UM HOMEM FALIDO (Un Homme en Faillite) de David Lescot Tradução Marie-Amélie Robilliard e Joana Frazão Com Rúben Gomes, Sylvie Rocha, Américo Silva Luz Pedro Domingos Cenário e Figurinos Rita Lopes Alves Encenação António Simão (com apoio de Jorge Silva Melo)
No Instituto Franco-Português de 29 de Março a 9 de Abril de 2011
Ensaios abertos a 26 e 27 de Março (por ocasião do Dia Mundial do Teatro)
No Teatro Meridional de 28 de Abril a 15 de Maio de 2011
O Autor estará presente na estreia, a 29 de Março, quando será lançado o Livrinho de Teatro nº52 A EUROPEIA e OUTROS TEXTOS, com traduções de Isabel Lopes, Alexandre Andrade, Joana Frazão e Marie Amelie Robilliard.
UM HOMEM FALIDO está editado na Revista Artistas Unidos nº 21. A gravação áudio da peça foi editada, em parceria com a MHIJ, na colecção Teatro para Ouvir (1 CD)
O homem Mas eu tenho a sensação de dar tudo eu dou tudo todas as vezes eu dei sempre tudo.
A mulher É pouco.
O homem Nunca disseste isso nunca me disseste isso.
A mulher Amava-te.
David Lescot, Um Homem Falido
Um homem tem a oportunidade para recomeçar a sua vida. Um homem na falência, termo público tornado privado, decide deixar de possuir e remete-se à sua condição mínima, desprendendo-se de tudo o que pode ser adquirido. Tal como no romance de David Matteson e no filme The Incredible Shrinking Man de Jack Arnold, este homem vai “encolhendo” até desaparecer no meio das páginas de um livro, no meio de um pensamento. Esta realidade deformada vai permitir-nos constatar que quando a lei humana se torna capaz de excluir o homem que não tem propriedade ou meios de subsistência, resta-lhe a lei natural imutável, e esta lei está do lado essencial e simples das coisas, do pensamento, do homem que nunca se aborrece, que nunca se farta de pensar. E esta falta de ócio, e de tudo o resto (propriedade e meios de subsistência), torna-o temível.
António Simão
Um casal acabou de se separar, mas ao mesmo tempo o homem ficou arruinado. A dívida atinge os 24 664 euros. Como pagá-la? Todos os dias o mandatário liquidatário faz-lhe uma visita e leva-lhe alguma coisa. Pouco a pouco tudo o que lhe resta da mobília e dos objectos é apreendido. E só fica um homem despojado de tudo, confrontado com um quotidiano mais do que inseguro. A escrita é magnífica, este é um texto tocado pela graça.
Geneviève Charpentier
A “Falência civil”
A ideia de um homem falido nasceu dos debates recentes sobre a questão da “falência civil” ou “valorização pessoal”. Esta medida, que existe desde 1878 na região da Alsácia-Moselle, mantida depois de 1918, permite que as pessoas afectadas liquidem as suas dívidas desfazendo-se de todos os seus pertences. Uma espécie de “falência” não aplicada às empresas, mas aos indivíduos. O problema voltou recentemente à agenda, depois do presidente da câmara se ter comprometido a prorrogar a medida em todo o território francês, tendo chocado inicialmente contra os Ministérios da Justiça e do Consumo, bancos e empresas de crédito. O projecto foi, no entanto, aprovado na Assembleia em Julho de 2003. Não posso deixar de ver nessa realidade social um convite para o teatro, para a fábula. Na minha segunda peça – A Associação, sondei a relação dos homens com os objectos, na concreta realidade da vida comercial. Em Um Homem Falido, gostaria de considerar a questão dos direitos humanos nos termos da “propriedade”. A história de Um Homem Falido será então a de um indivíduo, a meio da sua existência, despojando-se de tudo o que possui para poder continuar a viver. Evocando como principais factores de redenção: a dívida do consumidor e uma “segunda oportunidade”, digamos de renascimento e a questão das “contrariedades da vida”. Os termos técnicos do processo estão inevitavelmente carregados de fantasia. O estado de falência é decidido logo no início da peça onde se constata uma “situação irremediavelmente comprometida.” Chamando indispensáveis à “vida corrente” à convenção dos “bens inalienáveis” do indivíduo, que este necessita para um “mínimo de subsistência.” Um “Mandatário Liquidatário” é designado para estabelecer o inventário dos bens da pessoa endividada, negociar com os credores e organizar um plano de recuperação. Vejo nesta “falência civil” uma irresistível máquina teatral, que não pede senão ser dramatizada, porque se situa na ligação de uma realidade social com um imaginário pessoal, e que convida a observar o mundo como só o teatro o pode fazer: com grande espanto e incredulidade. Quis fazer minha esta fórmula de Günther Anders, grande crítico de Kafka: “ modificar afim de constatar”, deformar um pouco, ligeiramente a realidade, para descobrir como ela verdadeiramente funciona.
O Homem que Encolhe
A trama tem três personagens, dois homens e uma mulher. Um casal sem filhos, onde o homem está desempregado, que se vai separar depois de lutarem em vão contra as dificuldades materiais e endêmicas do endividamento. Um Mandatário Liquidatário é nomeado para ajudar o homem a desfazer-se de todos os seus bens. Entre eles é estabelecido um jogo de conflitos de identificações e transferências. Ao levar o homem a livrar-se de tudo que possui, o Mandatário está envolvido numa espécie de experiência radical, ao ir observando um homem privado das suas propriedades, considerando talvez fazê-lo voltar à sua dimensão essencial. O Mandatário revê-se como o arquitecto da segunda vida do homem. Rendido à sua nudez, progressivamente privado de tudo, o homem deve inventar a nova existência que lhe é oferecida. Recuperar o que perdeu, ou aprender a viver “sem”. A acumular ou a desfazer-se ainda mais do que possui. Restando-lhe um último aliado na sua solidão: um mau livro, um romance de ficção-científica, The Shrinking Man; utilizando-o como manual de ética. A história de um homem que inexplicavelmente diminui três milímetros por dia, que deve enfrentar uma inevitável dissocialização e adaptar-se progressivamente ao que é ameaçador e hostil. Identificando o seu destino com o do homem que encolhe, o homem falido vê-se forçado a organizar a sua vida tendo em conta o seu novo estado. Como o seu modelo que mede dois centímetros de altura, abrir um frigorífico exige um esforço sobre-humano e um tempo desmesurado. “Consumir cada vez mais” – a orientação dominante da nossa sociedade, reverte-se. E tudo o que se segue: ele não precisa mais do que um espaço vital reduzido ao mínimo, de dormir apenas alguns minutos por dia, porque à sua volta a escala de tempo mudou, etc. Apertado entre as entrevistas com o Liquidatário e as conversas com o livro, a existência do Homem Falido assume a forma de uma série de recomeços sempre abortados. Deduzindo ex absurdo que sua esposa o abandonou porque ele não tinha quase nada, ele imagina que ela voltará se ele não tiver realmente nada. E assim visita pontualmente a mulher, dando-lhe a ver, sem resultado, o espectáculo do seu decrescente estado. Adquirindo pela experiência uma aguda consciência da relação filosófica entre o direito e a propriedade, o Homem Falido procura diminuir o mais possível, de forma a reverter contra si próprio o acordo com o Mandatário Liquidatário e também a melhor maneira de reconstruir a sua vida. E pode muito bem ser que a encontre.
David Lescot
Um desempregado rendido à sua condição. Uma mulher que o abandona. Um Mandatário Liquidatário que aparece, encarregado de estabelecer “o mínimo de subsistência” ou “ os bens inalienáveis”, de negociar com os credores, de organizar um plano de reembolso. Neste texto, todas as referências são oficiais. David Lescot investigou “o problema” antes de escrever Um Homem Falido: “ Não se trata, apesar de tudo, de uma luta contra a pobreza, mas de uma peça sobre a separação, material e dos afectos. Não é suficiente fazer “stop” para que as coisas parem. Ainda podemos hesitar, voltar atrás…Gostaria que este processo de hesitar, de voltar atrás, constituísse o fio desta peça que será, em suma, um pequeno manual de resistência. O mundo do Homem, o nosso, é o do sucesso. Quando somos excluídos, podemos ter o desejo de apagar tudo. O Homem Falido está em luta. Fazendo lembrar a expressão de Beckett, no sentido de na vida: “ já estar morto”. “Então o homem vai tentar viver sem nada supérfluo, num mundo restringido pela lei e da mulher que apesar de tudo, acaba por procurar sempre… É-lhe oferecida uma segunda oportunidade. Com a ajuda do Mandatário Liquidatário pode tentar recomeçar. Somente os seres humanos, que são um resultado de uma experiência de que não se pode fugir, é que nunca podem começar a partir do zero.”E é uma dupla experiência; ela também diz respeito ao Mandatário Liquidatário: ele encarna a teoria de que o homem é o resultado das experiências vividas. Podemos imaginar estes homens como duas partes que se complementam num único indivíduo. Nada mais do que um homem que diminui até se perder gradualmente num tempo desmesuradamente longo, percorrendo um fluxo imenso e interminável de palavras escritas. Lembramo-nos imediatamente do filme de Jack Arnold The Incredible Shrinking Man (que após passar por uma nuvem radioactiva, acaba numa caverna, apenas uma partícula de poeira para um gato e para uma aranha). Tendo visto o filme na sua infância, David Lescot terá pensado no romance de Richard Matheson, em cujas páginas o Homem vai “encolhendo”… Se David Lescot, muitas vezes se refere ao cinema através das suas atmosferas e personagens, não deixa por isso mesmo de amar o teatro. Essa mudança gradual para o que é surreal, o que balança entre dois mundos. E acima de tudo, amaKafka. David Lescot cita Sarrazac: Uma semelhança misteriosa. “Ver as coisas de uma maneira estranha, mas reconhecê-las na mesma. Distorcer a visão para melhor poder discernir como funciona o mundo, conhecendo-o verdadeiramente, a partir de dentro “.
Collete Godard
Aqui pretende-se fazer o público reflectir sobre um tema premente das sociedades contemporâneas: o sobre-endividamento das famílias e o crescente desemprego no masculino. Um homem que se vê, subitamente, sem emprego e cheio de dívidas, um homem a quem a mulher abandona, o que pode fazer senão começar a vender tudo o que tem? O executor das dívidas é – juntamente com o público – espectador deste despojamento involuntário que levará o protagonista à descoberta daquilo que lhe é mais próprio e que nada nem ninguém lhe poderão tirar.
A. Ribeiro dos Santos