Anthony Neilson nasceu em Março de 1967. Filho de pai encenador e mãe actriz, muito cedo teve contacto com o teatro. Escreve as primeiras peças no final dos anos 80 e em 1991 fica conhecido no Festival de Edimburgo pelo êxito de Normal: The Dusseldorf Ripper. É um dos precursores daquilo a que se chamou a geração de escritores In Yer Face, caracterizada por uma escrita musculada e directa, preocupada com a actualidade. As suas peças têm levantado grandes polémicas nomeadamente The Censor (1997) e Penetrador (1993), que foram traduzidas e representadas em toda a Europa. Dirige habitualmente as suas próprias peças, o que é um caso relativamente raro no Teatro Britânico. Realizou também um filme para o Chanel Four: The Debt Collector. Stitching estreou no Festival de Edimburgo em 2002, tendo depois sido apresentada em Londres no Bush Theatre . Ainda em 2002, no mês de Dezembro, Neilson estreou The Lying Kind no Royal Court Theatre. Em Setembro de 2004, ainda no Festival de Edimburgo, estreou uma nova peça, The Wonderful World of Dissocia. Escreveu ainda Year of the Family (1994), Heredity (1995), The Night Before Christmas (1995), Hooverbag, Edward Gant’s Amazing Feats of Loneliness (2002) e Twisted (1997; peça radiofónica levada à cena em 2003). O autor diz: “Imploro-vos que não sejam reverentes. Mudem-nas como acharem melhor, estejam onde estiverem, seja em que tempo for. Tornem-nas melhores – Deus sabe que há sempre possibilidade de o fazer – ou melhor ainda, substituam as minhas falhas pelas vossas. Acima de tudo façam-nas viver e respirar.”
CONVERSA COM ANTHONY NEILSON
Em Maio de 2004, Anthony Neilson esteve connosco no Teatro Taborda. Aproveitando a reposição de Cicatrizes dedicámos um pequeno ciclo a este autor escocês lendo mais duas peças Normal – O Estripador de Düsseldorf (a primeira peça a merecer a atenção do público) e Penetrador que, juntamente com The Censor e Cicatrizes, forma um tríptico sobre as relações interpessoais. Ainda nesta ocasião encontrámo-nos para uma conversa no Hotel Internacional da famosa Rua da Betesga. Este é o resultado dessa conversa e de uma pequena apresentação pública.
O meu pai era encenador e a minha mãe actriz. Trabalhavam no teatro escocês dos anos setenta. Até essa altura não havia uma história de dramaturgia na Escócia. Havia uma ou duas peças e dois escritores que nos anos quarenta tinham escrito peças sobre os mineiros e coisas desse tipo. Eu era uma criança quando isto começou a mudar, por volta de 1974. Fazia-se um teatro muito político e não muito realista, baseado na comunidade, com digressões por toda a Escócia. Foi um tempo entusiasmante, emocional, como o são os escoceses. Bem diferente do teatro inglês. São estas as minhas primeiras memórias do teatro. Como os meus pais trabalhavam lá, eu devia ser tudo excepto uma pessoa do teatro. Houve uma altura em que era para ser biólogo marinho e várias outras coisas. Deixei a escola muito cedo, aos quinze anos, e passei uns tempos a fazer isto e aquilo, nada de especial. Quando chegou a altura de decidir que tinha de fazer qualquer coisa, fui tirar um pequeno curso para ver se gostava de ser actor. E gostei. Continuei e segui uma namorada até Cardiff, no País de Gales, para frequentar um curso de representação de três anos. Fiz o curso e passado um ano chegámos a acordo. Eu devia deixar a escola de teatro. O teatro era muito novo para as outras pessoas que iam de propósito para a escola, mas não o era para mim. Eu já trabalhava com material polémico, controverso. Tenho um problema com as instituições. Seja onde for. É instintivo, mesmo que não queira, dou comigo a rebelar-me contra elas. Por isso deixei a escola e fiquei com tempo livre para mim. Por uma razão que não compreendo completamente, decidi escrever uma peça. O que me levou a escrevê-la foi um concurso da BBC para jovens dramaturgos. Por alguma razão, tive um daqueles momentos na vida em que se olha e se sente intensamente, instintivamente, “se eu fizer isto, isto acontece”. Fi-lo e eles aceitaram. Não foi o primeiro prémio, eles escolheram quinze pessoas e produziram essas peças. Arranjei um agente e voltei para casa. O meu primeiro espectáculo foi Welfare My Lovely para o Traverse Theatre. A história era interessante, mas muito ingénua. Reescrevia muito nessa altura. Mas correu bem, arranjei um agente depois do concurso da rádio e, de repente, as pessoas começaram a pagar-me para escrever. Lentamente, fui perdendo o meu desejo de ser actor, percebi que não era um actor original.
Quando comecei a escrever teatro, apercebi-me que o teatro se tinha tornado num ramo muito cerebral das artes. E achava que o que nos ofereciam nos palcos não tirava partido das potencialidades deste género literário. Achei que os interesses dos dramaturgos eram muito classe média e quis criar peças que afectassem as pessoas de uma forma visceral e emocional. E que pudessem ser processadas intelectualmente apenas mais tarde, no bar. Era isso que pretendia fazer.
Não vi muita diferença entre escrever e encenar
O que eu gostava era de dirigir as minhas próprias peças. Ainda não tinha formulado isso na minha cabeça nessa altura, então, voltei para Cardiff e montei Normal para apresentar no Festival de Edimburgo. Foi um sucesso junto da imprensa e isso trouxe-me alguma atenção. Desse ponto em diante fui considerado um escritor e passei a ser pago para escrever. Mas há alguma pressão para que os escritores não dirigam as suas próprias peças porque há muitos encenadores e há a percepção, de certo modo, de que não há muito boas peças ou dramaturgos. Se é verdade ou não, não sei. É do interesse deles, manterem-nos num lugar preciso. Os encenadores querem peças para encenar e é um pouco desarmante para eles quando se decide ser dramaturgo e também encenador. Não é raro, mas é difícil, porque é como um pacote que as pessoas têm que levar. As companhias mais pequenas assumem melhor esse risco.
Nunca vi muitas diferenças entre escrever e encenar, uma coisa é a extensão da outra. Contudo, conheci dramaturgos que nada têm de encenadores e encenadores que nada têm de dramaturgos. Penso que há um traço psicológico especial para se ser dramaturgo e encenador, o que envolve duas partes bem distintas da personalidade.
A minha parte emocional, penso que a herdei da minha mãe (ela era quase pura emoção e instinto enquanto o meu pai era mais frio e desligado); de certo modo sinto que é o meu lado materno que escreve e o meu lado paterno que dirige. Gostaria de ver as minhas peças como um todo. Por outro lado, não gosto de me expressar pelo diálogo, não gosto que as pessoas sintam que o diálogo vem do escritor, quero que as pessoas acreditem que o diálogo vem dos actores. Acho que tenho um nível de representação que não é habitual num escritor, estou dentro daquilo de alguma forma. Sou contra a ideia de uma escrita poética auto-consciente. Mas costumava praticá-la e há uma parte de mim que ainda o faz, e que escolhe momentos concretos para o fazer. Em certos pequenos monólogos às vezes uso voz off. Mas na verdade não gosto de ouvir poesia evidente a sair da boca dos actores.
Acho que o teatro pode ser uma coisa muito irrealista, mas a representação, para mim, tem que ser verosímil, e o diálogo tem que soar verosímil. Devemos apanhar formas em que as pessoas são acidentalmente poéticas. A desarticulação interessa-me muito mais do que a articulação, o que nem sempre parece acontecer. Não quero alguém sentado a pensar sobre as linhas de construção do autor. Acho que há demasiado disso no teatro britânico.
Penetrador foi um projecto muito especíal, parcialmente baseado na realidade e foi também a última vez que representei. Representava com dois amigos meus que conheciam a pessoa que inspira a personagem Piça, por isso o texto está cheio de piadas privadas. Mais uma vez acho que há um desejo do dramaturgo de dirigir as peças que escreve. Senti que a pessoa deve abraçar a efemeridade do teatro, o encenador é o que torna aquilo diferente, é o que torna tudo “como a vida”.
Há muita coisa no teatro que acho que as pessoas vêem como inconveniente, como se desejassem que aquilo pudesse ser montado de certa maneira, ficam frustadas pelo modo como o teatro é diferente do cinema. Eu acho que é muito livre. Por isso escrevo peças, as minhas peças têm muitas referências internas, o que as torna muito imediatas para o público. Às vezes há coisas que nem aparecem nos textos. Se têm que abrir uma janela para se ouvir o trânsito, se ligam o rádio durante a peça, coisas que façam as pessoas sentirem que é tudo muito imediato. É por isso que Penetrador é um texto escrito para ser produzido e não um texto fechado. Nunca pensei que Penetrador fosse uma peça que pudesse vir a ser representada, sempre pensei que fosse uma daquelas que desaparecem. É claro que o nosso amigo George W. Bush conspira para manter a relevância de alguns elementos. Depois, as outras partes encontram-se dentro do texto, as pessoas têm que encontrar as piadas internas, tem que haver um sentido de ligação à realidade.
No caso de Penetrador, acho que, se se fizesse uma produção aqui, ela se devia transformar numa peça portuguesa. Todas as personagens. Principalmente o Piça. O nome dele tem qualquer coisa a ver com o tema da peça.
Não tenho nenhum controlo sobre as produções das minhas peças porque as escrevi e dirigi na primeira produção. Depois digo-lhes adeus e tudo o que as pessoas quiserem fazer delas… talvez devesse deixar mais claro em futuras publicações quanto podem as pessoas fazer o que querem do texto. Têm absoluta liberdade de fazer o que quiserem desde que não interfira com o clima básico do espectáculo. Mais uma vez acho que o teatro deve ser uma coisa viva e que as pessoas devem levá-lo adiante. Tenho que confiar nas pessoas para mudarem e adaptarem o que for preciso. Talvez haja produções que sejam más, mas haverá outras que serão muito boas. Tentar controlar isso é como evitar os riscos da vida, seria evitar o teatro. Há muita pressão quando se trabalha para companhias maiores, incluindo o Royal Court – querem que se faça audições e se escolham actores assim… há uma série de razões para isso.
Trabalho de um modo caótico
O modo como trabalho é muito caótico, muito enervante para algumas pessoas e preciso de perceber isso, há pessoas que confiam em mim e percebem o que estou a fazer. Mas também preciso usar o meu conhecimento sobre estas pessoas para me ajudar na própria peça. Não improviso com as pessoas. Trabalhamos como nas sessões de psiquiatria, de certo modo, falamos sobre a história, a personagem, mas, se por acaso, estamos a falar de como a personagem foi para escola, transformo-a na escola dos actores. Se a ideia é mentir, mantemo-nos tão próximo da verdade quanto possível. Eu tento, tanto quanto eles deixam, usar o máximo da história pessoal dos actores, assim sinto que há uma verdadeira fusão entre o actor e a peça.
Uma das razões porque não recorro às audições é porque sou particularmente sensível aos actores que se apresentam para representar nas audições. Como os meus pais trabalhavam no teatro, nós éramos bastante pobres a maior parte do tempo. Se o meu pai ia procurar um emprego e não o conseguia nós ficávamos com um problema. As contas ficavam por pagar, o telefone, a electricidade eram cortados. Sou mais sensível a perceber o que pode acontecer a um actor que não arranja um trabalho. E dou um emprego a um actor se percebo que ele precisa, psicologicamente, desse emprego. Porque eles são meus amigos. Isto não é profissional, percebo isso, e há uma parte de mim que diz que eu devia antes ser um bom ser humano, mais do que um bom profissional de teatro. Mas não recrutaria uma pessoa que estivesse completamente errada por causa do meu método. Posso ser muito livre, posso pensar, ele não é bem a personagem que eu procuro, mas depois a personagem transforma-se no que eles são, em quem eles são. Isso dá à produção um sentido imediato e representa-se uma coisa a que sozinho nunca teria chegado. É difícil continuar a descobrir novas personagens e escrever vozes diferentes.
Normalmente, começo com uma ideia. Trabalhando como trabalho é óptimo que eu tenha parâmetros que me sejam dados, dizem-me: “nós queremos trabalhar nesta área, ou complementar esta peça” e tenho uma ideia. Às vezes, não tenho uma ideia, tenho muitas ideias, mas se ao fim de três anos ainda estou a pensar nelas, começa a ser tempo de fazer qualquer coisa. Se tenho uma ideia que me parece fantástica, um ano depois ou mais tarde já não me parece tão fantástica. Normalmente sei onde começo e onde vou acabar. E o fim surge-me muito rapidamente. A parte do meio é que não sei bem como será. Escrevo o mais que posso, uma cena, duas cenas, três cenas. Depois, encontro-me com os actores, falo-lhes das minhas ideias, oiço o que têm a dizer, lêem as cenas que temos e eu oiço-os. No início do processo tento perceber onde é que as personagens se cruzam com os actores, o que é que é preciso mudar, o que me parecem ser as partes do discurso, o que me parecem ser as boas acções, se é mais cómico ou mais dramático, é tudo muito flexível. Parece um pouco estúpido. Parece que uso um actor naquilo que sei que ele faz bem, mas de facto, nem sempre é verdade. Normalmente é um actor que conheço bem e sei que é muito bom e há coisas específicas que gostava de o ver fazer, coisas muito emocionais ou não, dependendo do seu comportamento. O mais importante é que isso me permite fazer parte do público. Acho que o que acontece é que nunca me deixo envolver demasiado no mundo do teatro. Não me associo demasiado às pessoas que trabalham no teatro, não vou às festas nas estreias, não vejo muito teatro. Não quero transformar-me num daqueles dramaturgos que escrevem sobre a escrita ou sobre o teatro. Sou uma presença muito marginal no teatro britânico. Considero-me muito populista, o que me permite fazer parte do público e ouvi-los. E cultivei um modo de ser muito mau público. Com uma capacidade de concentração muito baixa. Aborreço-me muito, sento-me ali e penso: o que é que me empolgaria realmente?, o que é que eu gostava de ver agora?, precisamos de mais humor aqui, precisamos de música aqui. A pouco e pouco, a coisa constrói-se, vou para casa, reescrevo, volto, falamos sobre isso. Eles transformam-se no meu público, e eu sou o deles. Falamos da história das personagens, caminhos possíveis. Sou sempre eu que chego ao diálogo, mas há algumas deixas no espectáculo que podemos dizer “este actor, chega a esta fala a certo ponto”. Crio uma atmosfera em que as pessoas sentem que podem divertir-se e brincar com o texto. É um pouco infantil. Mas de uma forma geral, sou eu que escrevo o diálogo. De um modo geral sou plano, sem forma, sou suficiente imediato para querer que uma coisa seja minha.
Pessoas que conheço
O que não consigo é trabalhar com pessoas que nunca vi. Por isso recruto pessoas que conheço. Não têm que ser meus amigos, podem ser amigos de amigos meus, ou pessoas que eu tenha visto. Mas o processo cria isso, muitas vezes eles só têm a versão final a dois ou três dias da estreia. Eles estão envolvidos. Na Grã-bretanha temos uma forma muito rígida de trabalhar, das dez às seis, seis dias por semana, e apenas duas horas por dia são boas. É preciso aproveitá-las. Se sinto que nada está a acontecer deixo as pessoas sair mais cedo, vamos beber um copo e falar, divertimo-nos. Eles andam muito nervosos e há sempre um momento em que os actores perdem a confiança em mim e me odeiam, pensam “será que isto alguma vez vai acontecer?”. Disto resulta que sentem que fizeram mais do que concentrarem-se apenas no seu papel. Torna-se tudo, não diria uma grande família, mas… em toda a gente há um sentimento de pertença e de intimidade. Deixo os actores escolherem o seu nome, dou-lhes o que posso, pequenos pedaços de propriedade sobre a peça, todos dão a sua opinião, todos são livres de colocar objecções.
Já vi algumas encenações de peças minhas por outras pessoas. Há pessoas de quem digo que não devem dirigir as minhas peças. E os críticos usam isso como arma de arremesso. Se se escreve um texto é preciso uma cabeça fresca para o dirigir. Já vi muitas produções, em que me senti eu próprio e em que vi o meu trabalho ser levado para novas áreas. Quando vou à Alemanha ou à Áustria e vejo que fizeram algo muito radical com uma peça, normalmente acho essas produções interessantes e divertidas, mas sinto que não funcionaram. Sou um escritor britânico, as minhas peças são muito explícitas, mas num ambiente britânico. Na primeira parte são muito contidas. É como numa situação de comédia, ou drama, que depois explode: o conforto britânico é esmagado pelo que acontece. Em Penetrador, quando num momento de tensão, o Alan interrompe para dizer “vou fazer uma chávena de chá”, na Grã-Bretanha isso provoca gargalhada. Tudo pára se se fizer chá, há um sentido inglês e um sentido escocês. Em muitas peças há um sentido inglês interrompido por sentido escocês. A parte sexual também é um novo elemento. Se formos à Alemanha, toda a gente estará despida, não há tensão entre a forma e o conteúdo, para eles não sou suficientemente radical, eles querem que seja mais radical. O Pedro aqui em Portugal por exemplo foi por uma via muito minimalista, não há música…
A música
Nas minhas produções, a música é muito importante. É talvez a maior diferença quando vejo outras produções. Acho que há uma parte de mim que inveja o poder da música, penso na música como o chique e as palavras como o parente pobre. A música articula o que não é articulável. Há uma palavra japonesa que não tem tradução e significa tristeza da morte inevitável das coisas. Especialmente Penetrador e Cicatrizes são peças que para mim são preparações para momentos de música, que expressam esta coisa básica. O momento em Penetrador em que o Piça diz “ gostava de ir a tua casa” e eles estão sentados a comer caramelos para mim é o resumo da peça. As pessoas não fazem mal em não pôr música… não ponho isso no texto, não sinto esse direito. A razão porque resultou em Inglaterra é porque tenho um determinado público. Não posso especificar o tipo de música, seria ridículo aqui. Prefiro dar-vos a peça a dizer “ponham uma música romântica aqui”. Um dia serei ainda menos director de cena. Um texto é como um enigma. Há pessoas que me enviam e-mails sobre coisas específicas. A umas respondo, a outras não, digo simplesmente “isso terá que descobrir, não posso dizer-lhe como”. Às vezes uso música nos ensaios que depois deixo cair. Depende, porque a música aparece muito devagar. Em Penetrador, por exemplo, a cena em que eles dançam, quando a fizemos não sabíamos onde íamos dar. Às vezes mantenho a música, para apoiar os artistas. São momentos muito bons quando a música resulta. Sei que há pessoas que rejeitam o meu uso da música porque acham que é manipulatório.
A música aparece-me naturalmente em determinado momento, penso “e se tocasse isto?”. Gosto que a música faça coisas por mim para eu não ter que as fazer verbalmente. Odeio o uso da música nas mudanças de cena.
Às vezes parece um musical, mas na verdade, são momentos para o público pensar. No momento em que ele se deita para ouvir música, nós usámos a música mais romântica que conseguimos encontrar, a Barbara Streisand com o Bryan Adams, mesmo foleira, mas aparece a seguir à fala sobre Auschwitz. As pessoas vão ter que pensar sobre aquilo. Primeiro conseguíamos ouvir o público respirar fundo, mas depois temos que fazê-lo pensar sobre tudo aquilo. Há um realizador britânico que admiro bastante, Terence Davies, que fez um filme chamado The Long Day Closes, que tem uma sequência de dois minutos com uma carpete e sobre ela a luz que muda, é muito Tarkowsky. Pensei ‘se se consegue fazer isto no cinema, também o devia fazer no teatro’. O que os filmes de Terence Davies fazem é permitirem que se pense. A música ajuda a fazer emergir a pressão na peça.
Não pensem que isto é uma crítica ao espectáculo do Pedro, pelo contrário. Não esperava e ficaria muito surpreendido se visse uma produção de Cicatrizes com aquelas músicas. Na realidade, ficaria muito desiludido.
A música é mesmo importante para mim, quando escrevo procuro o lugar da música. Ajuda-me muito se encontro uma música que transmite o ambiente que quero. Pode ser apenas uma frase musical. Mas é mais importante do ponto de vista da direcção do que da escrita.
Fui músico durante uns tempos e o que pensava era que enquanto público não iria a uma actuação minha nem a uma peça em que fosse actor. Mas iria provavelmente ver o que faço no teatro. Quando digo especial é porque acho que o que faço mais ninguém faz na Grã-bretanha. Não tem a ver com o processo, mas com o produto. Há coisas que faço que as outras pessoas não fazem. Não é melhor nem pior, sinto uma validação. E se parasse deixava qualquer coisa com a minha marca.
Política
Penetrador foi uma peça muito pessoal. Eu tinha um amigo em que a peça se baseia, que foi para o exército e veio a minha casa precisamente com esta história sobre os penetradores. Excepto que ele não disse que o pai era o Norman Schwarzkopf. Ele disse-me que o pai dele era na verdade um dos membros do elenco original de “Hello Dolly”, que tinha conhecido a minha mãe, tinha dormido com a minha mãe, e que por isso era meu meio-irmão. Além disso, dizia ele, a outra meia-irmã era uma cantora escocesa chamada Sheena Easton, e a razão porque o sodomizavam era para fazer chantagem com a Sheena Easton. Foi o que ele me disse. Antes de ser dado como desaparecido. Quando ele falou da Sheena Easton e de Hello Dolly, é óbvio que não acreditei nele. Mas, se um amigo te aparece em casa e começa a contar estas coisas sobre os penetradores, ficas de pé atrás. E a coisa mais interessante é que com as fotografias recentes que saíram da prisão de Abu Ghraib, chegamos a pensar por um momento que se calhar havia alguma verdade naquele relato. Mas ainda não sei se havia ou não. Interesso-me muito pela política, mas não gosto de teatro político.
Não me sinto com capacidade para ensinar. O principal problema parece ser as pessoas dizerem “ quero fazer uma peça sobre o racismo”, sei o que querem dizer… há uma data de coisas sobre as quais gostaria de fazer peças, mas não tenho uma história. Acho que o caminho que levamos é muito perigoso no sentido em que gostamos de acreditar politicamente numa série de coisas que não são necessariamente assim. Podemos dizer que não somos racistas, que não somos sexistas, que não aprovamos isto ou aquilo. Mas seremos assim tão correctos quanto pensamos? Se começamos com uma ideia política, é o nosso ego que escreve a peça. Não podemos ter a certeza de que não estamos a projectar qualquer coisa nossa que é uma mentira. Por isso, tento começar por uma história e tento concentrar-me nas personagens a escrever a história. Assim as personagens começam a falar contigo. Tento criar o mínimo de censura interna, a da pior espécie, porque nós preocupamo-nos que as pessoas pensem que pensamos desta forma. Quando escrevi The Censor, alguém disse “mas não concordo com as peças do Neilson”. Não concordo com a ideia dos escritores como políticos sem currículo que apresentam uma tese. Não é a minha tese, é a tese das personagens. Quando as pessoas dizem que sou honesto não é por denunciar a homossexualidade no exército em Penetrador. Essas coisas são muito mecânicas, nunca se saberá de que forma um autor é honesto. Mais facilmente assumo a tese do racismo do que contra o racismo, acho mais interessante uma peça que diga porque é que hei-de ser racista do que uma que diga porque não devo ser. Sei que não devo ser. Todos os que forem ver a peça sabem que não devem ser racistas, prefiro encontrar onde é que as pessoas são racistas. Acredito que quando escrevemos de forma moralista, forçamos os espectadores a fazerem um “bypass” ao seu intelecto. Por exemplo, o discurso de abertura de Penetrador, que é tão chocante na Grã-Bretanha como é noutro lado qualquer, foi pensado para tornar mais “tenro” o público, de forma a que as pessoas ficassem tão moralmente envolvidas que não pudessem intelectualizar o processo e fossem forçadas a aceitar a narrativa tal como ela acontece. Acho que é uma utilização válida de tácticas de choque. Embora não a tivesse utilizado se não sentisse que era uma estratégia intrínseca ao tema da peça. Os políticos esquecem-se, mas a política é sobre a emoção das pessoas. Por outro lado, não posso escrever alguma coisa que não seja político nesse sentido. Pode ser sobre a política sexual ou a política das relações, mas uma visão política acaba por vir sempre à superfície. É o que o David Hare faz, quando escreve sobre a forma como os comboios foram privatizados. Para mim, isto é material que está bem para colunas de jornal, mas que pode ser mais bem feito noutras formas. Só que, a menos que exista uma estrutura dramática forte, pode soar como o Ken Loach. Às vezes pode acertar-se em cheio, como quando ele foca as histórias nas pessoas, outras vezes é completamente ao lado.
Raça de Mentirosos
The Lying Kind que escrevi em 2003 foi um dos meus maiores falhanços, e ao mesmo tempo uma das coisas mais radicais que alguma vez fiz. É curioso para mim que um teatro como o do Royal Court não me deixe trabalhar da maneira que quero. Acho o teatro uma das grandes artes democráticas. E se há uma forma de arte que devia ser acessível às pessoas, era o teatro. Porque são precisas apenas algumas pessoas dispostas a fazê-lo e uma quantia que permita montar um espectáculo. E podem-se transmitir, assim, mensagens políticas muito concretas. Historicamente, creio que houve uma tentativa concertada, levada a cabo pela elite da sociedade, a classe média superior, no sentido de raptar o teatro e afastar as pessoas comuns da sua fruição. Na Grã-Bretanha, a estratégia resultou e agora, ironicamente, estão desesperados a tentar encontrar formas de recuperar esse público perdido. Mas os meus problemas surgiram sobretudo porque não me deixaram trabalhar da maneira que eu pretendia. Obrigaram-me a escrever como um escritor normal, sentar-me a escrever durante um certo número de meses. Mas só consigo sustentar o tipo de visceralidade que utilizei em algumas peças, como Cicatrizes, se escrever num período de semanas. Porque preciso de me magoar, literalmente, ao escrever aquelas coisas. Se prolongar a escrita para uma escala de meses, não resultaria da mesma forma. O que aconteceu é que acabei por fazer uma peça no Royal Court e tanto o público como a crítica odiaram-na. Fui demasiado ambicioso: tentei fazer uma peça para um público que não vai ao Royal Court. Ao princípio, os públicos misturaram-se, mas a coisa não durou muito tempo. Havia um público para a peça, só que não tivemos tempo suficiente para o fixar. Foi uma experiência muito interessante e aprendi muito com ela. Mas a verdade, por outro lado, é que um falhanço deste tipo nos transforma em persona non grata. Sou relativamente cínico em relação ao apoio que recebem instituições deste tipo e fico aliviado por poder sustentar, também nas suas consequências, as escolhas que vou fazendo. Não deixa de ser irónico que me tenham dado um prémio de autor “mais promissor” por causa de Cicatrizes. Sobretudo porque depois há críticos que insistem que ainda não consegui desenvolver plenamente o meu potencial e que me circunscrevo a temas demasiado fechados. Sei bem o que eles querem que eu faça. Querem que escreva peças maduras. E acho que isso quer dizer peças sem porcarias e palavrões. Os críticos gostaram mais de The Censor, porque acharam que havia ali um debate sobre a censura. O que me agrada na peça, e os desespera, é que deitei fora o debate a meio da peça e transformei-a numa história de amor. Só me preocupei em levantar algumas questões. Mas não lhes quis responder. Por que raio me havia de dar a esse trabalho?
Depoimento recolhido por Pedro Marques, Francisco Frazão e Jorge Silva Melo a 24 de Maio de 2004.
Já depois da nossa conversa, em Setembro de 2004, Anthony Neilson estreou no Festival Internacional de Edimburgo, The Wonderful World of Dissocia, em co-produção com o Tron Theatre e o Drum Theatre de Plymouth, com encenação do próprio Anthony Neilson e interpretação de James Cunningham, Christine Entwhistle, Alan Francis, Amanda Headingue, Jack James, Claire Little, Matthew Pidgeon e Barney Power. Poucos dias antes, Mark Ravenhill (o autor de Shopping and Fucking e Some Explicit Polaroids) publicou no The Guardian a entrevista que aqui reproduzimos pelo seu valor afectivo e simbólico.
Eu quero permanecer puro
Estou muito perto de Anthony Neilson. O fotógrafo do Guardian pede que nos aproximemos mais. Os nossos narizes quase se tocam e eu sinto uma necessidade súbita de o beijar. Há uma mistura de arrogância e reserva em Neilson, de desconfiança e desafio, de adolescente e de velho inteligente. É uma mistura bastante atractiva.
Quero beijar Anthony Neilson. Por isso beijo. Nos lábios. Acho que estou à espera de uma reacção, do tipo: “Afasta-te de mim, maricas.” Mas o Anthony beija-me de volta com um ar feliz. Eu estou desiludido e – enquanto a máquina fotográfica continua a disparar – consideravelmente mais constrangido que ele. Quando me afasto tento salvar a honra do convento: “Ooh, Anthony, lá se vai a tua reputação.” Ele sorri. “Achas? Sabes qual é a minha reputação?”
Eu conheci o Neilson numa sala que havia por cima de um pub em 1995. Tínhamos escrito peças para uma noite de cenas eróticas. Eu observei da cabine das luzes o Anthony a ensaiar com dois amigos. Um, vestido de Pai Natal, praticava ternurentamente sexo anal com o outro, que estava vestido como fada da árvore de Natal. Era um ensaio completamente diferente daqueles que eu tinha visto até aí. Neilson estava estirado no chão, a beber cerveja e a conversar com os dois actores. Havia uma direcção para o texto, mas nada de particular. A certa altura deve ter tido lugar qualquer coisa como um ensaio convencional – falas decoradas, movimentos organizados – mas eu nunca vi. A principal táctica de Neilson parece ser levar os actores a fazerem parte de uma conspiração tácita. E obteve resultados. O público teve o sentimento perturbador de lhes ter sido permitido assistir a um momento íntimo. Toda a gente que tenha visto os melhores trabalhos de Neilson – Penetrator, Stitching, The Censor – reconhecerá essa desconfortável mas hipnotizante sensação.
Para mim, em 1995, Neilson era um tipo muito fixe. Não foi muito depois de o ter conhecido que escrevi o primeiro rascunho daquilo que viria a ser Shopping and Fucking; Neilson dirigiu uma leitura do mesmo. Dezoito meses mais tarde, encontrei-o na noite de estreia de Shopping and Fucking no West End. “O que é isto?” Troçou ele. “O cabrão do Rocky Horror Show?” A noite tinha sido demasiado mainstream para ele. Desde aí que nos contactamos amigavelmente, dois dramaturgos com trajectórias similares – mas o Anthony insinua sempre que eu me vendi. Para o Neilson, o artista como outsider é um mito poderoso.
Encontrámo-nos outra vez em Glasgow, Neilson ensaia uma nova peça. TheWonderfulWorldofDissocia. A peça estreia no abastado Lyceum Theatre de Edimburgo dentro do Festival Internacional. O que é que ele acha desta nova aproximação à respeitabilidade dos palcos principais? Ele mastiga pensativamente uns cheetos. “Eu gosto mesmo dos locais alternativos,’ admite. “Detesto fazer parte do público nesses teatros grandes. Os melhores locais são as caixas pretas pequenas. Mas como escritor não há dinheiro nos locais alternativos e – se for honesto – nem prestígio.” Sorri ironicamente. “Hoje em dia dão-me duas colunas num jornal para um punheteiro qualquer me lixar a cabeça por causa do trabalho.”
Claro, ele está a ser sardónico. Ele pode gostar de espaços pequenos, mas também possui algo de apaixonado quando partilha o trabalho com o público. “Temos de escrever peças que as pessoas queiram ver,” diz ele. “Ao contrário há o perigo de desaparecermos nós. Acho que se alguém que nunca foi ao teatro, por acaso entrar, devia ainda assim gostar do trabalho. Devia interessar-se pela história. Isso não quer dizer que tem de ser simplista, mas a história tem de estar no coração daquilo que o escritor faz. E aquilo que tens de fazer é equilibrar isso com qualquer coisa nova.”
Neilson raramente vai ao teatro. Não, insiste ele, por arrogância (embora mostre um pouco de uma benigna panache arrogante), mas por medo de ser demasiado influenciado por outras peças. “Eu não quero saber que não posso fazer aquilo porque aquele e o outro já fizeram. Eu quero ficar – de certa maneira – puro.” Em vez disso, é fanático por filmes, fugindo para filmes a meio da tarde. Os filmes andam muitas vezes próximos do seu amor pela história – mas ele ainda sente que o teatro, no seu melhor, é que tem a ousadia. “O filme é lento. O teatro tem a possibilidade de ser rápido, reactivo. Pode-se adicionar bocados novos todas as noites. Tem de haver coisas novas a brotar por todos os lados.”
Dissocia tem andado a fumegar na sua cabeça há alguns anos – mas isso não quer dizer que ele tenha começado os ensaios com um texto. Muitos dramaturgos, eu incluído, rescrevem e revêem constantemente durante os ensaios. Neilson trabalha de uma maneira mais radical, construindo gradualmente a peça nos ensaios. Quanto é que ele tinha de Dissocia no primeiro dia de ensaios? “Cerca de 20%.”
Não é uma maneira de trabalhar que muitos teatros gostem. Mas, enquanto Neilson percebe que teatros como o Royal Court e o National gostem de ver o texto antes de se comprometerem com uma produção, ele acha que trabalhar numa peça “durante meses a fio antes de ela ir parar a um comité qualquer” tira a ousadia à peça. “Não consegues manter um nível de energia visceral que produz uma coisa como Stitching durante muitas semanas,” diz ele. “É aí que eu faço os meus melhores trabalhos.”
Dissocia é uma obra ambiciosa, uma vasta paisagem onírica com a doença mental como tema central. Neilson apressa-se logo a dizer que não é uma tentativa directa de dramatizar uma doença mental. “Isso seria ser presunçoso. Isto é mais parecido com FeiticeirodeOz ou AlicenoPaísdasMaravilhas, algo que pode ser análogo às doenças mentais. Em muitos sentidos, é uma experiência com a forma.”
Foi a doença mental alguma coisa que ele tenha experimentado? “Sim,” admite. “Existem elementos disso na minha família. Quando existe na família isso torna-se numa coisa de que não tens medo. Torna-se naquilo que tu sabes. Se estiveres sentado num bar e entrar alguém que é obviamente doente mental, as outras pessoas tenderão a afastarem-se dele. Eu vou dizer “Tudo bem?” e acabo a ter uma conversa com ele sobre alguém que o anda a tentar matar ou coisa parecida.”
O impulso para escrever Dissocia coincidiu com um período da vida em que ele andava ‘fodido”. “Eu andava a meter muitos speeds, estava numa relação com uma pessoa que é a pessoa mas catastroficamente passada que eu conheci. Eu fui arrastado para o mundo dela. E a minha peça The Lying Kind, no palco principal do Royal Court, foi mal recebida. Houve um crítico que disse que era a pior coisa que o Royal Court já tinha feito.”
A cabeça dele ficou “em círculos. Não era exactamente depressão. Era mais esquisita.” Parou de tomar fármacos, terminou a relação e iniciou uma terapia em St. John’s Wort. Quando recuperou, começou a tentar escrever sobre as doenças mentais, tentando agarrar na sua essência ao escrever de um modo mais absurdo.
O resultado foi uma peça que faz o contraste entre o fervilhante mundo interno da mente doente e a esterilidade do mundo objectivo. Não será uma ideia romântica de doença mental? Neilson inclina-se para a frente, subitamente animado, com o seu escudo sardónico posto de parte. “Mas é verdade. Pergunta a quem quiseres. É por isso que as pessoas não tomam os medicamentos. É uma paisagem mais colorida, fervilhante. Existe muita alegria nela. Mas existem muitos pontos baixos atrofiantes e profundos. Eu não sou romântico. Acho que deves ser medicado. Não acho que o tratamento de pessoas com problemas mentais seja desumano. Mas acho que temos de admitir que as pessoas oferecem resistência a tomar os medicamentos. Eu estive lá. Eu estive na merda. E fui relutante.”
A entrevista chegou ao fim e o elenco passou o tempo a jogar voleibol, agora Neilson tem de voltar para a sala de ensaio. Beijamo-nos – desta vez na cara. “Obrigado por fazeres isto, Mark,” diz ele. “Vou fazer-te o mesmo quando estiveres sem sorte e andares a tentar promover a tua nova peça no teatro de um bar qualquer.”
Sempre o mesmo Anthony – afectividade e agressividade misturadas. Eu adoro-o. E vocês também deviam.
Mark Ravenhill, The Guardian, 26 de Agosto de 2004
Tradução de Pedro Marques
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