VIVE QUEM VIVE de Jacques Prévert

Vive quem Vive

VIVE QUEM VIVE (Guignol) de Jacques Prévert
Tradução Eduarda Dionísio Com António Évora, António Simão, Sérgio Gomes, Carla Galvão, Pedro Carraca, Miguel Borges, Pedro Abade Cenografia Eduarda Dionísio  Figurinos Rita Lopes Alves Montagem José Manuel Reis e Luís Dias Luz Pedro Domingos Som André Pires e Rui Rebelo Um trabalho de António Simão e Joana Bárcia assistidos por Alda Moreira

Estreia Teatro Taborda, 10 de Dezembro de 2003

O Texto está publicado no volume CENAS (ed. e etc).

É noite de Natal. Há um senhor nem muito pobre nem muito rico a precisar de um táxi para voltar à moradia onde vive sozinho e onde pretende cumprir sem companhia o seu ritual de consoada: os brinquedos da infância com que nunca brincou, a missa do galo pela rádio, sem esquecer o peru.
Depois há um indivíduo muito mais pobre do que rico que tem outros planos para a noite (a sua e a do senhor): começa por arranjar o tal táxi, vai com o senhor no carro e entra-lhe em casa enquanto o cão vai buscar o resto da família.
Vai haver festa, os brinquedos vão finalmente servir, as velas vão acender-se e a caixa de música, que nunca tinha tocado, vai competir com os cânticos como deve ser da rádio, onde também se faz publicidade a um produto que vai resolver a noite.

O SENHOR Quem é você? E para onde é que vai?
O INDIVÍDUO Para a sua casa.
O SENHOR (aos berros) Vamos lá a ver, meu amigo, meu pobre amigo, eu não o convidei.
O INDIVÍDUO Um simples esquecimento, como é que um amigo como eu podia ficar zangado consigo?
O SENHOR (a sufocar) Mas eu não sou seu amigo!
O INDIVÍDUO (muito afectuoso) Mas eu cá sou seu amigo… acaba de o dizer… meu amigo, meu pobre amigo!
O SENHOR (aos berros) Mas eu disse isso de brincadeira, com tom de menosprezo!
O INDIVÍDUO Como é que eu podia ficar zangado?
Jacques Prévert, VIVE QUEM VIVE

vive_quem_vive_aJacques Prévert publicou a peça infantil GUIGNOL em 1952, com desenhos de Elsa Henriquez.
“Guignol” é uma marioneta sem fios, operada com os dedos, mas também pode ser o teatrinho onde se representam peças cujo protagonista se chama Guignol; por extensão, aplica-se a uma pessoa involuntariamente ridícula, ou a um acontecimento grotesco.
A peça de Prévert, ao romper com os estereótipos que é costume fornecer às crianças em época de Natal, interroga também os significados habituais das palavras: “guignol”, involuntariamente ridículo, será o senhor como deve ser, aquele que finge que vive, que grita e gesticula muito; mas será a acção da peça apenas um grotesco “mundo às avessas”, uma “guignolesca” inversão de papéis que fica arrumada com o cair do pano?
Já sabíamos que as histórias para crianças são lugares onde se vê a ideologia a olho nu (sinal recente disso são os ingénuos contos infantis “politicamente correctos”). Com humor, música, um taxista, um polícia e um vidraceiro, o “homem do saco” e animais que falam, misturando a vida de todos os dias com a fantasia, Prévert acaba por contar uma história não muito diferente das “ocupações da propriedade” a que nos habitou Harold Pinter (aqui, a violência dissimula-se debaixo de um sono de uma semana). Esta história de “conquista da felicidade”, longe de ser panfletária, talvez ajude a pensar e a pôr em causa. Vive quem vive.