela mostra desconforto. Quando Frank recebe a visita da mãe, de uma advogada e de uma amiga, é-nos revelado que Frank vive numa prisão e sugere-se mesmo que Fora pode ser uma guarda prisional.
A peça é escrita numa forma lacónica e repetitiva, o que lhe dá um tom cantado, como quando a fala de Frank é repetida por “mar de gente”. Esta criatura é como um eco do Peer Gynt de Ibsen, em que as figuras “fantásticas” funcionam como espelhos para camadas diferentes da identidade de Peer. Frank não tem a complexidade psicológica de um Peer, mas como a prisão em que ele vive está a ser questionada — e o público (ou o encenador) têm de descortinar se se trata de facto de uma prisão ou de uma metáfora — Frank poderia ser visto como um solipsista, como o Peer de Ibsen, ou mesmo o Ricardo II de Shakespeare. A questão de se saber se o mundo fora da nossa mente existe está profundamente relacionada com a natureza do teatro, mas, ao reconhecer isto, Maria Tryti Vennerød trabalha a questão a um nível mais concreto, onde se liga com a questão da mentalidade norueguesa e dos seus modos de vida. No segundo acto da peça, Frank descobre que a porta da sua prisão tinha sempre estado aberta. Festeja a sua recente liberdade e é saudado como herói por essa razão. Mas à medida que Frank se apercebe dos desconfortos de estar na prisão, começa a ficar nervoso e frustrado, na medida em que a sua liberdade e independência pressupõem uma ausência de laços com os outros.
Quando Frank esteve em cena no Det Norske Teatret em Oslo, na Primavera de 2005, o encenador explorou as qualidades burlescas e as potencialidades satíricas da peça. Segundo Maria Tryti Vennerød, devia ser deixado em aberto — para que o público decidisse — se Frank está numa verdadeira prisão ou não, enquanto que a encenação sugere claramente que se trata de uma metáfora linguística. Esta interpretação pode ter subestimado as qualidades mais absurdas da peça, sublinhando antes as satíricas. A inteligência e o sentido do absurdo e do grotesco de Maria Tryti Vennerød não obscurecem a sua sinceridade. E, quase da noite para o dia, ela parece ter-se estabelecido como uma das mais promissoras dramaturgas da Noruega.

Tradução de Miguel Castro Caldas

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