TELEFONO-TE DEPOIS de Sofia Areal
Teatro Taborda
11 Setembro a 26 Outubro 2003
Costumo frequentemente utilizar a expressão “sem história” para designar objectos neutros, que não nos interpelam. Por exemplo, uma parede branca, sem história. Apercebi-me de que quero a minha pintura no extremo oposto, interpelando, manifestando-se, activa, por outras palavras: com história.
Sofia Areal
Considerada uma das mais interessantes artistas portuguesas, Sofia Areal pertence a um grupo que encontrou na revalorização dos valores expressivos da pintura, ocorrida na década de 80, o seu campo de trabalho ideal.
Susana Silva, Revista Visão.
“Telefono-te depois”
Cartografia do silêncio e da luz
Há uma noite profunda e intacta nesta pintura de Sofia Areal. Uma noite física, astronómica, reveladora de uma feição de afeição ao mundo. Dir-se-ia que é de tanto olhar o céu, muito antes da madrugada. Porque é a noite que permite, gera e esclarece o dia.
Pitagórica, na sua definição esférica das formas celestes, clássica na tomada do céu nocturno como pretexto, Sofia não hesita, contudo, em inscrever no universo o seu direito à dúvida, à perturbação. Finalmente, à alegria. Observar o alto para compreender o chão. Pintar a noite para refazer, a custo de pulso, o pulsar do dia.
No início era o círculo, dir-se-ia ao perceber no tondo a raiz azul. Escurecida essa cor celeste, na qual o cianómetro de Goethe não poderia prever acidentes meteorológicos, sobre ela se instalou o negro, rasgado de brancos e centrado a vermelho. No início era o círculo, sim, mas logo depois a distorção se afirmou. O universo não é, afinal, como Pitágoras o previu, e as órbitas são ovais, perturbação do que é por definição perfeito e intemporal. Introduzido o claro movimento, ele torna-se incessante, imprevisível e acidental, inscreve-se lenta e contidamente sobre o fundo nocturno.
Fragmentos do universo, estas pinturas evidenciam um desejo de precisão, clareza, esclarecimento. E de completude. E se nas oito telas ovais, como também no tondo, o negro impera, apenas cortado pelos amarelos e depois pelos brancos, nos desenhos a paleta abre-se em luz. Aqui, onde a rigidez do lápis alimenta a limpidez do traço, já se permitem, como contraponto, as explosões de cor. E, assim, o vermelho sanguíneo, terroso, alia-se aos azuis, aos verdes mais vestidos de amarelo ou de branco, ao negro, à cor do suporte (jamais coberto por inteiro), num jogo de transparências e revelações que permite a ampla interacção entre a aguarela, o acrílico e o lápis. Organizados em duas fileiras de sete elementos rigorosamente quadrados, os desenhos escrevem-se como pontos em linhas paralelas – as que o destino ou a ciência ainda não uniram. E, contudo, eles encontram-se em leituras cruzadas, lineares, curvas, desdobram-se em linhas e manchas, num contínuo-descontínuo, música e pausa.
A essencialidade, que permitiu o desaparecimento das espirais, tão presentes na obra de Sofia, deu lugar, nestas peças, a um maior silêncio. E no seu universo esse silêncio é benigno, criador. Da noite pesada e densa, onde só ela coube, onde só ela pôde, ela raspou com as mãos, fazendo e refazendo, até voltar a ver a luz do dia. O devir, como a alegria, nada tem de óbvio nem de fácil.
Porque como Nietzsche escreveu um dia, quando se olha muito tempo para dentro de um abismo, ele também olha para dentro de nós. Arriscaria eu que o mesmo se dirá dos que observam a noite para melhor compreender o dia. Como aqui claramente se constata.
Emília Ferreira