Spiro Scimone

Parar para ver, aprender a ouvir

Spiro Scimone nasceu em 1964 em Messina, Sicília. Estudou numa escola de teatro em Milão e, juntamente com o seu colega Francesco Sframeli, representou Beckett, Mrozek e Havel. Em 1994 escreveu a primeira peça, Nunzio, que enviou ao encenador Carlo Cecchi. Foi a partir desse encontro que começou a sua companhia própria e a escrita de peças “não por ter necessidade de escrever”, diz ele, “mas para imaginar uma partitura, um material que possa ser possuído pelo corpo, a alma e a voz até obter uma língua de teatro”. A Nunzio (que em 2001 adaptou ao cinema com o título Due Amici, tendo vencido o Leão do Futuro no Festival de Veneza 2002), seguiram-se Café e A Festa. Estas três peças foram publicadas pelos Artistas Unidos, em traduções de Jorge Silva Melo (com a colaboração de Américo Silva e Alessandra Balsamo), no primeiro volume da colecção Livrinhos de Teatro. Spiro Scimone esteve presente no Festival de Almada 2002 a convite dos Artistas Unidos e com o apoio do Instituto Italiano de Cultura. Regressa em 2003 com a sua produção de A Festa. Em Setembro de 2003 estreia a sua quarta peça, Il Cortile.
Os Artistas Unidos já produziram: Café (Bar), estreado n’a Capital – Teatro Paulo Claro em 3 de Janeiro de 2002 com interpretação de Américo Silva e Miguel Borges (alternando os papéis), cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves, Isabel Nogueira e José Manuel Reis e luz de Pedro Domingos, num trabalho de Américo Silva, Joana Bárcia e Miguel Borges; Nunzio, estreado no Festival de Almada em 15 de Julho de 2002 com interpretação de Miguel Borges (Nunzio) e João Meireles (Pino), cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves, Rosa Gonçalves e José Manuel Reis e luz de Pedro Domingos, num trabalho de Américo Silva, João Meireles e Miguel Borges (com a presença do autor).
Os Tá Safo (em co-produção com os Artistas Unidos e o Citemor) estreiam A Festa no Teatro Esther de Carvalho em Montemor-o-Velho em 25 de Julho de 2003, com interpretação de Miguel Borges (A Mãe), Américo Silva (O Pai) e Pedro Carraca (Gianni), cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves e luz de Pedro Domingos, num trabalho de Miguel Borges, Américo Silva e Alda Moreira.

Do princípio
Para poder fazer trabalho de actor tive de escrever. Frequentei a Escola de Arte Dramática de Milão e o meu colega Francesco Sframeli, também de Messina e da minha idade, fez a escola do Piccolo. Decidimos os dois que não queríamos ser actores nas companhias de repertório que existem em Itália e nós chamamos di giro (onde estão umas vedetas e nós à sua volta). Queríamos fazer um teatro onde fôssemos nós a procurar os textos. Fizemos isto durante cinco anos, representando Mrozek, Beckett, Havel. Mas demo-nos conta de que, ao montar estes espectáculos, mesmo com uma qualidade que até foi reconhecida, o facto de sermos actores desconhecidos fazia com que ninguém nos viesse ver, só os amigos. Houve um momento em que tivemos de escolher entre continuar tentando inventar qualquer coisa ou desistir. Foi nessa altura que comecei a escrever as primeiras páginas de Nunzio, pensando em duas personagens (para podermos montar o espectáculo com pouco dinheiro). Escrevi o texto pensando em mim e no Francesco, mas não é um texto escrito por medida. Enviei-o para um concurso, o Prémio Italiano de Dramaturgia, e ganhei. Nessa altura, percebemos que tínhamos em mãos qualquer coisa de importante.

Carlo Cecchi
O nosso ponto de referência teatral, mesmo se ele não nos conhecia, era (e é) Carlo Cecchi; mandámos-lhe o nosso texto e, através de um amigo comum, dissemos claramente que queríamos que Cecchi o lesse e, se o achasse interessante, queríamos que o encenasse — mas que os actores seríamos nós. O Carlo ficou curioso (porque é uma pessoa curiosa), leu logo o texto e, passada nem meia hora, telefona e diz: “Quero conhecer-vos, porque lendo o texto percebi que há um pedido de ajuda sincero.” Quando já tínhamos começado os ensaios, ele contou-nos que, quando o tal amigo comum lhe falou de dois actores desconhecidos que queriam que ele encenasse o texto de um deles, ele lhe tinha dito: “São doidos.” Depois viu qualquer coisa de verdadeiro, de real, de forte: lendo o texto, percebeu que não éramos assim tão malucos; sentiu que era necessário, fundamental este encontro. E decidiu fazer a encenação.
Carlo Cecchi, que é um dos homens de teatro mais importantes em Itália, nunca tinha encenado um texto de um autor contemporâneo italiano. Naturalmente, tudo isto criou uma grande atenção da crítica e do público. Quando leu Nunzio, disse que podíamos pôr em cena este texto ensaiando só vinte dias. Mas nós queríamos criar um acontecimento, ensaiámos dois meses com ele. Foi um trabalho de pormenor, como actor; mas também de escrita. Para mim como autor também foi importante. Aquela secura que já se entrevia no texto, o Carlo ajudou-me a torná-la ainda maior. Fizemos assim um espectáculo que se tornou um grande acontecimento em Itália e foi a partir dele que algumas portas se abriram. Foi o início, não diria de um novo percurso, mas, graças à escrita, de novas oportunidades. Depois disto, eu e o Francesco, mas não só nós, ficámos muito mais interessados em espectáculos escritos por mim do que por autores importantes, clássicos. A novidade é sempre melhor, quando há essa possibilidade. Neste momento, no âmbito nacional e internacional, há uma procura das coisas que escrevo e interpreto.

O dialecto
Escrevi as duas primeiras peças em dialecto porque se costuma dizer que é difícil escrever em italiano. Na realidade, não é fácil. Mas o que é difícil é escrever: seja em dialecto, seja em italiano, português, espanhol, inglês, escrever é que é difícil. Cabe ao autor criar um som, inventar uma língua teatral. Estas palavras conhecidas devem estar num conjunto, devem ser reunidas de modo a criar um som harmonioso, que fascine, que capte a atenção do espectador e do actor. O meu dialecto messinês, quando o falo com os amigos, não é o da peça. As palavras são aquelas (um messinês percebe-as todas), mas são construídas de modo a criar uma língua teatral, para um lugar que é mágico, onde há actores que têm de interagir e pessoas que os observam. É preciso criar algo que seja mais forte do que o real. O que é real só me interessa como ponto de partida. Não podemos representar o que vemos na vida, porque na vida é muito mais forte, não posso gravar duas pessoas que falam e depois transcrever, para os actores dizerem.
Depois, em A Festa, escrevi em italiano, na língua comum, também porque se diz que é difícil. Queria fazer essa experiência. Com as palavras italianas, criar um texto, uma musicalidade, como fiz com o dialecto. A Festa tem uma musicalidade que se percebe que vem da mesma mão que escreveu Nunzio e Café. Mas são palavras italianas, embora construídas num modo de dizer meridional. São sicilianas, são minhas, pertencem-me.
Nunca tive o problema do regionalismo: os nossos espectáculos foram a Cremona, a Mântua, a Milão… para eles, o siciliano talvez seja mais parecido com o português do que com o italiano. Não se trata de um discurso linguístico, é um discurso de emoções, de sensações. No teatro, há o corpo, que te leva a perceber mesmo em África, na Rússia, em qualquer lugar do mundo. É verdade que se fala do específico: em Nunzio fala-se continuamente de esparguete, de queijo de ovelha, que são coisas nossas. Mas não devemos ficar pelo que está na primeira camada, há toda uma angústia nesta personagem que vive para comer massa, como podia viver por outra coisa. Um escritor deve sempre partir do que realmente conhece, e se escreve assim, não se deve preocupar com ser localizado num único e determinado país ou contexto. Se fala de emoções e sensações, elas pertencem a todos.

As três peças
As três peças não são uma trilogia: há um ponto ou pontos comuns com a precedente, mas também transformações. Gosto de uma evolução gradual.
As três peças formam um universo de personagens deserdadas, marginalizadas, que têm uma contínua necessidade de relacionamento humano, verdadeiro. São estes um pouco os temas que ligam as três peças. Como n’ A Festa, por exemplo, onde há esta ausência de comunicação no interior do núcleo familiar, que devia ser o lugar onde começa a comunicação: se ela não existe num sítio onde estão pai, mãe e filho, que estão ligados não só por relações de amizade mas por algo ainda mais forte, de sangue, por um vínculo natural, se já neste núcleo falha a comunicação, imaginemos o que acontece no momento em que se cresce e se tem de interagir com pessoas desconhecidas.

Nunzio
Também em Nunzio há esta solidão. Vocês que montaram o espectáculo devem ter-se dado conta (lendo Nunzio, estudando-o, nos ensaios, tentando aprofundá-lo mais e mais) de que as duas personagens, Nunzio e Pino, por vezes falam como se fizessem monólogos. Fazem um percurso que têm na cabeça, como se fossem dois monólogos que depois se encontram.
Conto-vos um pouco como nasceu o texto: estava clara para mim a personagem Nunzio, estava muito mais precisa na minha cabeça. Mas para criar um conflito (porque o teatro existe quando nasce um conflito), queria criar outra personagem mais sombria, obscura, que escondia coisas intuídas por Nunzio mas nunca ditas: nem ele tinha a coragem nem o amigo lhe dizia o que fazia. Devo ter escrito cinco ou seis páginas: ainda não estava precisa a figura de Pino.
Nunzio começa com a doença do protagonista, que diz: “Jasu, tou a pudir-te-lo. Tira-me jé ’sta tusse pa lunge da mi… Jó.” Começa a ter a consciência de que está a morrer. Mas mesmo assim, não se rende. Pede ajuda ao Sagrado Coração de Jesus, mas como? Dizendo logo a seguir (percebendo que nem o Sagrado Coração o pode salvar, e também para fazer avançar o texto): “Ó se te dó más jâto, tira-ma amunhã.” Ele sabe: é a morte. Para criar uma situação forte, pensei numa personagem que escondia qualquer coisa e depois lembrei-me que também (foi uma intuição fundamental) a outra personagem devia ter a morte às costas: seria alguém que a dava, o killer, alguém que é causa de morte. Nunzio não é uma comédia, fala da morte: está na base de tudo, é aquilo que está sempre por cima. Falam de mulheres, de tudo, mas o que há da primeira à última fala é a morte.
Criada esta situação que ligava as duas personagens, para fazer nascer o diálogo e a peça coloquei Nunzio na fase terminal da doença, quase a morrer. E Pino, vendo o amigo a morrer — depois descobre-se que ele é de certa forma o reflexo do irmão morto em criança — ele para quem a morte é qualquer coisa de mecânico, matar e chega, sem piedade, vê também a sua própria morte. E Pino está mais sozinho do que Nunzio, que tem ao menos a fantasia que o ajuda a viver, ele nem isso, provavelmente já está morto. Com a morte do amigo nasce nele o problema tremendo: se ele morre, eu também morro, mesmo vivendo a vida deixa de existir. E começam a aproximar-se, a falar verdadeiramente um com o outro. É a primeira vez que os dois, que vivem na mesma casa (quem sabe há quanto tempo?), se começam a aproximar, a falar, como se fossem crianças. O que é bonito em Nunzio é que os amigos descobrem as coisas pouco a pouco, não se entra demasiado no íntimo. Se fosse a história de um casal, estas coisas saber-se-iam, não se podiam esconder.
O texto chama-se Nunzio porque, para mim, é a história de Nunzio: é o protagonista, o motor, quem através das suas perguntas infantis consegue perceber Pino, quem sabe levá-lo (e diz isso a Pino, a quem o souber levar ele dá-lhe o coração). Com efeito, Pino faria tudo por Nunzio, porque este o faz sentir importante com as suas perguntas. Nunzio não ala só por falar, pergunta para tentar aproximá-lo cada vez mais de si. No fim, faz tudo para não o deixar ir-se embora para a sua missão. Estas perguntas e respostas não são uma luta pelo poder como n’O Serviço de Pinter, existem para não romper a ligação. Um vive em função do outro. Imaginem, os dois num mundo de imigrantes, de isolamento (no filme podem ver-se relações com o exterior, mas não são relações verdadeiras). Os dois estão ligados por um discurso linguístico, são da mesma terra, falam a mesma língua. Há, por conseguinte, o medo de, se morrer um, a vida deixar de fazer sentido para o outro. Pino, pela primeira vez, começa a não querer fazer o que faz. Não queria ir-se embora e preferia ficar com o amigo, sob pena de ser morto ele próprio, queria fazê-lo viver os seus momentos mais belos, nas últimas horas queria levá-lo às putas, a passear, a comerem juntos… também para ele são os últimos momentos, provavelmente.

O teatro
Em Nunzio e em Café há uma fuga do exterior, escondem-se dele. Aqui nas traseiras de um café, ali em casa. Não há tanto um discurso da casa como ambiente claustrofóbico. Pelo contrário, para eles a casa tem uma função de protecção, mas não podem viver fechados em casa. Mesmo se, para eles, naquela casa há vida.
O teatro para mim não é uma fuga, é um lugar de magia onde ninguém pode dizer-me o que fazer, onde é permitida a liberdade absoluta, não há censura, não existem condicionamentos. Nesse lugar, posso dizer e fazer tudo o que quero. Naturalmente depende, depois, das próprias escolhas. Muitas vezes escrevo aquilo que não queria que acontecesse na realidade. Não quero dar uma solução, quero mostrar o que pode acontecer. O fazer ver é talvez o motivo que mais me interessa: fazer parar para ver, coisa que, na vida, talvez não façamos. Vemos duas pessoas que realmente precisam e continuamos a andar rua fora. Uma coisa que me cria sempre cada vez mais angústia é a solidão do ser humano (não num contexto de isolamento e sim de muito movimento, de multidão). E eu tenho a possibilidade de fazer ver isto num lugar onde quem costuma ir pela rua, nós, os espectadores, estamos ali e pagamos para ver. Acho que sou bem sucedido quando se sai e se procura ter cá fora a mesma atenção que se teve no teatro. Quando se vê alguma coisa de que não se gosta, deve-se fazer tudo para que não aconteça.

Poucas personagens
Para contar um corte de cabelo, não preciso de seis barbeiros… A mim não me interessa o número e sim a essência que leve ao máximo a peça. Quando compreendes que tudo o que querias dizer pode ser dito com duas, ou uma, ou três personagens, não vejo a necessidade de inserir outras personagens que se transformam no acompanhamento mas não trazem nada de mais à peça. E vice-versa, se percebes que te falta qualquer coisa, que talvez tenhas de inserir outra personagem, está tudo bem.
Nas minhas peças, há personagens que não se vêem mas existem, como a Mãe ou o Animal em Café, que tomam corpo na imaginação do espectador: o teu Gianni/Animal pode ser mais gordo ou mais magro, depende. As outras personagens existem mas não se vêem porque para o tipo de histórias que quero contar são muito mais fortes do que se se vissem. Por exemplo, quando chega a mãe, é melhor não se ouvir nada. É lindíssimo quando primeiro se ouve a campainha, ele sai, volta, “Qui era?”, “Mi mãe”. Depois: Trrim, ele sai, volta, “Qui era?”, “Mi mãe”. O silêncio é melhor.
N’A Festa inseri uma terceira personagem porque queria falar da família e a família é pai, mãe e filho. As relações continuam a ser a dois: o pai e a mãe têm diálogos que fazem viver o filho, a mãe e o filho têm diálogos que fazem viver o pai. O bonito é que se cria assim um diálogo entre pai e filho, que não se falam. Era mais forte não os fazer falar um com o outro. N’A Festa, pai e filho são duas gerações diferentes mas são a mesma coisa, e a mãe diz isso.
O filho chama-se Gianni, como o Animal, voluntariamente. Ao escrever vi que podia haver pontos comuns com Café: o filho é um tipo que não se sabe como é que traz dinheiro para casa, é quem sustenta a família. Foi de propósito que quis manter o nome: podia tê-los chamado Pai, Mãe e Filho mas chamei Pai, Mãe e Gianni. Até porque a mãe tem um discurso angustiante, sempre a chamar: “Gianni, Gianni, o que é que queres?”, enquanto que, com o pai, marido e mulher já não se tratam pelo nome. E o pai de Gianni é, em parte, o Petru de Café, que joga às cartas e perde o dinheiro todo: para pagar, fazem-no trabalhar e o dinheiro nunca mais chega. É este o mundo, reportado depois ao discurso familiar. A mãe n’A Festa é em parte a mãe do empregado do Café.

As cuecas
Esconder coisas nas cuecas é um facto verdadeiro: não comigo, mas lembro-me que quando o meu irmão mais velho partiu para fazer o serviço militar, a minha mãe lhe disse para estar atento e lhe fez uma bolsa para esconder o dinheiro, porque é o sítio onde dificilmente pode ser encontrado…
A mãe usar as cuecas de Sara em Café é o mesmo mecanismo que n’A Festa, quando a Mãe decide como deve ser a mulher do filho. É a mesma relação mórbida que conheço doutras situações: o dormir na mesma cama que a mãe deve parecer uma coisa inventada, mas existiam situações de morbidez da mãe em relação ao filho, às vezes por necessidade, como uma família de sete pessoas com um quarto e meio para dormirem todos.
Outro elemento comum é a bebida: o vinho em Nunzio, em Café os copitos, n’A Festa o espumante…

O cómico
O cómico é uma necessidade de, através do sorriso, procurar superar mesmo os momentos mais trágicos, andar em frente. Mas as minhas peças não são três comédias, antes pelo contrário. Quando há o elemento cómico e o trágico, para mim é encontrar uma completude, que faz levar ainda mais longe a natureza dramática da peça. O público não é (como para muitos) estúpido e passivo, é activo, muito inteligente e não o posso enganar (quando pensas que estás a enganá-lo, estás a enganar-te a ti mesmo e os actores sabem isso: o espectador pode aplaudir por cortesia ou educação, mas sabe quando viu uma coisa de um certo tipo ou doutro). É por isso importante que quando o espectador ri (por exemplo no Café, o discurso da mãe, do dormir juntos, do fechar a porta do quarto para ela não poder entrar e ele diz que ela assim não podia era sair), depois pense e diga: “Mas eu ri-me disto?” Conseguir manter este equilíbrio entre cómico e trágico é essencial.
No Beckett, a coisa mais interessante é que cria este equilíbrio extraordinário entre o cómico, o grotesco e a situação trágica. Para o À Espera de Godot ele parte do desespero dos mendigos, das pessoas que se encontram, que têm de falar, têm de dizer estas coisas para andar em frente, para viver. De facto, o que é que lhes mete medo, a Vladimir e Estragon? Para mim, são os momentos de silêncio, que se tornam angustiantes porque ali é que pode acontecer a catástrofe.

O não-dito
“Mafia” é uma palavra que não é utilizada porque não é preciso dizê-la no momento em que se percebe. Eu tento sempre não dizer o que já está a acontecer. O objectivo é esse, conseguir dizer o mais possível, sem “dizer”. Se nos puséssemos a estudar palavra por palavra o que dizem as minhas personagens, acabávamos a primeira leitura dizendo: de que é que estão a falar?, falam de esparguete, de moscas, que é que se passa? Mas é aquilo que está por baixo do que está escrito que te faz perceber.
Para tentar explicar o trabalho que fizemos: em Nunzio, quando chega o terceiro envelope (com o dinheiro), Nunzio pergunta: “Eles pógum-te intes?” e Pino responde: “Metóde, pógum metóde.” “E o qu’é qu’acuntacia sa mólta garrosse no pupel e nu fusse pó Brósi?”, pergunta Nunzio. Aí havia uma fala de Pino que dizia: “Coméçum a pur debóxo de la purta a mi futo.” E a seguir eu continuava: “Daxei um becado de môlhe no frigarífic’. Pudes fezer um espurguete calquer menhã…” Cortando aquela fala, torna-se mais forte. No mesmo tempo da fala, faço só este gesto de virar a cabeça, olho-o, silêncio. E neste silêncio acontece tudo, porque ele te fez uma pergunta precisa, todos sabem qual é a resposta e eu não lha dou. Mas dou-a de outra maneira, faço um testamento. Está tudo nesta pausa. Quando se consegue isto através do não-dito, torna-se cem mil vezes mais forte.

Abertura
Antes de começar os ensaios, já há um texto, que naturalmente dei a ler ao Francesco Sframeli antes de todos e depois às outras pessoas. Quando decidimos que podemos começar, o texto que escrevi não é definitivo, não o considero assim. Representando-o tenho de ter um papel duplo, desligar-me um pouco. Percebo às vezes que há coisas a reescrever, a cortar, estou muito aberto, tenho a máxima disponibilidade.
Aconteceu uma vez, com Café, que o Francesco (um actor extraordinário), durante os ensaios, a certa altura não conseguia continuar, e dizia “não sei o que se passa”. Eu, conhecendo o Francesco, depois da primeira, da segunda, disse “Stop! Temos de interromper os ensaios porque há um problema de escrita, de dramaturgia”. Havia qualquer coisa que não funcionava. Eu levei toda a noite a pensar e percebi que faltava não uma fala mas uma cena, toda a terceira cena do acordar nasceu durante os ensaios. Havia todos os fechos do café e faltava-me, a meio, a abertura do café.
Cheguei a isto através do bloqueio do actor. Sendo actor, percebo que nem sempre aquilo que, lido, é muito interessante ou bonito, tem no palco os mesmos resultados. Se um escritor se fecha e diz: “Não, é assim, és tu que não consegues fazer isto”, é perigoso. Porque o teatro não é assim, o teatro está sempre em evolução, nunca é igual. Entre a página escrita e o espectáculo acontecem coisas, pode ser um gesto do actor que faz intuir que não é preciso dizer aquela fala. Podes tornar-te o maior autor do mundo, mas mantém sempre esta abertura: o texto, uma vez escrito, ainda pode ser modificado, especialmente se te dás conta de que podem faltar coisas. E então está tudo bem, se há abertura, há movimento, energia.

Due Amici
Na passagem de Nunzio a filme, na escrita do argumento, foi tido em conta que se podem ver certas coisas que no teatro são ditas, mas não como são ditas no teatro e sim em função do que deve ser o filme. Só fizemos o filme quando tivemos a certeza de que não estávamos a fazer uma transposição cinematográfica da obra teatral, quando nos demos conta de que podíamos encontrar outras situações, contar quase uma nova história de Nunzio e Pino com um meio diferente do teatro.
Enquanto que, no texto teatral, é Pino quem tem relações com mulheres, etc., no filme é aquele que já não fala com ninguém, só com Nunzio, é o mais solitário de todos. É Nunzio que tem as outras situações, à sua maneira. Até o final é diferente. E porquê? Porque não me interessava fazer a mesma coisa. Senão, em três dias, com um realizador, filmávamos o espectáculo.
Queríamos chamar-lhe Nunzio. Mas por causa das coisas do mercado (“Nunzio não é cinematográfico”, “Ah não?”, etc.), tivemos de aceitar este compromisso. Tudo somado, a palavra “amizade” interessava, portanto Due Amici. De resto, os produtores foram óptimos, fomos nós que decidimos tudo, sobre os actores, sobre como montar, os sítios onde filmar… Obtivemos tudo isto que queríamos porque foram eles que vieram ter connosco. Giuseppe Tornatore, que tem uma produtora com o irmão, veio ao teatro, viu o espectáculo e disse: “Porque não experimentam escrever um filme?” Foram eles a pedir, não fomos nós lá com o argumento a dizer que queríamos fazer um filme, à procura de dinheiro.
Dizíamos sempre que o cinema era uma outra coisa que podíamos experimentar e conhecer, a que voltaremos provavelmente, mas continuamos a fazer os nossos espectáculos. Neles tivemos sempre um encenador exterior, um olho exterior. Mas no cinema fomos nós que realizámos porque estávamos a entrar num mundo de que tínhamos medo. Quisemos ter um controlo total. Claro que na rodagem relaxámos um pouco porque tínhamos um grande director de fotografia que entrou no nosso mundo, o Blasco Giurato, que nos ajudou imenso. Mas não foi fácil…

Ouvir
No teatro, mas também na vida, há o problema de não ouvir, ou de fingir que se ouve: a carência, a ausência total de diálogo. Falamos, falamos e não ouvimos verdadeiramente. Mas não as palavras, não ouvimos a emoção, às vezes o pedido de ajuda. Quantas vezes acontece que se ouvires verdadeiramente uma pessoa percebes que há um discurso na maneira como fuma, que esconde um problema muito mais sério, de solidão. Mas não é fácil pedir ajuda.
No teatro, eu sei que tenho de responder depois de me dizeres uma certa coisa, tu podes dizer-me outra e eu ouço aquela. Ou quando tu me dizes a fala e eu digo a seguinte sem a ouvir… só que nem sempre ma dizes da mesma maneira todas noites. Se eu te ouvir verdadeiramente, respondo ao que me disseste nessa noite.
Como é que se consegue comunicar através do silêncio? Através da escuta, da escuta das emoções. É aquilo que não te digo que quero fazer passar. Para perceber o que não me dizes, tenho de prestar uma atenção particular àquilo que me estás a dizer, não só auditiva, mas de olhos, de olhares, de sensações… Quantas vezes se diz: “Nunca me tinha dito nada…” Quantas vezes se nega a evidência.

Depoimento recolhido a 14 de Julho de 2002 por Clara Rowland, Francisco Frazão, Jorge Silva Melo e José Maria Vieira Mendes. Agradecemos a Maria João Caetano ter-nos cedido a gravação da entrevista com Spiro Scimone que fez, no mesmo dia, para o Diário de Notícias.

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