REI ÉDIPO a partir de Sófocles
Com Diogo Infante, Lia Gama, Virgílio Castelo, António Simão, Cândido Ferreira, José Neves, António Banha, Pedro Gil, Américo Silva, André Patrício, Bernardo de Almeida, Daniel Pinto, David Pereira Bastos, Elmano Sancho, Estêvão Antunes, Hugo Bettencourt, Hugo Samora, João Meireles, João Miguel Rodrigues, João Delgado, Joaquim Pedro, John Romão, Manuel Sá Pessoa, Miguel Telmo, Miguel Aguiar, Pedro Lamas, Pedro Luzindro, Pedro Cardoso, Pedro Mendes, Ricardo Batista, Ruben Tiago, Tiago Matias, Tiago Mateus as crianças Beatriz Lourenço e Neuza Campos | Beatriz Monteiro e Margarida Correia | Inês Antunes e Inês Constantino e os músicos Ângela Carneiro, David Silva e Marco Fernandes Cenografia e Figurinos Rita Lopes Alves Luz Pedro Domingos Música original Pedro Carneiro Espacialização e assistência musical André Sier Acompanhamento dramatúrgico José Pedro Serra Assistência de encenação Luís Filipe Costa, João Miguel Rodrigues, Pedro Lamas Assistência de produção João Meireles Versão e Encenação Jorge Silva Melo
Co-produção Teatro Nacional D. Maria II / Artistas Unidos em colaboração com a Orquestra de Câmara Portuguesa
Estreia no Teatro Nacional D. Maria II a 18 de Fevereiro de 2010
Escrita por Sófocles por volta de 427 a.C., Rei Édipo foi considerada por Aristóteles o mais perfeito exemplo de tragédia. No mito de Édipo, confrontamo-nos com as nossas perguntas sobre a identidade do poder, a ascensão e queda dos vitoriosos, a incerteza da vida, a relação entre o público e o privado, o desígnio do destino em oposição ao livre arbítrio.
A peste atinge a cidade. E o Rei Édipo quer saber porquê. Juntam-se as gentes à porta do palácio. E o Rei vem ter com a multidão e diz:
Nas ruas,
há gemidos, cantos fúnebres, lamentos.
Mas chora o quê a nossa cidade?
Que esperais?
De pergunta em pergunta, de resposta em resposta, os enigmas vão caindo. Édipo quer saber. Quer saber que maldição paira sobre a sua cidade, quer saber quem é. Vai descobrir uma verdade tremenda. Esta é a tragédia do saber.
AQUELAS DUAS MÃOS DE ÉDIPO
Olho, neste Janeiro crispado, para o “Édipo e a Esfinge” de Ingres, que veio ao CCB – e nós já estávamos a ensaiar quando o fomos ver. Olho-o, eu, para decifrar. E fica-me o pensamento naquelas duas mãos cujo movimento se contraria, as duas mãos de Édipo, perfeito rapaz que enfrenta a Esfinge: a mão esquerda, explícita, clara, como quem diz “é assim mesmo, que dúvidas pode haver?”, a mão direita, com aquele dedo apontando para si próprio, dedo e maneira de mão a lembrar tanto a estranha mão do João Baptista de Leonardo – aquela que indicava, talvez, o Céu como resposta. Mas aqui, a mão direita de Édipo, estranhamente maior do que a esquerda, aponta para si próprio, Homem, e quase vai direita à sombra que lhe cai sobre o peito, direita ao coração.
Teríamos, assim, a dupla resposta que Édipo deu à Esfinge, e à sua adivinha: “Que animal tem quatro pernas de manhã, duas ao meio dia e três à noite?”. Com a mão esquerda, Édipo, o tranquilo, o ingénuo, o explêndido, dirá: “É claro que é…”. E, com a direita, trémula, interrogativa, dançarina: “…o Homem”. Ou seja, “eu”.
Ingres, que isto pintou em Roma, na sua estada na Villa Medicis, bem sabia que “Rei Édipo” é uma rápida, concisa, veloz, despida meditação sobre essas três idades do homem, a indefesa infância (aqui perdida, encontrada, pesquisada, infância dorida de que restam as feridas nos pés e um estranho nome, Édipo, o dos pés feridos), a plena maturidade (aqui gloriosa, esplendorosa nudez), a velhice que iremos saber e tanto receamos, queda.
E uma tristeza castanha banha o quadro – luz de crepúsculo, classicismo sem ilusões?
E, ao lado, estava o “Édipo e a Esfinge” de Francis Bacon: afinal, a Esfinge, dissolvendo-se talvez na areia, continua a fitar-nos, agora a nós; e o potente Édipo, com corpo de boxeur, esfrangalhado, agarra-se ao seu pé entrapado, perdeu o olhar frio, grita de dor. Não lutam, Édipo e a Esfinge, a História foi-se embora, ficou a mancha ensanguentada, ficámos nós, apodrecendo, hematomas e desenquadrados.
À tranquilidade inquieta de Ingres, à sua melancólica mas plácida assunção da História, Bacon responde com a dor, o esgar. O enigma ficou por resolver, a pergunta continua, vem direitinha a nós, a Esfinge fita-nos: quem és tu, homem?
E quanto mais investiga, mais Édipo, o resplandecente herói, o valente vencedor, descobre o que será a sua ruína, quanto mais sabe, menos poder terá, quanto mais revela o escondido, mais perto está da morte, da renúncia, as duas mãos da História voltam-se, duas faces, vitória e queda.
Pois, diz Tirésias, “Tremendo é saber”.
Esta, que aqui vamos ver, é, como tantas outras que já se fizeram, uma versão do Rei Édipo, a que fiz a partir do texto de Sófocles, mais uma. Não é uma adaptação como fizeram Cocteau (Oedipus Rex para Stravinsky ou La Machine Infernalepara Jean Marais) ou Santareno (António Marinheiro, Édipo de Alfama que, claro, vi no Maria Vitória, com a Eunice e o João Perry – e o José de Castro em Creonte, e a Henriqueta Maya, a Glória de Mattos e a Graça Lobo – e a inesquecível Maria Lalande); mas não lhe chamaria uma tradução, antes uma conversão, passagem por cima dessas fronteiras que são o tempo e a morte das línguas.
Peguei na tragédia a convite de um actor, o Diogo Infante (irrecusável desafio para mim, para nós, que tão mal nos conhecíamos). E quis recomeçar o caminho e fazer o que tantos fizeram, escrever mais do que traduzir, esquecer e lembrar, trazer e deitar fora, verter. Consultei, é claro, traduções. E olhei bem de perto para as portuguesas (a rigorosa tradução de Maria do Céu Zambujo Fialho, Ed 70, 2008; mas também a de António Manuel Couto Viana, Verbo/RTP, 1971; e os excertos traduzidos por Maria Helena da Rocha Pereira em Hélade (Asa, 2003). E para muitas outras, italianas (há aquela, explêndida, de Salvatore Quasimodo, mas há mais), inglesas (a maravilhosa versão de Robert Fagles, Penguin, 1984), castelhanas (a edição de Vara Donado, da Catedra, 1985, com excepcionais anotações), francesas. E, para todas as dúvidas, o fantástico, polémico trabalho de Jean e Mayotte Bollack (éditions de Minuit, 1985). Para me soltar do verso grego e da sua retórica (ainda possível?), peguei sempre no Édipo Tirano de Heiner Müller (a partir de Hölderlin). E muito inspiradora me foi a livre versão de Frank McGuiness (Faber, 2008) que serviu ao espectáculo dirigido por Jonathan Kent no National Theatre de Londres, 2008.
Mas não aspiro ao doce verso do classicismo, nem à sua curva inquebrável. Ou a reconstruir uma apolínea claridade, a tal humanidade que tem vindo a ser atribuída a um tranquilo Sófocles que estaria sempre colocado por cima da tempestade humana e da sua ventania.
Procuro a rudeza. (Dirão que tenho saudades de Ésquilo?) Não hesito em dar voltas à oratória. Não hesito em repetir e repetir, em sincopar, em entrecortar as orações, em marcar as suspensões. Prefiro aqui o staccato à ondulação do verso.
Nem respeito, no coro, a atribuição das falas que seriam do corifeu, as dos semi-coros, quais as que seriam talvez cantadas, não me interessa a inviável reconstituição, nem a antropologia. Preferi que a música existisse, viva, criada no momento, música de hoje, de uma cidade, esta cidade, em perigo.
Prefiro saber que é A Cidade quem naquelas vozes (ora colectivas, ora individuais) aquilo pensa, um homem que aquilo diz, dois, vinte, um outro que retoma… Pois, como disseram Vernant e Vidal-Nacquet no Mythe et Tragédie en Grèce Ancienne (Maspero, Paris, 1979): “A tragédia exprime os conflitos internos do pensamento social, transpondo-os de acordo com as exigências de um género literário novo, com regras e problemática próprias. Ela surge repentinamente no final do século VI AC, no mesmo momento em que o direito começa a elaborar a noção de responsabilidade, tentando diferenciar, de forma ainda hesitante, o crime “voluntário” do crime “perdoável”. É uma etapa importante na história do homem interior: no quadro da cidade, o homem começa a pensar-se a si próprio como agente, mais ou menos autónomo em relação aos poderes religiosos que dominam o universo, mais ou menos dono dos seus gestos, com maior ou menor poder de decisão sobre o seu destino politico e pessoal. Esta experiência, ainda incerta, daquilo que na história do Ocidente, virá a ser a categoria da vontade, exprime-se na tragédia sob a forma de uma interrogação angustiada sobre a relação do homem com os seus actos: em que medida é o homem fonte dos seus actos?”
E contei, após uma primeira versão, com quase três semanas de ensaios com os actores, gente que tanto descobre pois tanto sabe, analisando sonoridades, sentidos, pontuações, incongruências – para poder concluir este texto de agora mesmo.
E com o aconselhamento crítico e, portanto, amigo de José Pedro Serra.
E depois sentei-me na sala de ensaios. E fiquei a olhar os actores.
Gosto de olhar para eles, gosto de os ver combater o texto, conquistar a memória, limpar a ênfase, simplificar, encontrar um gesto inadvertidamente, guardá-lo, deixar o corpo responder porque sim, encontrar na representação aquilo mesmo que Ingres nos aponta com as duas mãos de Édipo: “sou eu” e “é assim mesmo”, tão simples e tão comprometidamente pessoal.
Gosto de olhar para eles, a debaterem-se (muito mais do que eu, pois o fazem na carne) com os tantos segredos do texto.
E gosto tanto de os olhar frontalmente, seres perfeitos.
Como aquele rapaz nu que venceu a noite, Édipo, esse que a noite vencerá.
Pois “a rosa que esta manhã floresceu/ à noite estará desfeita”, diria, no seu quintal, Ronsard, tão perturbado como nós com esta vida fugaz, este tempo que uma só frase desequilibra, esta harmonia já desfeita, esta manhã que recomeça até que a noite a vença.
JSM, 3 de Janeiro de 2010