SILÊNCIO ERRANTE de Ivo
Pintar, ordenar sensações, construir numa permanente interrogação, reescrevendo o que pensamos conhecer, para que não o esqueçamos.
Centro Cultural de Cascais a partir de 28 de Março
SOBRE O TRABALHO DO ARTISTA
Ivo Silva nasceu em Lisboa, onde frequentou a Escola de Belas-Artes. Comecou a expor em 1983. Uma presença impositiva nos quadros de Ivo Silva é conseguida pela atencão concedida pelo pintor à globalidade da imagem e ao tratamento do suporte. Tal presença não é conseguida nem pela gestualidade enérgica da execução nem pela alusão figurativa, apesar de o pintor tirar partido do tradicional hábito de procurar representações de objectos e de paisagens nas pinturas. As linhas podem adensar-se em zonas simétricas do suporte, mas raramente se cruzam de igual modo. Se se fecham em simulacros de contornos de objectos, estes permancem inidentificados. A procura insistente obtem dados insólitos, como montanhas cor de sangue, vales estranhos; armações metálicas que podem erguer-se no horizonte, mas que podem também glosar o emolduramento da própria pintura; linhas que convergem não numa perspectiva central estática, mas lateral, vertiginosa; na brecha dos planos frontais, indefinidas formas orgânicas estiram-se molemente. Entre a construção rígida de espacos e a flutuação de manchas amorfas, a matéria pictural vibra, entregue a múltiplas leituras. A sua presença física densa é necessária para as metamorfoses e metáforas experimentadas. Ivo pensa enquanto coloca, arrasta e arranha estas matérias cromáticas. Todas as ambiguidades da função da cor são exploradas. Incrustada na matéria, transmutadas em luz, situada como objecto ou como mero reflexo, a cor de Ivo, sendo Expressionista, não é, porém, directa. «Penso em termos de forças e formas implosivas, capazes de energia concentrada», diz ele. «Estou preocupado com a superfície, como pele que cobre o corpo da pintura. Procuro a textura áspera, porque acredito que nela se encontra o momento e a presença humana.». As relações entre os elementos pictóricos esclarecem-se através da multiplicidade de siginificações e, assim, o acto pictural constitui-se como instauração o de nova linguagem, que afirma e nega ao sabor do humor. Os títulos dos seus quadros auxiliam a distanciação psíquica necessária a este momento instaurador.
Rui Mário Gonçalves
O PINTOR ERRANTE
Entro, um dia de Janeiro, luminosa tarde de sábado, entro no atelier do Ivo, há já dois anos que lá não ia, nem sei bem o caminho, sigo o seu carro pelas estradinhas de Caxias.
E os olhos ficam-me numa tela grande, colocada em frente à entrada, azul e vazia, quadriculada e com os fios de nylon marcando-a (e às diagonais), tela ainda meio-tapada por outras que, durante a tarde, irão sendo tiradas, reveladas, para eu, sentado, ir vendo.
Nunca tinha visto nada do Ivo, nem mesmo os desenhos, que tivesse tão pouca matéria, diferenças tão mínimas, um padrão tão racional e tão declarado. E, à esquerda, tapado também por outras, outro trabalho grande, onde leio, a negro, Black on White, e, por baixo, a branco e muitas vezes, em linhas paralelas, letras pintadas como se carimbadas em carga de porão, algumas, a mais central, sumindo-se, imperfeitas e regulares.
Só quase no fim desta visita, verei estas duas telas que, mal entrei, pousaram a sua sombra sobre mim, me deixaram suspenso. Ficam por agora assim, semi-tapadas, enquanto o Ivo me mostra os belíssimos desenhos que fez o verão passado, 2007, numa casa onde tinha uma mesa de trabalho, desenhos pequenos, muito exactos.
Sete Escadas , chama-se um, e jogam nele perspectivas soltas, tudo varia naquelas linhas que sobem, olha-se mais e perde-se o pé, variando apenas o mínimo, parece tão simples, um só gesto imensamente reflectido – e ansioso, desejante.
E ele vai juntando os desenhos em grupos, há dois com tons rosáceos, em todos uma inquietante, perturbada, aérea noção de espaço, vários brincam com variações de azul, uns triângulos. E, nestes vinte desenhos que me mostra, agitam-se, assim, os espaços em geometrias estranhas, equilíbrios muito ténues, afirmam-se formas sem resposta, ecos.
“Este não, está certo demais”, e afasta um. “ Este está bem, há erros que ficam certos, certezas que ficam erradas”, diz este homem que, de vez em quando, me fala de jazz, Coltrane sempre, mestre da irrepetível intensidade.
“Tinha pensado montar uma mesa para desenhar ali em cima, na mezzanine”, diz-me. “Mas as coisas acumulam-se, não consigo arrumar nada disto, é uma confusão. E estes desenhos em cartão, fi-los porque estava numa casa onde havia uma mesa, uma mesa pequena, por isso os desenhos são pequenos. Para o desenho, preciso de muita concentração, silêncio, nem telefones, nada… tem de ser só aquilo…”
E olho em redor do atelier. Reconheço, arrumados à minha direita, os intensos auto-retratos tão dramáticos que uma noite avistei nos Açores, em Lagoa, numa pequena galeria iluminada a essas horas da madrugada, e onde os trabalhos se podiam entrever da rua escuríssima, lua nova, seria, auto-retratos doridos, expressionistas, seriam selvagens se não fossem tantos, e tão racionalmente expostos, a série dava-lhes a razão a que a pintura, coração nu, escapava.
É que Ivo vai de um lado a outro entre um muito consciente e conhecedor sentido da composição e um instinto brutalista, vital, vive dessa justaposição afirmada, cantante, saxofone nocturno.
“Um dia”, lembra-me ele, “disseste que eu não pintava com pincéis, mas com martelo.”
E tira do fundo do atelier um trabalho azul que o martelo ritmara, esburacando-o.
Porque ele gosta de fazer sair o quadro das duas dimensões, pode meter-lhe uns jeans como num dos continentes que derivam, pode martelar-lhe um pedaço de citação de Pollock (neste Pollock nunca dormia, trabalho tão sereno, dominando o impulso, noite que, calmíssima, cai sobre o acaso do gesto), ou, nesta escultura de parede que fez para um atelier de arquitectura, colar um texto normativo e implantar-lhe um esquadro, ferindo-o.
É como se os trabalhos de Ivo comportassem as cicatrizes, não há já sangue neles, alguns hematomas, talvez, mas a matéria já regressou à sua harmonia, a cicatriz ficou, ruptura, mutilação que voltou ao seu silêncio depois do grito, cartografia depois da lenta deriva dos continentes, promete.
Os seus trabalhos são lentos, pensados.
“Sim, este foi todo planificado”, diz, quando, já para o fim da visita, me revela Blue on White, “calculado. Quer dizer…”, acrescenta, “calculei umas coisas, o que me interessava era variar a intensidade da cor, não é fácil nestas superfícies tão pequenas, mas não são iguais, estes azuis vão variando, ao sabor do já feito, respondem-se.”
“E as esculturas?”, pergunto.
“São demoradas, encontro um objecto como esta planta seca, de que gosto, fica aí, até descobrir o que vou fazer com ela, ponho-a de pernas para o ar, demora tempo, vou fazendo outras coisas, pintando, ficam aí e o caminho vai-se fazendo, junto um banco, depois pensei no espelho, é um trabalho que vai sendo feito…nem sempre o que penso fica, vou pensando e fazendo, à medida que ponho uma coisa, as decisões restringem-se…”
O Ivo nunca faz só um quadro, “quero sempre ver se consigo ir mais além, uma pessoa nunca sabe, com os mesmos dados avanço para outra coisa, faço sempre dois.”
E a sua obra agrupa-se em duetos, um trabalho responde a outro, com os mesmos princípios, alterando-os, duetos que se enfrentam, se defrontam, se contradizem.
São dois os Deriva dos Continentes, dois os Duplos (um, belíssimo, compacto, mais pequeno, de 50×50 cm, Duplo quadrado sobre cruz, outro, maior, 150×170 cm, Duplo rectângulo sobre cruz, eram três, ficaram dois), espelham-se, prolongam-se. Ou as partes respondem-se como num díptico que me mostra, cinzento, em que marca a geometria de grandes linhas pretas, num dos lados sobrepondo-se, noutro subjacente à muita tinta, quase cerâmica, tinta que dir-se-ia foi ao forno, queimada.
E cortam-se ao meio as suas esculturas, os dois bancos sobrepostos do Ready-Made assistido que um espelho interior ainda multiplica, o espelho que entra na lua e a coloca por baixo da personagem, o espelho que se intercalava na exposição de auto-retratos, remetendo para quem via a visão do que via, comparando.
E são dois estes Black on White e Blue on White que agora finalmente me mostra, imateriais.
“São tão surpreendentes, estes…”, digo, “há menos drama…”, arrisco. E ele sorri.
“Não estou interessado em ter um estilo, não quero marca, quero fazer coisas diferentes, experimentar, variar, faço uma coisa, depois passo a outra, sou um bocado errante.”
E lembro-me da frase de Hitchcock que tanto aprecio “ter estilo é fazer sempre a mesma coisa exactamente da mesma maneira”.
O Ivo sorri e vai lá dentro desembrulhar outra tela.
“Mas vais dizer-me que sou um mentiroso”, e mostra-me um, depois outro trabalho, depois mais um – e, contrariando o que antes me dizia, dir-se-ia que me mostra agora uma série, com vermelhos e círculos, num jogo muito complexo, vibrante, de negativos e positivos. Mas não é uma série, diz, “este, estás a ver, não ficou bem, falta-lhe qualquer coisa que estava no primeiro que fiz, o mais pequeno, e depois consegui fazer neste terceiro, este fica aí, talvez volte a pegar-lhe, não sei, por enquanto ficam os dois”, e fala-me dos Duplos Rectângulos/ Duplos Quadrados, a que ainda um dia virá acrescentar-se um terceiro, sabe lá.
“Não sei.” Diz.
No desenho não, Ivo insiste, faz em abundância, olho para um daqueles excelentes desenhos imbrincados que fez depois de ler o Maelstrom de Edgar Poe, são vinte e tal desenhos, trabalhados, vertiginosos, de 2004, a prosa de Poe exigindo vórtices, vertigens, azuis de muita noite, precipícios, imagino uma parede imensa em que estes pesadelos se somam, piranesis sentidos, tão delicadamente labirínticos.
“Eu aqui reconheço-te”
Ele sorri: “percebo-te.”
“É este o estilo Ivo, um arrebatamento?”
“Não resisto a mostrar-te este, de 1994. Só é pena não ser maior, não pensei nisso na altura, mas agora tenho pena.”
E desembrulha devagar uma tela carregada de matéria, negros que até terão sido queimados, vermelhos dolorosos na parte inferior, prisões incendiadas.
Paisagem Andrógina , assim se chama.
E é um grande trabalho daquele Ivo que reconheço, intenso, vulcânico. Que foi um dia exposto, precisamente, em São Miguel.
“Fizeste de propósito para cá?” disseram-lhe.
“… mas eu nunca tinha ido aos Açores…”, ri.
E depois de um silêncio: “É pena é não ser maior”
E ao levantar-me, olho para um dos primeiros desenhos que me mostrou esta tarde, delicadíssimo trabalho em papel vegetal que se rasgava, pintando por cima, abrindo rasgões sobre o suporte, a harmonia de um desequilíbrio dominadissimo.
“Nem era para ser um desenho, era uma maquete para um convite para uma exposição, estava a fazer aquilo e olhei a certa altura, e era um trabalho e estava feito, muitas vezes avanço para coisas que não sei bem o que são, sou um bocado errático, se vires bem, as coisas são diferentes… faço isto e depois avanço para outra coisa, nem sei bem”
E volto a pensar na exposição de Lagoa que apenas vi pela janela iluminada, altas horas da noite, os retratos alternando com espelhos, como se o espectador fosse o cheio do silencioso retrato, a carne daquela ferida, a dor daquela paz distante, ou o eco, o vazio onde a imagem chega.
E depois de voltar, Ivo diz-me “esqueci-me de te mostrar um politpico, de seis partes”.
Como será?
Ulissses, viajante, Ivo vai deixando para trás, em duetos, os dias que foi passando, avança, tenta, insiste, errando avança, há tanta coisa para fazer, para descobrir.
“E não temos certezas, sei lá, pode ser que assim fique melhor, seja melhor”, avisa, como quem hesita e procura Castor e sempre Polux, os gémeos, essa imperfeita unidade, agora estrelas.
Regresso a Lisboa e lembro-me dos desenhos espalhados pelo chão, respondendo-se aos pares, errantes com o seu segredo, eco, sombra ou duplo, constelação.
Ou, como provavelmente me dirá o Ivo um dia destes, cada um é um passo apenas (mas depois de que passo?), um caminho (depois de que caminho?), um percurso que ele fez, ele que um dia pegou nas botas enlameadas numa estrada perdida, e nelas fez ecoar as botas de Van Gogh, coladas a um pedaço de chumbo, peso a que, pesado, responde citando Heidegger (aquele que, nas botas de Van Gogh, liga a terra ao céu), Artaud (“Depois de Van Gogh ninguém saberá fazer mexer o grande címbalo”), esse Artaud que lhe abrasou a juventude (“Quando eu li o Teatro da Crueldade… aquilo sobre a peste… não é sobre a peste, ele é a peste mesmo…”)
Um dia, daqui a uns anos, sentamo-nos para uma entrevista demorada; é que o Ivo demora, responde, ecoa, duplica, avança, ri.
Errante, lá vai ele, segue pelo ínvio caminho do desconhecido, ouvindo Coltrane, Wanderer, também.
Jorge Silva Melo
Janeiro 2008