STABAT MATER de Antonio Tarantino
Tradução Tereza Bento Com Maria João Luis Cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves Luz Pedro Domingos Encenação Jorge Silva Melo Estagiária Ana Teresa Santos
No Convento das Mónicas a partir de 12 de Outubro de 2006
A sessão de 22 de Outubro contou com a presença do autor.
O espectáculo foi reposto no Convento das Mónicas a partir de 12 de Fevereiro de 2007.
No Teatro Nacional de São João (Porto) a 31 de Maio e 1 de Junho de 2007
No Centro Cultural de Guimarães a 16 de Junho de 2007
No Teatro do Bolhão (Porto) de 13 a 16 de Setembro de 2007
No Museu dos Transportes (Coimbra) de 27 a 29 de Setembro de 2007
No Festival Rio Cena Contemporânea (Rio de Janeiro) 5, 6 e 7 de Outubro de 2007
No Teatro Viriato (Viseu) 12 e 13 de Outubro de 2007
Em Faro (Devir/Capa) 19 e 20 de Outubro de 2007
Em Loulé (Convento de Santo António) a 3 de Novembro de 2007
No Teatro das Beiras (Covilhã) a 24 de Novembro de 2007
No Centro de Artes do Espectáculo (Portalegre) a 30 de Novembro de 2007
Na Casa das Artes (Famalicão) a 2 de Fevereiro de 2008
No Festival Internacional de las Artes Escénicas (Sevilha) nos dias 19 e 20 de Abril de 2008
No Teatro São Luis (Lisboa) de 9 a 13 de Julho de 2008
O texto está publicado nos Livrinhos de Teatro nº 11
“São os tristes, os vis, os oprimidos”
Quando disse a Antonio Tarantino que lhe íamos fazer dois dos seus quatro Actos Profanos numa igreja abandonada de Lisboa, ele não queria acreditar ele que não gosta dos teatros, que prefere outros espaços, salas de festa, fábricas, armazéns, espaços onde a memória que ficou é a da vida e não a da sua representação, ele que, marginal entre os marginais, nunca teve estas suas peças por estas ruas da amargura.
Com efeito, mal Tarantino escreveu Stabat Mater, logo um encenador de grande prestígio, Sherif, se interessou pela dilacerante invectiva/diatribe desta mulher sozinha. E para o seu projecto convocou (em 1985) uma actriz sublime, Piera degli Esposti (cuja história pessoal está na origem de Storia di Piera , o belo filme de Marco Ferreri com Schygulla a fazer de mãe e Huppert a fazer de filha) e o mais talentoso dos artistas plásticos da nova vanguarda desses anos. Arnoldo Pomodoro. Essa equipa iria manter-se durante anos e os espectáculos que Sherif montou a partir dos textos de Tarantino percorreram, com enorme aplauso, os grandes teatros de Itália (e são muitos).
Nós não temos teatro. Nem grande, nem pequeno, não temos.
Nem nos querem nos teatros de estado ou municipais que começam a definir uma estratégia bem nítida em relação ao que desejam. E nós não somos desejados.
Por isso, e por cedência do Ministério da Justiça, fomos parar à Cadeia. Onde estamos até Dezembro de 2006. Cadeia das Mónicas. Cadeia de mulheres (a última que lá esteve foi a D. Branca com o seu cabelo emproado, bem a vimos na TV a entrar e a sair de lá). E o espaço que nos cederam é o da sua capela, grande igreja barroca que o tempo esvaziou, de que só ficaram as paredes, limpas, a estrutura do chão, a ligação da pedra com o estuque.
E o eco, aquele eco plebeu que o clero deixou nas partes da igreja onde o povo se junta para que a única voz nítida seja a que vem do púlpito, a voz do Verbo, a voz do padre.
Que bom, podermos fazer ecoar nestas paredes rasas, no meio do papelão dos sem-abrigo nem esperança, no meio de nós, no recolhimento para que sempre nos leva o imenso pé-direito das igrejas, esmagando-nos, que bom que é ouvir a diatribe de Maria em STABAT, a especulação crística de Eu-Ele em PAIXÂO, perder de vista os actores e deixar entrar a plebe, a ralé, aqueles a quem é mais fácil entrar no reino dos céus, os bem-aventurados, os aflitos, os inconsoláveis, neste espaço que, por letra das escrituras, haveria de ser o seu, o espaço de todo o consolo, de todo o remédio, o espaço do abraço infindo às misérias dos homens.
Foi um acaso, nesta deambulação para que fomos remetidos, viemos parar às Mónicas, mesmo em frente da casa de Sophia de Mello Breyner, para fazer ver, para ouvirmos aquela “gente que tem/ o rosto desenhado/ por paciência e fome”, gente “ignorada e pisada/ como a pedra do chão/ e mais do que a pedra/ humilhada e calcada”:
esta gente cujo rosto
às vezes luminoso
e outras vezes tosco
ora me lembra escravos
ora me lembra reis
Este o meu revoltado catolicismo, aquele que ecoa a voz rude, embriagada. dos pobres, voz sangrenta que não quero deixar de ouvir, que quero entender, na sua brutal frontalidade, na estranha riqueza do seu vocabulário, voz da plebe, da canalha, voz de “job leproso no seu lameiro” (Gomes Leal).
O seu tempo nesta terra havemos, a pouco e pouco, de fazer chegar, é nosso trabalho de ladrões de palavras, roubadores, havemos de criar nem que seja um teatro para depois da guerra, das chagas, da miséria, antes da morte.
Pois, como diz Gomes Leal:
“Eu vejo-a vir ao longe perseguida
como de um vento lívido varrida
cheia de febre, rota, muito além…
– pelos caminhos ásperos da História –
enquanto os reis e os deuses entre a glória
não ouvem a ninguém.
Ela vem triste, só, silenciosa,
Tinta de sangue, pálida, orgulhosa,
Em farrapos na fria escuridão…
Buscando o grande dia da batalha.
É ela! É ela! A lívida Canalha!
Caim é vosso irmão.
Eles lá vêm famintos e sombrios,
Rotos, selvagens, abanando aos frios,
Sem leite e pão, descalços, semi-nus…
(…)
São os tristes, os vis, os oprimidos
(…)
São os párias, os servos, os ilotas
Vivem nas covas húmidas, ignotas
(…)
Eles vêm de muito longe, vêm da História.
Frios, sinistros, maus como a memória
Dos pesadelos trágicos e maus.
(…)
Vêm uns ecos perdidos de batalha
Como uns ventos do norte impetuosos
– são os passos, nas trevas, vagarosos
Os passos da Canalha.
Gomes Leal, A Canalha
Nas Mónicas com Tarantino e as suas duas peças, STABAT MATER e PAIXÃO SEGUNDO JOÃO.
Com três actores que amo, a Maria João Luís, o Américo Silva e o Miguel Borges.
A ouvir, com sacro eco, as palavras rudes e repetitivas de Tarantino.
Nas Mónicas, capela de cadeia de mulheres, naquele bairro de tantas memórias anarquistas, comunistas e operárias, à sombra de uma igreja, a da Graça a cuja procissão do Senhor dos Passos, o mesmo Gomes Leal dedica um outro e belo poema, O Senhor dos Passos da Graça.
Não é isso o teatro: ouvir a esperança?
No encontro agónico da palavra com o lugar certo?
Nos fantasmas da História, esses únicos fantasmas que nos ficam, as palavras?
Jorge Silva Melo
Setembro 2006