Conversa com FRANÇOIS BERREUR
Graças à Alexandra Moreira da Silva, François Berreur, actor, encenador, editor, colaborador de Jean-Luc Lagarce, passou um fim de tarde de Dezembro no Teatro Taborda com a equipa que, há um mês, ensaiava Tão Só o Fim do Mundo. São perguntas e respostas, dúvidas e teses, hipóteses e tentativas para abordar um teatro moderno, popular, poético e inovador.
François Berreur – A peça que estão a trabalhar, Tão Só o Fim do Mundo, foi escrita em 1990, quando Jean-Luc Lagarce estava, com uma bolsa, em Berlim, e é uma peça que teve uma grande importância para ele. Marca uma certa mudança.
Ele começou a escrever muito cedo, aos vinte anos, e as suas peças foram sendo logo representadas, havia uma transmissão na France-Culture, uma leitura, uma edição, uma produção. Mas com Tão Só o Fim do Mundo não houve nada disso, e era uma obra de que ele estava muito orgulhoso, um texto em que ele tinha a impressão de ter ido mais longe, mais perto daquilo que andava à procura. Só que, quando voltou de Berlim com a peça, ninguém a quis fazer. Ao contrário das peças anteriores, não houve leitura pública, nem transmissão na rádio, nem publicação. Achavam muito difícil e recusavam. Por isso, quando escreveu Le Pays Lointain, que viria a ser a sua última peça, repegou integralmente em Tão Só o Fim do Mundo, meteu-a toda lá dentro. Era o que ele queria contar.
No fundo, ele escreveu dois tipos de peças: há um grupo constituído por histórias dele, e um outro grupo de peças que saem de um outro mundo, em que ele se apropria de outro material.
Do ponto de vista cronológico, temos: em 1990, Tão Só o Fim do Mundo, depois, Nous les Héros, que parte de Kafka e As Regras da Arte de Bem Viver na Sociedade Moderna que parte de um livro de boas maneiras do século XIX. E, finalmente, Estava em Casae Esperava que a Chuva Viesse, que é, de certa maneira, uma resposta, o contracampo de Tão só o fim do mundo. Nesta, um homem vem dizer à família que vai morrer, ninguém o ouve, o homem nada diz. Em Estava em Casa…, são as mulheres, mulheres de várias idades que velam ou cuidam de um rapaz doente.
Mesmo que, durante a vida dele, esta sua fase final não tenha sido reconhecida, ele estava sempre a dizer que era isto o que queria escrever. E, no fim, escreveu Le Pays Lointain, onde diz “já que não querem saber desta história, não só volto a pegar nela, volto a falar desta família, como acrescento”, e aumentou, agravou a história, à família biológica acrescentou a família que se escolhe.
Tão Só o Fim do Mundo acabou por ser montada, em 1999, dirigida pelo Joel Jouanneau, e foi uma das peças que permitiu o reconhecimento actual da sua obra, que lançou a sua descoberta. Foi feita na Suiça, no Théâtre Vidy-Lausanne, e em Paris, no Théâtre National de La Colline, e foi um grande êxito. E agora é representada por todo o lado.
Eu trabalhei com ele desde os meus vinte anos, fiz 17 espectáculos com ele, mas quase não fiz textos dele. Fizemos clássicos, adaptações, versões. Ele não era propriamente um encenador. Era, acima de tudo, um director de companhia, gostava da vida do teatro no teatro. Se lhe perguntassem porque é que fazia teatro, respondia “para não estar sozinho”, gostava de teatro, gostava de encenar, gostava de analisar um texto, mas gostava sobretudo da vida da companhia, das digressões. Mesmo quando estava já muito doente, vinha connosco em digressão. Dizia “amanhã não posso ir à digressão, vou para o hospital descansar um bocado para depois ir ter convosco.” Descansava para poder vir ter connosco. Gostava disso. Não teve oportunidade de trabalhar os seus textos, em vida, os textos não eram reconhecidos, foram feitos 3 vezes por outros encenadores. E o extraordinário é que a terceira peça que escreveu, Voyage de Madame Knipper vers la Prusse Orientale foi feita, numa encenação de Jean-Claude Fall, pela Comédie-Française no Petit Odéon (1982). Depois, ninguém mais o quis.
Acabou por encenar mais textos de outros do que os seus. Em vida, encenou vários clássicos, Molière, Marivaux, Labiche, Feydeau, Gozzi, Beckett, Ionesco, John Ford, Swift… Estava a dirigir um Wedekind, a Lulu, quando morreu. Apropriava-se dos clássicos, mesmo das histórias que não partiam dele. Em 1982, ainda não estava doente, fez uma adaptação das Notícias da Peste de Daniel Defoe. A partir de um texto sobre a peste de Londres, quando ainda não existia a sida, escreveu Vagues Souvenirs de l´Année de la Peste. O seu destino reencontrou essa questão, a epidemia, a doença já estava na sua obra antes de ele estar doente.
Fernanda Montemor – Podemos dizer que este Tão Só o Fim do Mundo é autobiográfico?
FB – Sim e não. Por exemplo, o pai de Jean-Luc está vivo, enquanto na peça, ele morreu. Verdade que ele tem uma irmã e um irmão. A irmã dele, no entanto, está casada, ao contrário da irmã na peça. Ou seja, a história cola e descola da realidade. E o facto de, na peça, o pai estar morto é fulcral, a peça fala do papel do primogénito depois da morte do pai, fala da sucessão, é a questão que é debatida. É muito importante neste texto que o pai tenha morrido. O primogénito deveria tomar o lugar do pai. Em relação à mãe, ele toma o lugar do pai.
FM – E é o que a mãe lhe diz: “nunca quiseste ser responsável”.
FB – E é muito importante este lugar do promogénito. Há quem diga “é a vida de Jean-Luc Lagarce”, “é autobiográfico”. Ora, há um Diário de Lagarce que está a ser transcrito para vir a ser editado pelos “Solitaires Intempestifs”. E quando ele escreveu Tão Só o Fim do Mundo, anotou: “Hoje matei o pai, é a melhor coisa para que a peça tenha interesse”. Isto não é bem a psicologia sobre a morte do pai… O facto de não haver pai, de o autor o ter feito desaparecer, o ter matado, faz que a peça funcione melhor. E é verdade: o facto de ele se chamar Luís, o facto de o seu irmão ter chamado Luís ao filho só funciona porque o primeiro Luís, que era o pai, já morreu. Ou seja, se o irmão mais novo dá ao filho o nome do pai, ele deixa de poder ocupar o lugar do pai, deixa de ser o pai. Isto ganha uma outra dimensão.
Claro que isto não é possível de ser representado, mas são as forças profundas do texto, mesmo que não as possamos ver.
Se levantarmos o olhar, vemos que se trata de algo mais do que de uma pequena família com pequenos conflitos, fala-se aqui do homem em geral. O homem vem de um pai e de uma mãe, tem irmão e irmã, e é o primogénito quem dá o nome à continuação. Naquela primeira cena com a cunhada em que ela fala dos filhos, é como se estivessemos numa peça de Shakespeare em que se diz “o irmão está a tentar ficar com o poder do outro, dado que não tens herdeiro” e a mulher diz “ baptisámos o nosso filho com o teu nome, ele está vivo, o rei será ele”. É como se dissessem a alguém que regressa “sabes, já foste banido”.
Se formos mais fundo, aquilo que aqui vem à boca de cena entre os irmãos, é o que se joga entre o poder, a família, a herança. E a mãe vai pedir “dá autorização a que nós façamos outra coisa, autoriza que te destruamos”. Quando ele diz que fica atrapalhado, até que ponto isso é verdade, ficará mesmo atrapalhado ou, ao dizê-lo, está, isso sim, a atrapalhar os outros? Porque cada um tem a consciência de estar a destituir alguém, a destronar. Ela, a cunhada, está a dizer “tu perdeste o teu lugar de rei”, “perdeste o teu lugar de chefe de família”. Já aqui está uma traição, será uma pequena traição mas é uma traição. Nas grandes famílias, a pequena história ecoa a Grande História mesmo que se trate de uma piada.
O teatro dele tem estas forças, não é psicológico nem quotidiano, são forças que se defrontam e são tão pertinentes na nossa vida como o são em Shakespeare. Não será grave, a repercussão não é universal, é só uma pequena família, mas mesmo assim… uma pessoa chegar a casa e dizerem-lhe “não vais ter filhos” é brutal, é maior do que ir lavar as mãos. Não é um domingo no campo com a família, estamos numa tragédia, numa peça de Shakespeare.
FM – Aquele início, quando o Luís diz que vai morrer, o prólogo, parece o início de uma tragédia grega.
FB – É o que eu estou a dizer. Não estamos no terreno do quotidiano, estamos no terreno da linguagem. Então esse prólogo coloca logo a questão. Se nos mantivermos nesse terreno, na linguagem, não podemos representar o pequeno drama psicológico. Mas podemos, sim, respeitar o quotidiano, e, sobretudo, podemos fazer o que quisermos, é grande, é largo. Se, ao contrário, nos mantivermos ao nível do quotidiano, temos de estar a fingir que não é um texto de Lagarce. Aquilo que está em jogo no texto não é o quotidiano. E a opção da representação fica clara, o problema resolve-se por si próprio.
José Airosa – O início da peça, quando Luís diz que vai morrer…
FB – O difícil não é dizer que vai morrer, uma vez que ele o diz logo. A ideia de que vai morrer não é a mais grave, di-la sem problemas de maior. O difícil é dizê-lo aos seus, à família. E há uma página inteira para isto, “vou dizê-lo à minha família”, uma página inteira de avanços e recuos para fazer o menos mal possível. Toda a página é esta dificuldade extrema de dizer à família que vai morrer sabendo que vai ferir os outros. A questão que se põe é “como fazer o menos mal possível?”. Mas depois vemos para onde vai o texto – e o texto vai até ao “tenho de lhes dizer/ como é que lhes digo?” É o problema de se saber o que está em cima da mesa, de contar as espingardas, de saber o que está em jogo.
O que é que a Susana quer dizer ao irmão? Não é um jogo psicológico, como na dramaturgia americana, estamos no oposto do Actor´s Studio, aqui são as palavras que levam o actor a um ponto que ele não previra, levam-no a comunicar aquilo que ele não tencionara.
Nisso, a diatribe de António, no fim, é um texto sublime, um texto exemplar. O António é aquele que não domina as palavras, o que não tem vocabulário. E é ele, o irmão, o que não domina, quem parte para a expressão das coisas mais complexas. Fá-lo com palavras simples, não se exprime intelectualmente, pois não domina os conceitos. A sua vontade de dizer ao irmão mais velho que lhe vai contar tudo desta vez, é a sua energia, é essa energia das coisas que transparece para lá das palavras. Por exemplo, na cena em que ele diz “vais-me contar histórias”, vemos como as coisas se acumulam a partir de uma coisa simples: ele está na estação, a ler o jornal e vai voltar a casa e até pode ser que dê um tiro. O facto de dizer “estavas a tentar ler o jornal / porque, ao domingo de manhã, no bar da estação…” etc., é pura história, é romanesco, mas ele não tem vontade de fazer romance, de criar o romanesco, é a sua maneira de falar que cria o romanesco.
Teresa Sobral – Aquelas repetições permanentes…
FB – Não há repetições, as frases que se seguem umas às outras são tentativas, aproximações, não, não são auto-correcções, são mudanças, diz-se uma coisa e essa coisa dita mudou-nos, trocam-se as voltas, avança…
JA – As últimas palavras não anulam as primeiras, não apagam as primeiras, é uma continuidade, vão-se seguindo.
FB – Estamos num terreno movediço, chegamos a um local onde não estávamos no início, se se trata de música ou de psicologia, a energia do texto altera-o. O facto de o teatro ser sempre no presente altera o texto, avança-se para um local que não se previra. A maneira como cada um vai contar o que tem a contar, essas maneiras diferentes também contam qualquer coisa. Podemos dizer uma coisa e alterá-la, não há auto-correcção, há, sobretudo, um avanço, não se está a corrigir para trás, está-se sempre a ir para a frente. Podíamos dizer que, de um ponto de vista literário, esta maneira de escrever se baseia na auto-correcção, mas, do ponto de vista do palco, do que acontece num palco, não. A auto-correcção implica um remorso em relação ao passado, e no teatro estamos sempre numa reacção ao presente.
A frase avança sempre, as variações não são um remorso em relação ao que se disse, “eu tinha dito isto, mas queria dizer aquilo,” não é isso… Não posso dizer que seja uma procura, uma busca porque estas personagens não são pensadores, é o presente.
Porque é que a Susana tem uma página para falar? Porque é que a mãe desata a falar? Há várias personagens em cena, porque é que falam? É um diálogo, ou não?
Mas repetições, não. Não há repetições, não há uma única repetição. O princípio da escrita de Lagarce é que a lingua flui, tudo se passa no presente, a linguagem não repete.
O que se passa no teatro é sempre o presente. Mesmo quando os actores usam o pretérito, mesmo quando falam no passado.
TS – Eu, logo na primeira cena, não sei se estou a falar com o Luis ou se estou a falar na terceira pessoa, e aquela alternância de tempos verbais…
FB – Falando com os actores, e para os actores, não é muito importante a maneira como isto se constroi. É um assunto prático, os actores falam, têm de falar. E a construção da escrita de Lagarce pode parecer, mas não é, uma construção literária, é oral… Dá-me um exemplo…
TS – Quando a Catarina diz ao Luís que ele não tem filhos.
FB – Essa parte é tão bonita. O que é que ela lhe quer dizer? Há vários níveis, entre aquilo que é representado e aquilo que isso conta.
Quando eu trabalhava com ele, ele começava sempre os ensaios com um “façam-me rir, vamos lá!”. E dizia sempre: primeiro, o primeiro nível do texto, depois vamos ao resto, já veremos. Acima de tudo o primeiro grau. Quando se diz “cala o bico, Susana” está-se a dizer “cala o bico, Susana!” É a questão do concreto, “pão” é “pão”. Primeiro que tudo, o primeiro grau. Quando trabalhávamos, era nisso que ele insistia: temos que acreditar que o texto está bem escrito, o perigo é pormo-nos a fazer bonito, o bonito é uma chatice, a armadilha é a beleza. Depois, podes fazer o virtuosismo dos tempos verbais, “nós tínhamos, nós tivemos, nós teríamos”, podes jogar com isso tudo, mas primeiro tens que dizer o que se tem a dizer, evitar a lindeza. Há coisas a dizer. Qual é, por exemplo, a história de Luís? A história de se chamar Luís que vem nessa cena. Ele chama-se Luís, o pai dele chamava-se Luís, mas ele não tem filhos…
TS – A cunhada diz-lhe que ele não pode ter filhos, não é só por ele ser homossexual… Ela não quer magoar, tenta dizer de outra maneira.
FB – Tenta dizer-lhe sem dizer. Ou porque considera que ele não é casado, ou porque é homosexual e não terá filhos… Mas dizer a alguém “não tem filhos / não vai ter filhos / nunca vai ter filhos” também é atirar-lhe à cara que ele está morto…
FM – Ela não sabe que ele vai morrer.
FB – Mas nós sabemos e ele sabe. Por isso, a frase dela atinge-nos e atinge-o a ele no mais íntimo, naquilo que não foi dito. Há um segredo, o sensível. Sem o saber, ela diz aquilo que o vai ferir. Não é pacífico dizer-se a alguém “você vai morrer”. Ele faz uma brincadeira dizendo que é Luís, rei de França. Podia ser só uma piada, mas é um novo dado que nos leva a uma outra dimensão, é que ele é quem dirige, o filho mais velho é o rei. Não pode ser representado, mas é um subentendido. Por isso é que não é uma peça do teatro do quotidiano.
Porque é que, em vida, foi difícil reconhecer a sua obra e agora é um teatro que desperta tanto interesse e tem tanta importância? Á primeira vista parecia uma coisa fechada, intelectual, repetitiva. O paradoxo é que foram os espectadores a descobrir Lagarce. Os leitores, os programadores, os críticos pensavam que era um teatro difícil, intelectual, Foi uma grande surpresa quando se montaram os espectáculos, seja Tão Só o Fim do Mundo seja Estava em Casa … e as pessoas que pensavam que só elas compreendiam o teatro de Lagarce, que eram coisas complicadas, o que impressionou é que os espectadores se sentiram tocados, houve uma emoção, compreendiam tudo. E eis que o Lagarce enche salas de 800 lugares nas digressões em França… Ao contrário do que se pensava, é um autor realmente popular, os espectadores compreendem tudo. Agora as pessoas compreendem. Este Verão, vimos um espectáculo numa aldeia, era o Estava em Casa…, que tem uma linguagem complexa. E os espectadores era gente que vai ao teatro uma vez por ano, há um teatro fantástico numa aldeia, em Bussang, no meio de uma floresta, e as pessoas da aldeia vão lá uma vez por ano. E a sala estava cheia e as pessoas compreendiam.
Lagarce toca coisas que nós não conhecemos. É esse o seu mistério, ele vai tocar em cada um de nós alguma coisa que ignoramos.
Porque é que há agora tantas encenações de Lagarce, que prazer encontram em trabalhar este autor? É que em cada peça se encontram coisas diferentes, mesmo para os intérpretes, passa a ser uma coisa pessoal fazer Lagarce. Se a Teresa Sobral, que faz a cunhada, não é?, trocar de papel com a Joana Bárcia que faz a irmã, não vai ser a mesma coisa, a pessoa que faz tem grande importância.
E os actores e encenadores que trabalham Lagarce nunca ficam satisfeitos por fazer só uma peça, acabam por voltar a ele, fazem sempre duas, três. O Joel Jouanneau já fez três; agora o Jean-Pierre Vincent fez Derniers Remords e Les Prétendants. Há um real prazer neste trabalho, volta-se a ele. E quantas mais vezes fazem, mais gostam. Ele dá muito aos actores. Porque como ele trabalha na energia do texto, isso toca no prazer da representação. Se um actor fraqueja numa fala ou a perde, tem sempre hipótese de retomar o texto, de recolocar a energia noutro sítio e isso não incomoda.
Há um grande actor em França, o Hervé Pierre, que fez uma versão do Voyage a la Haye que é uma narrativa, agora fez comigo uma versão do Music-Hall onde trabalhámos um outro conto de Jean-Luc, Le Bain. E é ele que diz que, nos textos de Jean-Luc, há uma coluna vertebral aos ziguezagues. Temos a impressão que partimos para um lado e afinal voltamos ao mesmo, que afinal não é o mesmo. O texto permite energias que não estavam previstas. É a força do texto. E a energia não está no sítio do pensamento – e é isso que é formidável, aquilo que se pensa é menos interessante do que aquilo que se diz.
FM – Que interessante!
FB – Em relação à doença, por exemplo, havia espectadores que não sabiam que o autor já tinha morrido e vinham perguntar por ele, dizendo “a mim, isto toca-me particularmente”, “é realmente a minha história” , “ os outros não podem perceber”. É a diferença com um teatro, por exemplo, de Brecht – onde o que é visado é o comportamento social. Aqui, cada um é tocado individualmente por uma história, não tanto pela história de Lagarce, mas pela maneira como ela ecoa na sua própria história pessoal. Íntima. Uma coisa íntima e que não conhecem.
FM – É como a dúvida, a dúvida que as personagens têm em relação uns aos outros, nunca têm a certeza…
FB – O que é formidável é que o olhar da mãe é diferente do olhar do irmão e do da irmã. Quando a mãe lhe diz que diga, que diga aos outros que se vai embora, não é porque ela o quer reter, o quer perto dela? Ela não sabe, mas ela quer que ele fique para ela, mesmo que lhe diga que deve partir. Ela considera-o primogénito, ela diz-lhe “tu és o mais velho”, aquilo que os outros lhe recusam. Ela diz-lhe “vais ou não fazer o teu papel de filho mais velho”, mesmo agora que já lho retiraram.
TS – O texto da Catarina está escrito de uma maneira em que eu posso estar a falar sozinha, ou a falar com um terceiro.
FB – Por exemplo, quando ela diz “Estão em casa da outra avó / Não podíamos saber que vinha”, ela descodifica o que diz, está a pensar em voz alta, passa logo a outra questão, a outra avó e desculpa-se “não podíamos saber que vinha”, e com a terceira frase da cena que é “e pegar neles assim em cima da hora, ela não tinha deixado”, ela diz no fundo que, ainda por cima a minha mãe é qualquer coisa… Em três frases, ficamos a saber que as crianças estão em casa da outra avó, “Não podíamos saber que vinha” (ou seja, você não nos avisou) e com aquele “ela não tinha deixado”, temos toda a vida familiar da personagem. Vimos a mãe dela, só com este “ela não tinha deixado”. São coisas muito simples, contadas em três frases.
Mas ela continua: “Teriam ficado muito felizes se o vissem, disso não temos a menor dúvida / pois não?”. Este “pois não?” é fantástico. Porque vem instalar uma dúvida. As crianças devem estar-se a borrifar para encontrar o tio, como é evidente, mas a Catarina pede ajuda nisto, levanta uma questão. No texto de Jean-Luc, mesmo quando há um facto, uma certeza, uma informação simples (“estão na casa da outra avó”), vão-se acumulando informações.
Este “pois não?” da Catarina, por exemplo, é um pedido para que o António fale, deveria ter sido ele a apresentar as personagens, ele é que deveria estar a falar… Tudo o que ela diz é para que ele fale, e ele não fala. O facto de, depois, ela acrescentar “e eu também, e o António a mesma coisa / teríamos ficado muito felizes se finalmente o tivessem conhecido“ vem colmatar esta falha, esta quebra.
Depois descreve as crianças. “A mais velha tem oito anos / Dizem, mas eu não me apercebo bem / para mim é difícil / toda a gente o diz / dizem”. Este “diz / dizem / toda a gente o diz” são fantásticos, é que o tempo passa, e as pessoas não se dão conta. Estes acrescentos também não são muito lógicos, partem em direcções estranhas, imprevistas. Este “dizem”… Já viram as coisas que esta expressão aparentemente banal vem acrescentar?
E o marido dela, o irmão, o António é quem deveria estar a falar. Estamos no seio de um mal-estar preenchido de palavras que fluem em direcções diversas. Então aquele momento em que ela fala da filha “dizem e não os vou contradizer, que ela é parecida com o António / dizem que é exactamente a cara dele, versão rapariga / a mesma pessoa / dizem-se sempre coisas destas, diz-se isto de todas as crianças, não sei, porque não?” e a mãe continua “O mesmo feitio, o mesmo mau feitio / São os dois iguais, idênticos e teimosos” é um momento que tem atrás de si uma violência real e terrível.
Aquele “Foi, tinha sido, foi” que a Catarina diz em relação ao cartãozinho que recebeu do Luís, por exemplo, não é uma auto-correcção em relação a si mesma, é perante ele, tenta falar como ele, estamos a falar em voz alta. As mudanças de tempo verbal (estão / estiveram) são uma tomada de consciência, as personagens reparam na maneira como dizem. Todas estas variações são investidas em relação ao outro, são uma relação com o outro. O “pois não?” que ela acrescenta em relação ao marido que se mantém silencioso não é um discurso de hesitação dela, é um apelo, um pedido para que o António fale. Tudo o que ela diz é para que o António fale – e ele não diz nada. Por isso ela vai acrescentando, tomando a palavra. Mas… não é um monólogo. Ela fala quer para o Luís quer para o silencioso António.
Reparem como ela diz “Tinha-nos enviado um cartão” mas depois diz “enviou-me um cartão, um cartãozinho” porque o cartão deve ter sido para ela, o marido estava excluído. Há uma diferença entre aquele “nos” e este “me”, é uma história que está a ser contada com estas pessoas.
E ele ouve, ouve com delicadeza aquilo que ela está a dizer dos filhos. E como ela se sente escutada, prossegue. E é sempre assim, são investidas, e o silêncio dos outros também fala, neste caso o silêncio atencioso do Luís e o silêncio violento do António – é perante esses dois silêncios que o discurso dela pode existir.
TS – Não é para si própria que ela fala…?
FB – Não, não é um solilóquio, as relações entre as pessoas estão inscritas nesta tirada, ela fala diante do silêncio dos outros… O facto de eles não dizerem nada cria uma relação, um discurso. E isso tem a ver com o lugar do actor na linguagem, o tal plano da linguagem.
No teatro de Jean-Luc Lagarce, quando o actor fala, é como se fosse ele a escrever, há um material que permite ao actor estar no gesto do autor a escrever. Estamos dentro da linguagem, não no pitoresco, no quotidiano. E tudo é necessário, cada palavra, cada variação. Não podemos prescindir de uma só palavra, a peça é assim. Diz-se uma coisa, isso altera o que antes se disse, o facto de se ter dito isso, engendra outra coisa, somos forçados a precisar, a acrescentar qualquer coisa, cada frase é um acontecimento, as palavras não são apenas ditas, acontecem.
E é isso que cria as relações. O facto de António não dizer nada nesta cena faz com que os outros falem, e os outros falam, mas, quando falam, acrescentam qualquer coisa, “não ouviste, não dizes nada?”. E o silêncio dele tem um peso tremendo. E é por aí que o seu teatro ecoa tão intimamente em cada um.
Talvez isto tenha a ver com uma coisa muito importante na educação do Jean-Luc. Ele vem de uma família protestante, teve uma educação protestante. E no protestantismo, a culpa fica com a pessoa, a culpa é um problema pessoal, os homens só se têm a si. No seu teatro não há uma moral, é uma coisa íntima, são as relações do indivíduo em relação à família, no universo.
Este texto, por exemplo, fala da perda. Se privam um homem do seu lugar de primogénito, o homem deixa de ter lugar. Até porque, ao contrário do catolicismo, no protestantismo, não há absolvição superior.
Mas isto não quer dizer que seja um autor complicado, difícil. Nos seus últimos anos, era de bom tom dizer que só as suas últimas peças eram boas. Mas agora começaram a ser montadas as primeiras peças e a ter êxito, são tão divertidas, comédias mesmo divertidas. Pensava-se que ele era um autor que falava só da morte e de coisas graves. Ora, a verdade é que é um autor complexo, fala da perda e da morte, sim senhor, mas também tem comédias muito divertidas, Derniers remords avant l´oubli e Les Prétendants são engraçadíssimas.
Mas ele não falava muito dos seus textos, o que a Alexandra Moreira da Silva diz sobre o teatro de Jean-Luc é mais interessante do que aquilo que ele dizia. Não há teoria sobre o seu teatro, não há quase nada escrito, por enquanto, eu só tento esclarecer o que foi a sua relação com o teatro.
Quando Jean-Luc Lagarce começou a escrever, estava a fazer o mestrado sobre Teatro e Poder no Ocidente, era toda a história do teatro desde os gregos até 1980 e terminava com um balanço da escrita contemporânea, que ele baliza entre Beckett, Ionesco e Genet. Eu conheci-o aos 20 anos, ele dizia “tudo já está escrito, o importante é como prolongar a história do teatro, onde inscrever a obra própria.” Eu tinha 20 anos, achava isto um bocado pretensioso, esquisito mesmo. Mas, para ele, era evidente que não valia a pena escrever se não era para fazer avançar a literatura teatral: o seu era realmente um projecto ambicioso. Ele parte desta constatação: o teatro chegou até Beckett e Ionesco – Ionesco é o absurdo, a desconstrução da linguagem e Beckett foi quem encontrou a expressão do vazio.
Ele nunca percebeu como é que se fazia teatro actualmente, partindo do princípio que era preciso fingir que não se está no teatro. “Não percebo”, dizia ele, “os espectadores sabem que estamos no teatro, os actores também sabem”. Falamos, falamos, mas há um público a quem nos dirigimos. Quando estamos no teatro, todos sabemos que estamos no teatro, podemos falar ao público, é esse o prazer, não há quarta parede e posso voltar-me para a sala e dizer “vou morrer para a semana” e depois volto-me para a Susana e digo-lhe “cala o bico”, mas, a partir deste dado, a minha liberdade é grande, posso fazer como quiser.
O Jean-Luc era muito brilhante intelectualmente. Foi um aluno excepcional. E havia qualquer coisa de enciclopédico nele, de homem das Luzes, sabia tudo de tudo. Um grande professor que ele teve dizia “foi das poucas pessoas que eu encontrei que conhecia todas as respostas que a humanidade se foi dando sobre a condição humana e que continuava a perguntar-se porquê”. Ele sabia tudo, tinha lido tudo, filosofia, psicanálise, teatro, era um cinéfilo – e conhecia tudo com profundidade, dissertava sobre filosofia com exactidão, tinha estudado tudo.
E dizia “hoje em dia o espectador não pode ser como em 1950, agora o cinema é omnipresente”. Antes, no cinema do princípio, um actor estava num quarto, abria a porta para sair, no plano seguinte víamos que ele fechava a porta, depois que ia para o outro quarto. Agora já não é preciso tanta explicação, o actor está num quarto e depois está noutro, os espectadores também vão ao cinema, e o seu teatro é um teatro de hoje, feito por pessoas e para pessoas que vão ao cinema. Já não é preciso dizer “abro a porta – plano seguinte – fecho a porta”. O espectador percebe.
FM – Há qualquer coisa de cinematográfico no teatro de Lagarce. Podia ser um filme…
FB – Eu não diria que o teatro de Lagarce é cinematográfico, ou seja, é cinematográfico porque é de hoje em dia, hoje em dia o espectador tem uma cultura que inclui o cinema, uma percepção do real que não é a mesma do início do século. Por exemplo, ele integrou a elipse. É aliás uma das dificuldades e das apostas deste texto, a elipse: passa-se numa tarde, mas a certa altura diz-se “ é a minha vida inteira”, ele já morreu, mas está lá…
A relação com o tempo também não é complicada, é intrinseca à peça. A peça desenvolve-se no tempo, entre cada cena não sei se vocês fazem escuro, cortes de luz, como é que vão fazer, mas há ligações que não são “raccord”, as acções não estão em continuidade. No prólogo, ele diz umas coisas e na cena seguinte chega, ou seja, parte-se do princípio que os outros não estão em cena. Há todos estes problemas dramatúrgicos que definem o teatro contemporâneo. E é claro que o teatro absorveu muito do ritmo e do avanço da narrativa cinematográfica. Mas, no cinema, também há uma liberdade formal, olhem no Pierrot le Fou de Godard, quando o Belmondo se volta para o público e fala com os espectadores, antes isso era só no teatro… Lagarce não inventou nada. O teatro é de agora, é sempre de agora, vai abrindo novas coisas, novas formas.
Eu representei Lagarce e nessa altura as pessoas diziam “isso não é teatro” porque nós falávamos directamente com os espectadores, e hoje em dia isso já não é problema nenhum, romper com a ilusão.
Mas a peça tem problemas de elipse. E então aquelas cenas do meio, não sei como as vão resolver, muitas vezes têm sido cortadas. São magníficas. A peça começa com um prólogo, depois entramos numa estrutura aparentemente mais clássica, e aquelas pequenas cenas vêm quebrar a narrativa, alterar a lógica, fazem rebentar a peça…
Andreia Bento – O difícil é encontrar o equilíbrio entre o realismo e a poesia…
FB – O problema é exactamente esse. Podes representar o quotidiano, mas a lingua não é a lingua quotidiana Se te agarras à linguagem, se te manténs nesse nível, não há nada a representar, basta lançar as palavras, elas chegam para marcar a distância. Trata-se do concreto: um gato é um gato, “cala o bico, Susana” é “cala o bico, Susana”. E a lingua de Lagarce não é quotidiana, em França não se fala assim, garanto. O que está em jogo, a energia que se cruza não é o quotidiano. Quase podíamos dizer que ele escreve aqui uma tragédia grega com uma linguagem corrente.
Aquele discurso de Luís sobre o ódio, esse texto onde ele diz que os odeia, é um texto magnífico. É no ódio que ele encontra o amor. Quanto mais ele trair, mais ele ama. Menos mal fará aos outros. O seu acto de amor é odiar. E os espectadores percebem isso, percebem a força do verdadeiro ódio. Os espectadores são inteligentes, se vocês perceberem, eles também percebem.
Os espectadores são sempre inteligentes, são sensíveis, são pessoas de boa vontade. Se aquilo que se passa no palco é claro fica claro para eles. Como é o vosso cenário?
Joana Bárcia – Não há nada, paredes, uma cadeira.
FB – Uma cadeira só?
JB – Como é que o Lagarce veria uma encenação deste texto, assim, tudo parado e sem cenário?
FB – Não sei, nunca falei com ele sobre uma encenação eventual deste texto. Também não sei se ele era o encenador certo para os seus textos, não sei. É verdade que, nos espectáculos dele, havia muito poucos adereços, era realmente um teatro muito depurado, havia pouca coisa.
Por exemplo, como é que se pode resolver nesta peça a cena do almoço, não pode haver um almoço com mesas, cadeiras, choucrute, talheres, louça, as pessoas sentadas à mesa, toalha e tudo… Como é que se fazia desaparecer tudo para, na cena seguinte se dizer “quer mais café?”. Há muitas elipses, há um trabalho sobre o tempo – e se tivermos os adereços todos, a comida, não conseguimos seguir o ritmo do pensamento. É um teatro que não pode ter quase nada, não há nada. E ainda por cima está-se sempre a saltar de tempo, há a elipse. A duração não é real, não é teatro do quotidiano.
JB – E nós estamos sempre em cena.
FB – E ouvem o que os outros dizem? Mesmo a Susana? Porque há coisas que é suposto não serem ouvidas pelos outros.
TS – Há coisas que ouvimos e coisas que não ouvimos, apagamo-nos.
FB – Mas a convenção é que estão sempre em cena. É como um sonho. A peça também é assim. Mas claro que tem de ficar claro que eles não ouvem tudo. Se não, é incompreensível. Se, no início, toda a gente ouve “não lhes disse que vou morrer”, aí fica tudo embrulhado, deixa de haver peça.
Mas o Jean-Luc acreditava no teatro, no que as pessoas eram capazes de fazer dos seus textos, por exemplo: os parênteses e as reticências… ele dizia: estão lá, e ou o encenador tem uma ideia, ou os actores têm uma ideia, ou ninguém se lembra de nada, fazem como quiserem…
JB – E a relação com o público…
FB – é muito directa. Vocês falam com o público?
Conversa com François Berreur a 4 de Dezembro de 2004 no Teatro Taborda com Alexandra Moreira da Silva, Américo Silva, Andreia Bento, Fernanda Montemor, Francisco Frazão, Joana Bárcia, José Airosa, Teresa Sobral e Pedro Marques. O encenador do espectáculo, Alberto Seixas Santos, não pôde estar presente por se encontrar doente.
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