27 de Janeiro de 2000 – 29 de Agosto de 2002 e 13 de Julho de 2003
Jorge Silva Melo
1.
Entrámos n’a Capital, esse enorme edifício abandonado entre a Rua Diário de Notícias e a Rua do Norte, em Novembro de 1999. Nós, os Artistas Unidos. E logo pensámos que poderíamos chamar para perto de nós as várias companhias e produtoras com quem vínhamos trabalhando, a APA, a Ilusom, a Re.Al, Diogo Dória, Solveig Nordlund, os Depois da Uma. Ainda não sabíamos o que lá íamos fazer, mas sabíamos que queríamos fazer coisas e coisas em conjunto. Estava tudo sujo, alagado. Quem nos cedeu o espaço — a Sojornal com a concordância da CML — dava-nos um tempo de exploração: até Maio de 2000. Fomos limpando, reparando telhas, localizando infiltrações, não tínhamos tempo a perder e também fomos planeando. E, entre detergentes e vassouras, abrimos em 27 de Janeiro de 2000, com a reposição de dois espectáculos, Dois Homens de José Maria Vieira Mendes a partir de Kafka e Num País Onde Não Querem Defender os Meus Direitos, Eu Não Quero Viver a partir de Michael Kohlhaas de Heinrich von Kleist. Depois, foi o que se sabe: com Vai Vir Alguém de Jon Fosse, encenado por Solveig Nordlund, estreámos a primeira produção nascida naquelas velhas paredes e não parámos: estreámos, repusemos, convidámos, acolhemos, entusiasmámo-nos, recebemos autores, organizadores, falhámos, discutimos. Do grupo inicial que se instalou nos vários recantos d’a Capital mantiveram-se unidos a nós a APA, a Re.Al, a Ilusom. E foram aparecendo outros (Eira, O Meu Joelho, Circo da Lua, Tá Safo).
Logo no final de Fevereiro de 2000, entregámos à CML e ao MC um plano de reconversão do edifício. Propúnhamos um Centro das Artes d’a Capital. Entregámos plantas e dossiês, projectos e orçamentos, entregámos cartas de intenção e recebemos nas instalações ministros e presidentes da câmara, chefes de gabinete e outros ministros. E, a cada novo ministro, lá íamos nós, de dossiê e orçamento em punho, ver se o projecto interessava (ver Revista nº 2). Todos disseram que sim, Carrilho, Sasportes e Santos Silva por um lado, João Soares pelo Município, todos acharam que o projecto e a dinâmica instalada eram coisa nova em Lisboa (“federativa”, considerou Sasportes) e que o MC deveria estabelecer um acordo com a CML para a realização deste projecto que é ambicioso mas possível. E a coisa ficou por aqui, pelo interesse demonstrado e pelo pedido sucessivo de mais dados, orçamentos, planos. As reuniões eram inconclusivas, o interesse apenas declarado, as decisões ficaram por tomar.
2.
Logo a 10 de Janeiro de 2002, no primeiro dia após a tomada de posse do Dr. Pedro Santana Lopes como Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, entregámos de novo, na recepção dos Paços do Concelho, o projecto de CENTRO DE ARTES DA CAPITAL, com cópia para a Vereadora da Cultura.
E, poucas semanas depois, reunimos com a Vereadora — que visitara o local e tivera conhecimento dos seus problemas desde uma sexta-feira 13 já não sei de que mês do verão de 2001 — para analisar essa proposta. Da análise surgiu a vontade clara de deitar mãos à obra e de verificar os muitos problemas que, até então, tinham ficado por resolver. Assim se iniciaram contactos regulares com a Vereação da Cultura. Também voltámos a entregar o processo ao Ministro da Cultura, em 8 de Abril, na manhã a seguir à tomada de posse do executivo. E reunimos, em finais de Maio, com o Secretário de Estado da Cultura, Dr. José Amaral Lopes, que, logo ali e à nossa frente, telefonou à Vereadora da Cultura para uma análise urgente do caso.
Estas reuniões ganharam mais precisão após a visita do Presidente da Câmara — em 4 de Junho — acompanhado do então Vice-Presidente Carmona Rodrigues, da Senhora Vereadora da Cultura e do Director Municipal da Cultura. O Presidente da Câmara despediu-se dando-me “parabéns!” e da Vereadora da Cultura dizendo “Agora isto é consigo!”
A partir desta data, tudo parecia delinear-se num sentido claro. Houve uma reunião n’a Capital, onde se procedeu a análise bastante pormenorizada das necessidades urgentes e a uma calendarização das intervenções. E estiveram presentes o Secretário de Estado da Cultura, a Vereadora da Cultura e o Director Municipal da Cultura. E aí se acordou que o primeiro passo seria retomarmos um plano de requalificação já entregue anteriormente ao MC no sentido de se fazerem obras a muito curto prazo no edifício (instalação de quadro eléctrico, sinalização de saídas, remoção de entulhos, coisas dessas) que permitissem a continuação da sua utilização até à definição — que seria conjunta entre a CML e o MC e, por isso mesmo, não poderia ser tomada à pressa — da viabilidade da nossa proposta. Esse plano, a que passámos a chamar “cirúrgico”, tinha como objectivo, por um lado, impedir a degradação do edifício e os custos da sua conservação e, por outro, permitir a normal temporada 2002/3. Em todas estas reuniões ficou clara uma vontade de estudar o projecto a longo prazo, de que este plano seria um primeiro e imediato passo.
3.
Em 5 de Julho de 2002, a EDP veio cortar a electricidade por ter passado o prazo acordado com a CML (esta ocorrência era regular, dado ser da responsabilidade da CML a instalação provisória da electricidade). Contactada a CML, foi-nos dito que esta renovaria o acordo com a EDP. A 9 de Julho, recebemos cópia de um fax nessa mesma data enviado pela Vereação da Cultura à Directora da DSEM, em que se solicita “que sejam tomadas as providências para que não se efectue o corte de energia por um período de um mês, momento em que esperamos estejam reunidas as condições para a regularização da cedência do imóvel aos Artistas Unidos”.
Começaram, então, inúmeras visitas ao edifício, coordenadas, ora pelo Gabinete Técnico do Bairro Alto, ora pelo Pelouro da Cultura. A última foi em meados de Agosto de 2002 organizada pela Dr.ª Lucinda Lopes acompanhada pelo Sr. César Gomes e por bombeiros que vieram tratar do mapa da colocação dos extintores, sinalização de emergência, plano de remoção de entulhos, sendo-nos repetidas vezes dito que deveríamos actuar com rapidez para que a temporada pudesse abrir normalmente no dia 5 de Setembro. De tudo isto, possuímos cartas trocadas, faxes, registos. E a memória das horas à espera que termine a eterna “reunião” em que todos estes contactos parecem estar, desde sempre e para sempre.
Por outro lado, seguiam-se reuniões e telefonemas com o Dr. Monterroso Teixeira. A 16 de Agosto, nos Paços do Concelho, passámos à análise pormenorizada de alguns orçamentos do plano de “requalificação imediata”, cujas rectificações e actualizações nos comprometemos a apresentar quando o Dr. Monterroso Teixeira regressasse de viagem, uma semana depois. E previmos um encontro para os últimos dias de Agosto com a CML e o Arq. Pedro Maurício Borges (autor do esboço de projecto em Fevereiro de 2000).
No fim da tarde de 3ª feira, 27 de Agosto, recebemos um telefonema da Vereadora convocando para uma reunião no dia a seguir, que, no entanto, não se sabia a que horas poderia ter lugar. Informámos que só tínhamos uma hora na qual a referida reunião seria impossível (devido a consulta médica prevista para as 12h), mas que bastaria um telefonema para comparecermos na CML passada meia-hora. Houve, ainda, um outro telefonema já na tarde de 4ª feira, 28 de Agosto, mas, a sessão da Câmara desse dia ter-se-á prolongado, pelo que não foi possível o encontro. Na 6ª feira, dia 29, telefona o Dr. Monterroso Teixeira sugerindo duas horas diferentes para o encontro (15.30h ou 18h). Às 15.30h, a reunião teve início sem a presença da Vereadora. O Dr. Monterroso Teixeira avisou-me de que o Presidente despachara no sentido do encerramento do local para espectáculos. E perguntou-me se não seria possível mudarmo-nos para o Palácio Benagazil perto do Aeroporto, palácio que eu não conhecia. A Dr.ª Maria Manuel Pinto Barbosa chegou então e informou-me que o Presidente tinha despachado o encerramento do local ao público e ao funcionamento. Sugeri que deveríamos fasear o encerramento, tal como acabara de propor ao Dr. Monterroso Teixeira, e que não deveríamos pôr em causa a estreia, a 5 de Setembro, de Mouchette de Arne Sierens, tanto mais que este espectáculo — em vésperas de ensaio de imprensa — estava previsto para o rés-do-chão, que era, na opinião de todos, o espaço com menos perigo do edifício, dado possuir cinco saídas. Ficou combinado que eu iria preparar um mail a ser enviado, com a maior urgência, ainda nessa tarde com esta contraproposta. Ao entrar para o elevador do mesmo piso, toca o meu telemóvel — e perco a rede ao fecharem-se as portas. Já na rua, ligo para a Capital e dizem-me, nervosos, que a polícia municipal está no local com uma notificação que o mandava encerrar de imediato.
Nesse dia, não consegui mais contactar a Câmara (a Vereadora deslocara-se ao Chiado onde havia um encontro com o Senhor Primeiro Ministro) — a não ser à meia-noite quando, num debate da SIC-Notícias, me encontrei com a Vereadora do Urbanismo, Eduarda Napoleão, que aí publicamente se responsabilizou pelo parecer que, por questões de segurança, ditou o encerramento das instalações. Logo após o debate, a Vereadora avançou-me algumas hipóteses de solução. No dia seguinte, 6ª feira, 30 de Agosto, telefonou-me várias vezes, sugerindo vários locais para a apresentação dos espectáculos “destelhados” — locais que iam do Pavilhão do Futuro na Expo à Estufa Fria, ao CCB, ao Teatro Vasco Santana, uma das salas do Cinema São Jorge ou o Teatro Taborda. E, ao fim da tarde, combinámos um encontro para segunda-feira, 2 de Setembro, em que visitaríamos o Palácio Benagazil e planearíamos mudanças. Enviei, nesse dia, uma listagem das características técnicas da realização dos espectáculos, assim como de espaços adequados para a sua apresentação, que o Pelouro do Urbanismo se comprometeu a contactar directamente.
Nessa mesma 6ª feira, a polícia municipal entrou no edifício e deu ordem de prisão à Directora de Produção por crime de desobediência (essa funcionária assinara a notificação da véspera). O incidente foi resolvido com uns telefonemas para o Comando-Geral — e não houve prisão.
4.
Começam, entretanto, a surgir inúmeras mensagens de apoio vindas de amigos — a primeira a chegar foi de Jon Fosse, o nosso amigo norueguês que foi quem primeiro estreou e nos visitou n’a Capital — e até de desconhecidos que muito nos sensibilizaram.
Instalados num apartamento do centro de Lisboa, tentámos dar resposta aos inúmeros problemas, com uma permanência militante e uma só linha telefónica… Um abaixo-assinado circula, mensagens de apoio aparecem um pouco por todo o lado. Pela net, por carta, por telefone. E os ensaios de Nunzio recomeçam; e, na mesma cozinha, a horas diferentes, retomamos os ensaios de O Encarregado com estreia marcada para Dezembro na Culturgest.
Na 3ª feira, 3 de Setembro, pela manhã, telefona-me a Dr.ª Maria Manuel Pinto Barbosa dizendo que o estado de conservação e segurança do palácio Benagazil era “pior do que a Capital”. E, no dia seguinte, foi-nos sugerido visitar de imediato uma parte de um edifício de Braço de Prata (R. Fernando Palha, 26, R/C Esquerdo) pertencente à CML. Assim o fizemos, e acompanhados por ambas as Vereadoras e o Director Municipal, mas sem poder entrar em todas as instalações por não se encontrarem as chaves das arrecadações. Ficámos de aguardar pelas chaves (encontradas em 12 de Setembro) para avaliarmos da utilização a dar a estas instalações (poderia haver armazém? carpintaria? ou serviriam apenas de escritórios?).
Em visita à Capital efectuada a 4 de Setembro pela Vereadora do Urbanismo, o engenheiro João Appleton e o Gabinete Técnico do Bairro Alto, voltei a defender uma evacuação progressiva do edifício e a permanência de escritórios no prédio da Rua do Norte. Argumentei com os custos sociais que o abandono de um edifício daquelas dimensões representaria (intrusão, degradação acelerada na altura das chuvas, situação sensível sobretudo na Rua do Norte onde o quarteirão já quase não tem vida). A Vereadora manifestou desinteresse por esta minha proposta — tanto mais que, disse, as obras iriam ter início dentro de dias com o entaipamento de uma parte, e afirmou que eu próprio e o Arquitecto Pedro Maurício Borges seríamos chamados para analisar o plano de estruturação do edifício, tendo em vista a discussão — a partir de agora e de maneira clara — do futuro Centro das Artes.
No dia 5 de Setembro, fui chamado ao Ministério da Cultura para o final de uma reunião que, nessa mesma manhã, ocorrera entre a SEC e a CML. E foi-me proposto, pelo Secretário de Estado da Cultura, instalarmo-nos durante dois anos e a partir de Janeiro de 2003 num armazém actualmente ocupado pelo IPPAR nas antigas OGMEE em Belém. Nessa mesma manhã, foi possível visitar o edifício — que se encontrava em pior estado do que a Capital, sendo impossível nele instalar electricidade, correndo o perigo de infiltrações e incêndio. Mas, nas mesmas OGMEE, o senhor Secretário de Estado da Cultura descobriu outros barracões, afectos, não ao IPPAR, mas ao IPM. E foi-me dito que seria possível instalarmo-nos aí a partir de 1 de Janeiro de 2003. Estes dois anos corresponderiam às obras de requalificação n’a Capital, cujo início deveria ocorrer dentro de dias. Esta visita às OGMEE foi realizada com as Vereadoras da Cultura e do Urbanismo e com o Director Municipal da Cultura, assim como perante vários funcionários do MC.
Pedi um dia para voltar a analisar aquelas que me pareciam excelentes instalações — degradadas, mas excelentes — com tranquilidade. Consegui marcar essa visita logo para 6ª feira, 6 de Setembro. E, no dia 8, 2ª feira, enviei um fax ao MC com propostas claras de utilização e calendarização de trabalhos, mudanças, instalação. Propostas que também comuniquei à Vereação do Urbanismo: fazer-se uma evacuação gradual d’a Capital e utilizarmos o mais cedo possível um dos pavilhões das OGMEE para receber o material cenográfico d’a Capital que não fosse de uso imediato, até por causa das limitações de pé-direito das arrecadações de Braço de Prata que finalmente pudéramos visitar mas onde só nos conseguimos instalar a partir de Outubro.
5.
E sobreveio um inquietante silêncio. Por portas travessas e “fontes bem informadas”, começámos a ouvir falar de um orçamento de 120 mil contos para colocar telhas, instalar electricidade, limpar e desimpedir os barracões das OGMEE; falar de reuniões do MC com a CML para se averiguar quem paga o quê; ouvimos falar da indisponibilidade de alguns dos actuais usufrutuários desses barracões em no-los ceder temporariamente; ouvimos dizer que terá havido quem se precipitasse a encher de entulho os barracões que lhe eram afectos e que se encontravam totalmente devolutos a 6 de Setembro (quando os visitei com o João Fiadeiro, o Pedro Domingos, o Miguel Borges, o João Meireles e o Américo Silva). E quer a SEC quer a CML foram, durante estes meses, remetendo as decisões para reuniões a serem marcadas uma com a outra.
E chega Dezembro, o mês em que deveríamos abandonar as instalações de Braço de Prata e mudarmo-nos para Belém. Como prevíramos, nada disso aconteceu, a CML não chegou a acordo com o MC acerca dos pavilhões das OGMEE, e só a 23 de Dezembro tenho resposta cabal do Ministério em relação a esta promessa inviabilizada e a meu ver inviável.
Conseguimos, com a ajuda quotidiana do Pelouro da Cultura, resolver o início da temporada 2002/3, estreando todos os espectáculos que tínhamos previsto, embora com curtíssimas carreiras simbólicas, prolongando A Colecção de Harold Pinter no CCB, estreando Nunzio no belo Belém Club, repondo Há Tanto Tempo de Harold Pinter no Acarte e estreando Mouchette de Arne Sierens na Voz do Operário. A CML ajudou-nos a encontrar os espaços alternativos, os transportes e assegurou parte das despesas acrescidas. E ainda fomos ao Porto com três peças de Harold Pinter e fizemos, com o British Council, um Seminário de Escrita Teatral, em colaboração com o Traverse Theatre.
E assim passámos 3 ou 4 meses a enviar faxes, fazer telefonemas, copiar chaves, fazer orçamentos, mudar calendários e agendas, organizar transportes, arrumar papelada, empacotar, procurar documentos perdidos nos transportes, instalar telefones, desempacotar, aguardar telefonemas, voltar a enviar faxes, enviar e-mails, refazer orçamentos, ensaiar quando se podia, voltar a enviar faxes e a fazer telefonemas.
“O que resta de nós depois de dois meses sem tecto?” perguntávamo-nos em finais de Outubro de 2002, quando nos demos conta de que nada estava para acontecer, de que nada iria realizar-se como previsto, que, durante mais uns meses, teríamos de continuar a improvisar escritórios e salas de ensaio, arrumações e carpintaria e a fazer espectáculos lá de vez em quando, dez representações para Mouchette, nove para O Encarregado. O resto da temporada 2002 descambou: o teatro não é feito para se realizarem umas quantas representações e se arrumarem os tarecos como na Feira da Ladra pelas 6 da tarde, ao dobrar da meia dúzia.
Entretanto, já iniciáramos os nossos trabalhos para 2003. Iríamos repor O Meu Blackie de Arne Sierens nos primeiros dias de Janeiro no São Luiz e sobretudo fazer Baal de Bertolt Brecht, para cujos ensaios tínhamos contado com os avilhões das OGMEE então prometidos e logo indisponíveis. Que fazer?
Lá tivemos que alugar uma improvisada sala de ensaios à Fábrica Nacional, lá dividimos os trabalhos entre escritório e sala de ensaios, lá fomos continuando. Cada vez mais cansados, é certo, que o desgaste destes dias sem horizonte (“para onde vamos? o que preparamos?”) não tem preço.
A Secretaria de Estado da Cultura remetia todas as respostas às nossas perguntas para reuniões a haver com a CML. Esta afirmou que se tratava de uma “solução morosa devido à sua complexidade”, que “não poderá ser definida sem ponderar as devidas consequências e alternativas em termos logísticos e financeiros”. E nós de um lado para o outro.
Dobrou o ano e não nos puseram fora das instalações de Braço de Prata: em Julho de 2003 ainda lá estavam o os nossos escritórios e ainda lá se ensaiava (os APA ensaiaram lá um Strindberg, os Tá Safo prepararam A Festa de Spiro Scimone), O Meu Blackie foi feito no São Luiz e em Évora, Baal estreou em Viseu e lá fez a sua carreira em Coimbra, isboa (São Luiz), Famalicão (Casa das Artes) e Évora (Garcia de Resende). O cenário, que é grande, foi arrumado n’a Capital.
Durante meses, não soubemos até quando podíamos contar com essas instalações. A certa altura, foi-nos dito que poderíamos, no enorme quintal, instalar tendas onde arrumar o material; foi-nos depois dito que não. Foi-nos dito que poderíamos contar com dois anos de permanência lá; depois, que teríamos de sair a breve prazo. Se assinámos um contrato com a Somague que nos permitia utilizar aquele espaço até finais de Dezembro de 2002, só em 27 de Junho de 2003 se vislumbrou uma solução alternativa para os escritórios com a assinatura de um contrato de cedência para efeitos de escritórios, e por parte da EGEAC, das instalações da Rua de Campo de Ourique, nº 120.
6.
Em inícios de Fevereiro, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa chama-nos. E a reunião foi breve, simples, afável e determinada: por um lado, a garantia de que começaríamos as discussões do Centro das Artes e que o plano de reconversão do edifício seria analisado com o Arq. Pedro Maurício Borges; por outro, a proposta de nos instalarmos no Teatro Taborda durante o tempo em que decorressem as obras (avaliado em duas temporadas). E começaram, então, novas reuniões com a Vereação da Cultura e com a Vereação do Urbanismo de que saiu, em 19 de Fevereiro, um comunicado onde se diz “Foi decidido avançar-se de imediato com a preparação de um Programa para o futuro Centro de Artes, a ser apresentado por Jorge Silva Melo e sujeito posteriormente a discussão com a Vereação da Cultura da CML e outras personalidades e entidades representativas do meio artístico, que deverá estar concluído até ao final do próximo mês de Março. Com base num levantamento rigoroso das plantas e áreas disponíveis, a realizar pelo Gabinete Técnico do Bairro Alto, tutelado pelo Pelouro de Intervenção Urbana da CML, e no Programa funcional e cultural entretanto aprovado, será elaborado um estudo prévio para a recuperação do Espaço A Capital, enquanto equipamento polivalente, destinado ao teatro, à dança, ateliês, workshops, oficinas e centro de serviços. Dado o envolvimento do arquitecto Pedro Maurício Borges na conceptualização das funcionalidades para este equipamento e pelo acompanhamento dos estudos de arquitectura que serviram de orientação ao plano para um espaço multidisciplinar, foi decidido associá-lo desde já ao projecto final, ficando assim com a responsabilidade do trabalho de arquitectura. Perante a escala do edifício e as implicações orçamentais da obra, será implementada uma intervenção faseada de requalificação que permita a reabertura do espaço A Capital tão brevemente quanto possível. Para salvaguardar a actividade regular dos Artistas Unidos, foi apresentada a Jorge Silva Melo, em finais de Janeiro, pelo Pelouro da Cultura, a possibilidade de virem a centrar as suas actividades no Teatro Taborda, equipamento da tutela da CML.”
7.
N’a Capital começaram os despejos de entulhos, a nova limpeza dos algerozes, uma série de intervenções pontuais coordenadas pelo Gabinete Técnico do Bairro Alto; na Câmara, começou a discussão do programa das obras a partir de um documento que refizemos com base na experiência adquirida nos dois anos de vida lá.
Chegou a estar marcada uma reunião na Vereação da Cultura para o dia 24 de Abril para a discussão do programa de obras; a reunião foi anulada alguns dias antes sem alternativa; as reuniões sobre o Teatro Taborda sucederam-se até ao dia 23 de Junho em que uma proposta começou a ser analisada com rigor, tendo uma minuta de contrato de cedência sido enviada para nós em 27 de Junho.
As mudanças vão recomeçar.
8.
Escrevo este memorando na tarde de 11 de Julho de 2003. Já nos foram entregues as chaves dos novos escritórios; ainda não temos contrato para o Teatro Taborda; ainda não foi marcada reunião para a discussão do Centro das Artes d’a Capital e elaboração do respectivo programa. Pode ser que ainda hoje haja telefonemas, vivo este ano de telemóvel ligado mesmo em ensaios, aguardando marcação de reuniões.
9.
Foi um ano terrível, cansativo, depressivo, desmobilizador, triste. Trabalhámos que nem doidos, quase não se viu o nosso trabalho, perdemo-nos, reencontrar-nos-emos?
Foi um ano em que muita gente se foi embora; em que perdemos batalhas após batalhas; foi um ano de poucas alegrias, de uma modorra burocrática que também entrou por dentro de nós.
Foi também o ano em que recebemos apoio como nunca ninguém recebeu, apoios inquietos de quem, Europa fora, percebeu e se inquietou com esta história simples e obscura.
Foi um ano em que pudemos continuar graças a apoios pontuais da Câmara Municipal de Lisboa. Se conseguimos fazer os espectáculos, se conseguimos manter escritórios, deveu-se isso à atenta boa vontade da Vereação da Cultura.
E, no entanto, estamos sem solução. Se viermos a dispor do Teatro Taborda durante dois anos (os dois anos de obras de reconversão d’a Capital) deve-se à intervenção directa do Presidente da Câmara de Lisboa.
Mas, a 13 de Julho de 2003, ainda não temos a certeza nem do Teatro Taborda, nem das obras de reconversão d´a Capital.
O Ministério da Cultura ignora entretanto tudo isto.
10.
Ontem, dia 12 de Julho, jantámos no Primavera, ali à Travessa da Espera. Éramos o Vítor Correia, o João Meireles, a Vanessa Dinger, o Antonio Onetti, o António Simão, a Teresa Sobral, o Miguel Sobral, o Francisco Frazão, o Juan Mayorga, eu, a Sandra Ouro. É normalmente no Primavera que jantamos quando temos visitas, e lá levámos o Jon Fosse, a Judith Herzberg, o Karst Woudstra, o Spiro Scimone, o David Greig, o David Harrower, a Katherine Mendelsohn, o Graham Whybrow, a Roxana Silbert, os nossos amigos.
E depois, já era escuro, fomos mostrar a Capital aos nossos amigos espanhóis, entrámos por ali dentro, tudo está arrumado, mais ou menos limpo, podíamos fazer tantas coisas, tantas coisas diferentes, podíamos estar a inventar, e podíamos até estar a ser felizes no nosso Teatro Paulo Claro. Quer o Antonio Onetti quer o Juan Mayorga ficaram emocionados, há ali uma emoção que nos ultrapassa. Porque sabemos que foi possível não há razão para não o ser.
11.
É evidente que o projecto deste teatro é novo, não é copiado de outros sítios, teria uma organização e uma prática diversas, seria outra coisa. E é isso de ser “outra coisa” que é difícil de fazer compreender. Mesmo às vezes para nós.
12.
Iremos resistir ao exílio? Faremos honra aos nossos compromissos? Teremos força e energia? Iremos sobreviver? Como?
13 de Julho de 2003