Últimas Paisagens (II) de Manuel Sam-Payo
No Convento das Mónicas de 10 de Abril a 13 de Maio de 2008
CARROS, PAISAGEM, NUVENS
A paisagem começou por ser o espaço vazio onde certas coisas naturais existiam – o boi, a árvore, o céu, o lago e, por vezes, o homem. Tudo coisas que ele mesmo, o homem, parecia incapaz de fazer por via do intelecto. Por mais inteligente que sejas nunca conseguirás inventar uma montanha. É o homem que historicamente entra na paisagem, e não a paisagem que entra no homem. Primeiro, a paisagem, depois o homem. O homem, portanto, como alguém que chegou mais tarde, com o cenário já montado.
Podia ainda gerar filhos e estes, ainda pequenos ou já depois, adultos, lá surgiam, na paisagem – com uma disponibilidade física que lembra a pose.
A paisagem, diga-se, sempre pareceu uma invenção feita para pintores e depois para fotógrafos. É um elemento visível da natureza e essa é a sua grande característica: um certo instinto para a exibição.
Poderemos pensar na paisagem de um subterrâneo, mas tal associação será sempre forçada; a palavra paisagem remete para o poseur e não para um elemento que se quer esconder.
Mas a paisagem mudou. Só no mundo que ainda está no século XVIII, ou em séculos anteriores, é que a paisagem mantém certas características. Ir para o campo é também ir, pelo menos, para o século XVIII, e o facto de podermos lá chegar em menos de quinze minutos, não nos deve induzir em erro.
Surgiram então as máquinas, que aparecem, claro, ainda depois dos homens. Eis pois a ordem cronológica simples: a paisagem, depois o homem, depois a máquina. Entre a máquina e a montanha há portanto uma diferença radical. No limite, o homem é filho da paisagem: saiu do mundo, diz a Física usando fórmulas complexas e outras palavras. É que a paisagem, sendo larga e vasta, tem lá dentro ainda o pequeno e o minúsculo. No microscópio é mais evidente: uma paisagem é ainda uma paisagem de células, e desta saíram – dizem os mitos da física moderna – os vários seres vivos. Depois de vivo, o homem não se contentou com o facto de existir e quis inventar. Criou as máquinas e, dentro delas, o automóvel – a referência absoluta desse Reino Maquinal.
E, enquanto na paisagem antiga, o Reino Animal predominava, agora, na paisagem moderna, é o Reino Maquinal que impõe a sua forma.
Estamos, pois, em grande parte dos desenhos e pinturas de Manuel Sanpayo, perante paisagens com carros. Por vezes, de relance, julgamos que em lugar dos carros, estão ali bois, em aproximação sedenta à água.
Automóveis: novos animais metálicos que ocuparam violentamente a paisagem, afastando e derrotando os velhos animais, os de carne e morte. O metal substituiu o pêlo e outras coberturas de temperatura variável e, se em alguns desenhos, há ainda nuvens, estas são como que símbolo de uma resistência cada vez mais frágil. Um avião bem colocado atiraria as nuvens para segundo plano.
A paisagem moderna é dominada pelo metal, tanto junto ao solo (ou debaixo dele) como no ar. E o metal é a nova pegada do homem, o novo vestígio que assinala a presença de uma espécie que foi intelectualmente, em muito pouco tempo (não em milénios e milénios, repare-se) e sem qualquer milagre ou auxílio divino, capaz por si só, de criar um novo Reino – o Reino Metálico.
Estamos portanto diante de pinturas e desenhos que enganam: a paisagem, elemento antigo, que sempre aludiu à natureza, coisa mal definida, mas que guardara sempre uma certa autonomia em relação à vontade dos homens – essa velha paisagem foi há muito substituída por outra; e nesta nova paisagem, paisagem metálica, o homem pode já nem sequer aparecer (não se vê um único homem nestas representações), mas é ele quem manda; é ele o novo organizador da paisagem. E só não lhe chamam organizador divino porque o homem é muito visível, e uma visibilidade nítida é inimiga do estatuto de divino. Se o homem desaparecesse subitamente da terra e atrás deixasse os seus metais e máquinas, que nome lhe reservariam os eventuais novos habitantes do planeta? Um nome grande, decerto.
Gonçalo M Tavares